Paulo Colina – Poesia reunida

Ricardo Riso*

 

 

 

A Ciclo Contínuo Editorial lança a obra poética de Paulo Colina em cuidadosa edição de Paulo Colina – Poesia Reunida (2020), com edição de Eunice Souza e Marciano Ventura, apresentação de Oswaldo de Camargo, posfácio de Ricardo Riso, ensaio fotográfico de Mario Espinoza e uma biobibliografia do autor.

O escritor Paulo Colina (1950-1999) foi um dos mais ativos literatos negro-brasileiros da geração surgida com a série Cadernos Negros em 1978. Publicou em Cadernos Negros 2 e 3, foi cofundador do coletivo Quilombhoje Literatura em 1980, organizou Axé – antologia contemporânea da poesia negra brasileira (1982) e lançou Fogo Cruzado (1980, contos) e três de poesia, Plano de vôo (1984), A noite não pede licença (1987) e Todo o fogo da luta (1989), além de ter deixado inéditos de ensaio e teatro. Seus textos estão em antologias como A razão da chama (1986), organizada por Oswaldo de Camargo, e Schwarze Poesie (1988), organizada por Moema Parente Augel.

Em Poesia Reunida, a relação com a cidade de São Paulo é constante nos poemas de Colina, com imagens de um sujeito lírico que, a partir da sua corporeidade, observa a estranheza do mundo em Para tocar no rádio: “Eu,/ território êrmo,/ plantado na esquina do mundo” (2020, p. 36).

É com a descoberta da consciência pelo lugar, e não pela consciência no lugar, que o espaço se torna essencial e essa nova consciência olha para o futuro e parte para a produção de uma nova história, e assim o sujeito lírico de Colina define o seu Plano de vôo:

 

quebrar o elo
              com o silêncio
abrir a porta
           da rua
e despertar esse morto
abrir os braços
e libertar esse pássaro
                     louco
que se bate
há tanto tempo
dentro de mim
deixar que saia cidade
                     adentro (...)
sem conter esse desejo
essa sede do fundo
            do poço
que não sacia
sem se opor
por ordem ou norma
                     à emoção
porque
amanhã
nos foderemos mesmo
                de qualquer forma (2020, p. 52).

A relação conflituosa do sujeito lírico com a cidade apresenta-se no imperativo dos verbos quebrar, abrir, despertar e libertar, o que revela o desejo de enfrentamento que percorre os versos do poema. Porém, há o limite exposto da clausura, do conflito interno, por isso a recorrência à metáfora do voo possibilita a evasão e a libertação no poema, opondo-se à realidade concreta do cotidiano, “porque/ amanhã, nos foderemos mesmo/ de qualquer forma”.

Esse sujeito lírico não aceita a divisão racial do espaço, em andanças pela cidade demonstra-se contrário aos limites impostos ao corpo e à mente, e a afirma em “Fronteiras”:

sei das fronteiras
que a mim traçaram
desconheço contudo qualquer porta
que a noite não pede licença
que a pele é surda
e grita (...) (2020, p. 121).

Neste, o sujeito lírico é assertivo ao seu pertencimento racial e tem extrema consciência dos ardis do racismo que procuram restringir o lugar do negro, o uso da coordenada adversativa “contudo” no terceiro verso marca a sua perspectiva de negro, sendo a noite a metáfora de sua libertação, a sua definição identitária, de corpo e de espaço.

Por outro lado, Colina procura se desprender das amarras identitárias que o limitam a outras correntes. O caminhar, por vezes solitário, depreende-se no poema “Exílio”:

cansado de todos os fúteis
motivos
que me obrigam ao combate

a outras sombras vivas
                              de mim
recolho-me (e ao sonho centenário
de um outro quilombo)
irremediável inquilino
à senhoria tristeza (2020, p. 68)

Já “Rosa dos Ventos” aponta para as fraturas do movimento negro:

Inútil buscar os rastros da Noite
nos livros de história.
Nossos rumos dormem antigos
sob a poeira da discórdia. (2020, p. 141)

A rosa dos ventos é uma metáfora interessante para o quarteto do poema. O poema revela a insuficiência da história oficial e a necessidade de outras versões da história. Ainda traz para o debate o sujeito coletivo, o nós negro e as suas disputas de narrativa – “os rastros da Noite”. O adjetivo inútil e os dois últimos versos podem sinalizar a melancolia diante dessas desavenças, responsáveis pela fragmentação do movimento negro e de enfraquecimento da luta antirracista.

O poeta explora os múltiplos sentidos que as palavras podem ter, causa impacto quando sabemos se tratar de um sujeito lírico negro e a condição racial-espacial está exposta com todos os seus impedimentos. Assim, o sujeito lírico precisa estar atento para sobreviver e seguir a “Primeira regra de vôo”:

Quando sonhamos
           com o horizonte
a precisão é fundamental. (2020, p. 51).

Neste terceto, a amplidão da evasão e da paisagem complementa a necessidade de ser certeiro. Podemos refletir acerca das confluências que ferem e rasgam o sujeito lírico e a população negra. Ter habilidade para realizar uma leitura do contexto em que se vive e como se posicionar no jogo desigual do racismo são questões que exigem uma consciência madura, mas fruto de inquietações.

Por fim, estamos diante de uma poética com uma perspectiva que procurava fugir dos essencialismos. Com uma postura ora quilombola, ora solitária, Paulo Colina foi conciso, lírico, profundo e fundamental para a afirmação da literatura negro-brasileira contemporânea. E até hoje nos obriga a refletir: “Bastaria ao poema apenas/ a cor da minha pele?”

Rio de Janeiro, dezembro de 2020.

Referência

COLINA, Paulo. Poesia Reunida. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2020.

 


* Ricardo Riso é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mestre em Relações Étnico-Raciais (CEFET/RJ). Coordenador editorial da Kitabu Livraria Negra e Editora (RJ).

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