Dialética do ipê

 

 Gustavo Bicalho* 

Marcos Fabrício Lopes da Silva está em pleno crescimento como poeta. E agora atingiu o porte de uma árvore frondosa, um ipê florido de raízes fincadas na terra, furando profundo o asfalto de Brasília. Cavando solo árido, o poeta soube, com o tempo, destilar a seiva lírica de um Bandeira ou de um Quintana com muito da ironia de um Machado de Assis, da firmeza sucinta de um Adão Ventura, do humor ousado de um Luiz Gama. Zumbi vai nascendo aos poucos na equação para encarar uma realidade urbana que nem sempre está para flores. "Afroarquitetado", como diz o poema reflexivo que abre o conjunto: "saí do traço de niemeyer/ nasci no asfalto/ quero o barro".

Há um pouco de Exu vestindo seu chapéu bicolor nas páginas desse livro, como quem quer confundir a branquitude em um país de contrastes. É pelo desvio cromático e pelo riso em lâmina fina que se cortam os discursos que cantam uma nação morena-clara, onde é "claro que o escuro não tem vez". Ser Zumbi na capital nacional é uma tomada de posição, um plantar-se na encruzilhada do plano-piloto, interrompendo o fluxo de uma racionalidade burocrática. Ipê dialético. Nessa geografia cruzada, "Braxília" é bem mais que uma homenagem a Nicolas Behr, poeta-símbolo da urbe candanga. Sob os olhos de Zumbi-Exu, seu traçado se reconstrói e se redivide entre "asa soul" e "asa sorte", lembrando que toda cidade pertence -- ou deveria pertencer -- a quem nela habita, e não aos que nela mandam e desmandam.      

E que ninguém pense que, arvorando-se na encruzilhada, o poeta não se mova. Este é um livro de versos soltos, de corpos pedestres que se chocam com as próprias contradições, arriscando o amor em uma cidade profundamente motorizada: "Minha cidade é um tremendo avião/ por mais que ela me diga não/ ela me diz sim/ no escurinho do cine drive-in". Frente às tantas negativas da(o) capital a seus cidadãos, sobretudo aos de pele negra, amor e humor são, por vezes, pontos de fuga. Ou melhor, pontos de encontro de corpos ritmados que se convergem, embalados pelo cancioneiro popular afro-brasileiro, ecoando Gilberto Gil, Jards Macalé, João Bosco, Jorge Ben. Ecoa também Cartola, trazido em epígrafe como a anunciar o tom de um livro em que as desilusões não vêm sempre acompanhadas de ressentimento ou ódio ("Se eu pudesse gritaria, amor/ Se eu pudesse brigaria, amor/ Não vou, não quero"). Aqui, o poeta que já se pôs "aberto para brincar de balanço" escolhe trabalhar os desencontros amorosos pela ludicidade dos jogos de palavras: "existo de mentira em sua vida/ fui um escândalo bem-sucedido/ (...) tudo pronto acreditei/ nada acabado isso quer dizer/ restam as crianças de minha sombra/ brincando com a luz de pique-esconde".

A epígrafe de Cartola também antecipa versos que anunciam/denunciam as escravizações do cotidiano e a necessidade de uma nova abolição no país onde "chicote e cassetete falam a mesma língua". Como se contrapor a essa retórica da violência e seguir buscando novas formas de exercermos nossa liberdade e autonomia? Em tempos de ressurgimento de fascismos de todos os tipos é preciso lembrar, com Roland Barthes, que a língua é, ela mesma, fascista. "Quando o chicote sai da minha boca/ Deixei o saber/ Deixei o saber", canta o Zumbi dos Ipês, com a ciência de quem brinca de driblar com as palavras do poder. Atento aos elitismos ocultos na linguagem dita "popular", o poeta abraça o lúdico para desconstruir ditos, provérbios e máximas que expõem o preconceito em suas raízes. Corta no verbo aquilo que corta na carne, invertendo valores (o bombril se curvando ao "bom brio") e desmascarando podres poderes ("atrás de um doido varrido/ tem sempre um normal de vassoura"). Frase a frase, verso a verso, o jogo poético vai deixando a sensação de estarmos recebendo de volta nossa própria língua e, com ela, nossa liberdade de dizer… e de agir.

O poeta-ipê está em pleno crescimento. Sem esconder os espinhos, nos oferece flores de cores vivas, para além do preto e branco de que muitas vezes são feitos os dias da maior parte dos brasileiros. Ler é também aprender a colhê-las.

                                                                                                                                                                                         Belo Horizonte, Março de 2018.

Referência

SILVA, Marcos Fabrício Lopes da. Zumbi dos Ipês. Brasília: Avá Editora Artesanal, 2018.

 


* Gustavo de Oliveira Bicalho é graduado em Letras e Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. No momento conclui seu doutorado em Estudos Literários nesta mesma Instituição. Membro da Comissão Editorial do Portal literafro, além de criador e editor da crônica radiofônica Momento literafro, levada ao ar semanalmente na FM UFMG Educativa, e acessível também via PodCast. Coautor de Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019).

 Texto para download