Papel de Seda e a ressonância lírica anticordial

 

Ricardo Riso*

 

A poética de Abelardo Rodrigues caracteriza-se por um discurso enfático, calcado nas experiências históricas do racismo, do negro na diáspora negra e na África, e pela busca de um maior cuidado com a forma, com a estrutura do poema.

Já o poema Papel de Seda revela um sujeito lírico e étnico muito mais ousado em aspectos estético-formais. Dividido em 22 cantos e um canto final, somos convidados a uma viagem por meio de uma epopeia, em uma linguagem espiralada, em delírios alimentados por paraísos artificiais que navegam pela história do negro no Brasil e na diáspora negra, em um vai-e-vem contínuo.

Assim, o sujeito étnico, sempre em primeira pessoa, questiona a sua presença em uma sociedade supremacista branca, exige a transformação de seu tempo e recorre a uma linguagem vertiginosa, acelerada nas imagens (como a efemeridade das ideias postas em redes sociais), muitas vezes em sequências insólitas, abusando das aliterações para marcar a melodia e o ritmo, investindo na hipérbole e nas exclamações e negações discursivas para enfatizar a sua postura, mas que vão apresentando um fio condutor: a consciência racial.

Com ela, a revolta, a vontade de denúncia e o desejo de transformar a sua realidade.

Nesse sentido, Papel de Seda traz um sujeito étnico maduro que atingiu a descolonização da mente proposta por Frantz Fanon, e conduz o leitor, a partir da postura libertadora de seus cantos finalizados em codas, a uma viagem espacial e temporal, densa e tensa, envolta em diferentes drogas, denunciando e refazendo na encruzilhada desses versos a desestabilização dos sentidos, a reconfiguração de certezas e desmascarando os ardis do racismo em seus aspectos linguísticos, históricos, educacionais e políticos.

Ainda que em delírio pleno, o sujeito étnico do poema recusa-se a ignorar a experiência da população negra, rejeita os discursos e as políticas que nos excluem física e simbolicamente.

Seguindo Edouárd Glissant, Abelardo Rodrigues propõe um novo caminho criativo em que as referências ao passado negro-diaspórico e africano estão coadunadas a todas as línguas e literaturas do mundo.

Poesia que cresce com a fonte de conhecimento oriunda da leitura de seus pares. Poesia revoltada, fanoniana, que requer uma nova gramática, novas epistemes e a criação de outros juízos de valor:

 

− Não haverá cera-de-Ulisses
em teus ouvidos de mercador
para abafar o som desse Cântico
ao rolar um novo lance de dados
dessa poesia, não mais, não!
não mais sonho, não!
não mais fantasia, não!
e, sim! Vento incendiário
em seus pesadelos! (p. 113)

 

É a poesia-liberdade contra os sonos injustos dos senhores brancos, conforme Conceição Evaristo, e contra os patrulhamentos reducionistas do que se espera do negro escrito que essa poética vai remeter, pela sua ousadia e labor de experiências com a linguagem, a títulos como Lud Lud, de Arnaldo Xavier, Poemaryprosa, de Cuti, Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul, de Adão Ventura, e Homeless, de Edimilson de Almeida Pereira; à ênfase libertadora negra presente em A cor da pele, de Adão Ventura; à poesia africana da língua portuguesa de uma nova estética e ética literária com vistas à libertação colonial como em Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, e Cela 1, de José Craveirinha, e na agonia do tempo presente em O País de Akendenguê, de Conceição Lima, e No Fundo do Canto, de Odete Costa Semedo. Além das referências ao simbolismo de Cruz e Sousa e ao surrealismo corrosivo do Diário de Retorno ao País Natal, de Aimé Césaire, que Papel de Seda se filia a essa perspectiva literária negro-diaspórica.

Papel de Seda é um poema que se quer complexo, neste sentido, neobarroco, com seus espelhos retorcidos agredindo a complexidade do real estabelecido pelo poder, e que ainda passeia pelo simbolismo de Charles Baudelaire, pelo surrealismo das imagens inusitadas e pela escrita automática dos beatnicks e seus delírios. Compreendendo que os delírios nessas páginas, para além de espantar a carga de moralidade e de boa conduta de parte da literatura negro-brasileira, são frutos de uma consciência dilaceradora da branquitude, das falácias acadêmicas e dos bancos brancos escolares. Trata-se, sim, da consciência liberadora do

Meu corpo recuperado
pelos versos desses pretos prontos
lidos e relidos pela minha fome atávica de ser
novamente humano (p. 126)

A partir da proposta de Arnaldo Xavier para uma consciência de linguagem que Abelardo Rodrigues possui a fome de uma escrita exusíaca, lançando uma pedra hoje para acertar o pássaro ontem, comunicando a gravidez de um novo tempo, contra a necropolítica que atinge os corpos negros, contra o racismo epistêmico da academia, contra o racismo de todos os dias, a libertação desse poema-devir Papel de Seda se afasta de uma literatura negro-brasileira lacradora. Abelardo Rodrigues sabe, desde os tempos do Triunvirato, que a Poesia exige mais, e ele se reinventa, permanece vanguarda e como uma referência importante para essa vertente literária.

Um Negro Escritor, Negro-brasileiro, Negro-diaspórico, Negro-africano, Negro-mundo que faz ressoar essa lírica anticordial da poesia-arma para afirmar a sua presença em todas as partes do planeta, pelo direito de viver sem medo e sendo respeitado em uma nova humanidade.

Rio de Janeiro, agosto de 2020.

 

Referência

RODRIGUES, Abelardo. Papel de seda. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2020.

 

Nota:

* Ricardo Riso é Mestre em Relações Étnico-Raciais (CEFET/RJ) e doutorando do programa de pós-graduação em Letras: Estudos Literários (UFJF). Organizou, com Henrique Freitas, Afro-Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira (2013), além de antologias de poesia cabo-verdiana e moçambicana.

 

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