Prefácio

 Conceição Evaristo*

 Não serei anônima [...] toda mulher que fala é invencível.
Ryane Leão

 

Apresentar um livro é sempre uma tarefa perigosa, pois uma apre­sentação pode resvalar em profundos enganos. Ou ainda se tornar um exercício desconcertante, enfadonho, se não houver uma empatia com a escrita que está sendo apresentada. Mas não é esse o caso desta apresentação, ao contrário. Como apresentar um texto em que a leitura me seduz e aprofunda o meu desejo de escrever um rap? Portanto, não componho aqui uma apresentação da antologia Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta, mas uma tentativa de falar junto com as autoras dos poemas. Ao compor este texto, me coloco apenas como uma leitora que encontra, nas vozes desta coletânea, um lugar em que as falas de outras mulheres, assim como a minha, se compactuam, se encontram no que está dito, no que está escrito. As nossas falas de mulheres e notadamente a das mulheres negras podem ser agregadas como refrão às vozes desta antologia. Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta é uma escrita em confronto ao silenciamento que buscam impingir sobre nós.

Tudo na antologia comemora a posse da palavra em consonância com a posse do corpo-mulher, em sua autodescrição. E nesse ato se afirma a mulher que se nomeia, a que fala e que por isso se torna invencível, como nos diz Ryane Leão, em um de seus poemas. Outro ato de posse se concretiza como um gesto de insurreição. A publicação da antologia que coloca em destaque a escrita de 15 mulheres, que ousam assinalar um terreno, cuja posse é marcadamente dos homens. Afirma-se aqui a ousadia de vozes de mulheres. “Na rua tem arte/Nos muros tem arte/Tudo é arte”, proclama Danielle Almeida. E segun­do a compreensão de Luiza Romão a “poesia é mais que denúncia é revide”. Pode ser apreendida a mesma proposição de que a palavra pode se converter em instrumento de luta individual e coletiva, nos versos de Negafya, quando se lê: “vamos usar a nossa armai que é a palavra”. Em consonância com as vozes anteriores, Mariana Felix diz: “Eu quebro ele é na palavra/ Eu ando armada/ Da melhor arma”. Bor Blue também está convencida do poder da palavra como forma de enfrentamento e conquista, ao escrever “Eu pego a caneta, tu pega arma, eu conquisto na palavra e tu dispara...”.

Fazer da criação poética instrumento de proposição de luta co­meça pelo próprio não uso da norma da língua. Conscientemente a “norma certa”, como advogam os puristas, é confrontada, esface­lada, “agredida”. Há uma escolha conscienciosa por uma forma de linguagem, a qual tenho chamado de “gramática do cotidiano”, isto é: o expressar que surge da comunicação inventada, gestada, gerida no meio do povo. Surge então nos poemas, uma língua dinamizada por uma fala que precisa e busca expor as incertezas, as injustiças, os enfrentamentos do dia a dia do povo. Uma linguagem para contar em versos, as mazelas, as incertezas e também para celebrar as ale­grias de quem tem pouco ou nenhum espaço para dizer. Por isso são criações em que se enxugam as palavras, conscientemente. Singula­rizam artigos que acompanham substantivos plurais, dispensam as desinências verbais nas mais variadas construções, mas todas sabem que as dores, o andar na corda bamba, são situações vivenciais de múltiplos sujeitos. A intenção de garantir uma “gramática do coti­diano” aparece nos versos de Bell Puã, que questionam as regras da língua. “eles querem que/ eu use língua formal! e muitas metáforas/ que eu jogue o jogo da vida/ com suas táticas/ fazer rap?”.

Apropriar-se da língua escrita para registrar uma performance fundamentada na oralidade é também revisitar a história de uma lín­gua imposta... Por isso Luz Ribeiro escreve: “eu tenho uma língua sol­ta/ que não me deixa esquecer/ que cada palavra minha/ é resquício da colonização". Meimei Bastos nos recorda do que não foi escrito e do que não foi e é dito, que pode ser lido e colhido nas entrelinhas. Tudo é verbo. Tudo é palavra. Ela diz: "há coisas nas entrelinhas/ quenão foram escritas/ nem lidas/ mas são verbos/ é preciso lutar."

Não só uma "gramática do cotidiano" está na base da criação poéti­ca da maioria dos textos que compõem a antologia. Figuras e situações comuns aparecem como desenhos no interior dos poemas. Imagens que denunciam o jogo estético e ideológico buscado como inspiração. Uma mulher portando uma sacola é uma visão comum na ambiência de uma comunidade pobre, embora não somente ali. Laura Concei­cão, dizendo de sua própria criação, enuncia que: “trouxe versos na sacola”. Criadora e imagem criada se confundem.

Buscando uma linguagem, ritmada a partir de seus intentos e dese­jos. de suas tensões, apaziguamentos e gozos da linguagem, as poetas se afirmam em seus ofícios de corpo, voz e escrita. Na construção de seus poemas afiançam a certeza de uma lírica própria. Anna Suav afirma que “Aonde uma preta chega, tudo certo, é tudo nosso". Cristal Rocha se reconhece como alguém que “nasceu dependente lírica”. Dall Farra se coloca como alguém que tem a escrita na veia, ao dizer que de tudo que ela escreveu tudo "sangra até agora". A poesia se constitui como algo a perseguir, a buscar em suas vidas, ora como indagações, ora como certezas. Com Letícia Brito apesar da aridez dos tempos, nos rejubi­lamos, pois ela garante que a poesia ainda está com ela, ao escrever: "a poesia ainda me toca". Roberta Estrela D'Alva tendo como mote os vocábulos "adeus" e a expressão "a Deus" assim como os termos "vós" e “voz”, institui um instigante jogo semântico, em uma de suas criações. A poeta e slammer conclui que duvidar de sua voz seria também duvidar da existência de Deus. A voz poética teria uma função demiúrgica?

Sigamos, façamos das vozes presentes na antologia Querem nos calar, poemas para serem lidos em voz alta cânticos de coragem, se­nhas amorosas, signos de encontros urnas com as outras.

Rio de Janeiro, julho de 2019.

Referência

DUARTE, Mel (Org.) Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.


* Conceição Evaristo é Doutora em Letras pela UFF, poeta, ficcionista e ensaísta. Autora dos romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006); e dos volumes de contos Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Olhos d’água (2014, finalista do Jabuti), Histórias de leves enganos e parecenças (2016) e Canção para ninar menino grande (2018). Ganhadora de vários prêmios, seus livros estão traduzidos para diversos idiomas, inclusive o árabe. 


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