O regresso de Geni Guimarães

Vagner Amaro*

 

sondadora
do mundo
(embora aguda e suspeita)
teço palavras
para
nas curvas
das asas
reinventar
o paraíso


Geni Guimarães
2020

 

A coletânea Poemas do regresso marca o reencontro de Geni Guimarães com a poesia. A última publicação da autora neste gênero foi o livro Balé das emoções, em 1993. Os sessenta e dois poemas que compõem o livro comunicam que o senso poético de Geni permaneceu guarnecido neste longo tempo ausente, e que a estrada de volta foi construída com coragem pela própria autora, como anuncia no poema que inicia o livro “Como quem se vê pela janela, me resgato”.

Em “Regresso e Correspondência”, Geni anuncia seu vigor nesta volta ao disputado território da Literatura brasileira “de novo sorverei o gole que me cabe” (p. 11) e “Sugiro: envia-me por Sedex o teu baú de frustração e ódio, (rascunhos insípidos das infames tretas), mas fica alerta: Sou poeta. Tiro de letra.”

O arco temático do livro é plural, mas é possível depreender dele algumas recorrências, que ajudam a ler a obra a partir do seu discurso literário, e assim, captar este momento especial de regresso da autora ao processo de criação. Neste sentido, destacam-se temas como a consciência racial e a noção de ancestralidade; a passagem do tempo; o fazer literário e as relações familiares, com destaque para “Contemplação” (p. 125), e “Cadeira de balanço” (p. 23) – que a autora dedica para a irmã:

Cadeira de balanço*

Vesga, contempla o sol,
se inebria da beleza
que somente o teu ver
vê no mundo.
Pinta tudo
na infinidade das cores
que capta da natureza.
A sua lua,
é sem fases e sem eclipses.
Pura e boa, perdoa
a insensatez dos homens
na barriga do planeta.
Menina pena,
dá-me o teu néctar de alfazema
e me respira.
Brinca de brincar comigo,
rouba-me das nuvens e me acolhe plena.
                      *Para irmã Cema, minha bússola.

Sobre consciência racial e ancestralidade, exemplifica-se: “Como engolir este trem, que engole a minha etnia?” (p. 52); “entre a palavra e o som, entre a escrita e o sentido, quero ter zumbi dançando.” (p. 90); “preto de alma branca, diabo a quatro, espelunca... Fica atento.” (p. 103). 

Sobre o passar do tempo, destaca-se: “se aninharam nos sulcos fundos do meu rosto”; (p. 35); “já acima dos setenta, a gente não mais aguenta, tal invasão repentina, no topo da cabeça” (p. 85); “não há tempo que me envelheça”, (p. 113).

No entanto, a maior recorrência em Poemas do regresso está na reflexão que Geni Guimarães faz do seu universo literário, a gestação do texto, as intenções e compromissos desta dona da enunciação – o “eu-poeta”, de “Versos do trato” (p. 105) –, que ganha forma a partir dos versos, e que elabora com lirismo sobre a própria escrita, atingindo uma dimensão estética que retrata uma narradora apaixonada pelo ato de escrever: “um dia hei de fazer versos, sem verbos, pronomes, sujeitos e predicados.” (p. 45); “sou poeta, o que teço é ar, somente ar.” (p. 47); “Enquanto posso pensar, escrevofalo, tiro as amarras dos nervos, e as sustento em fogo brando.” (p. 95); “Ainda bem que nesta hora me vem, um poema, também lerdo, que me acorda, sem alternativa, registro meu nu-fadiga” (p. 97); “Sou poeta, um bicho de seda que explode” (p. 99).

A leitura de Poemas do regresso é uma possibilidade de encontro com a subjetividade de uma escritora que se exilou dentro de si e que regressa para a literatura nos contando, pela voz de um eu enunciador sensível, reflexivo e atento, identificável na materialidade dos seus poemas, vivências emocionais – “fantasmas e anjos, se abraçam no arranjo das coisas que já vivi” (p. 13) – e visões de mundo – “as ruas silenciam, displicentes, o ronco da fome gritante na barriga de minha gente” (p. 105)  – e com  uma voz comprometida com suas intenções artísticas: “Dar à luz a um verso, que seja tão palpável e de tamanha exatidão, que nele o próprio coração respingue.” (p. 17).

Ao reafinar em si o dom, o tom e a arte da palavra, que é força de vida, Geni Guimarães transgride o tempo e o espaço “Desenho em mim meu Atlântico” (p.25) e entrega ao leitor a possibilidade de amplamente avistar com um instrumento mais sensível o mundo.

Rio de Janeiro, dezembro de 2020.

Referência

GUIMARÃES, Geni. Poemas do regresso. Rio de Janeiro: Malê, 2020.

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* Vagner Amaro é jornalista, bibliotecário, escritor, editor e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidades pela PUC-Rio. Coorganizou as publicações Machado de Assis para jovens leitores (2011); África: novas leituras (2012); e Lima Barreto por jovens leitores (2014). É também responsável pela organização de: Letra e tinta: dez contos do Prêmio Malê de Literatura (2016); Olhos de azeviche: dez escritoras negras que estão renovando a literatura brasileira (2017); e Do Índico ao Atlântico contos brasileiros e moçambicanos (2019). Em 2015, idealizou e fundou a Editora Malê. Sua primeira publicação como ficcionista se dá em 2018, com o volume de contos Eles.


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