Entre giros e ciclos – a poesia, o tempo e formação dos leitores:

40 anos dos Cadernos negros 

Gustavo Tanus*

 Trajetórias

Quando eu nasci, um homem branco me segurou
Pelos pés
Bateu na minha bunda e disse:
– Vai, mulher negra, sofrer na vida!
Pela primeira vez, chorei sentida
Só assim ele se convenceu de que eu estava viva.

Desde então, muitos foram os tapas
Das mãos que me apalparam
Dos olhos que me despiram
Das bocas que em mim cuspiram
Dos ferros que me alisaram

Tapas atrás tapas
Diariamente sovada
Assim me fizeram carne barata
Assim me fizeram mulher calejada
Assim me fizeram dor!

[...]

 Estereotipada, me fizeram objeto
 Retocado, clareado, purpurinado
 Transmitido em resolução HD
 Para que o mundo pudesse ver
 Nas telas do grande irmão
 A mulata exportação!
 [...]

         (Débora Garcia, p. 88-9)

 

Nestes tempos de mais incertezas presenciamos um forte retorno ao conservadorismo explícito, desse modo reascende no país uma pauta reacionária calcada na busca pela manutenção de privilégios, como se fossem direitos. Percebemos, pois, nesses movimentos um ranço do Brasil colonial e a raiva de quem quer a manutenção das linhas de preconceito que embasam as relações desiguais em nossa sociedade. Logo, as recentes conquistas no que tange ao acesso de homens e mulheres negras a lugares sociais que desejam, e uma (ainda tímida) redução das desigualdades da última década ou as importantes ações afirmativas têm sido pontos passíveis de uma crítica sem argumento, superficial e rasa, característica do modo de vida e pensamento classemediano.

Certamente aos reacionários, esses barões e baronesas do século XXI cujos antepassados sempre trama(ra)m golpes, e aos recentes capitães do mato, que atua(ra)m na defesa deles, caberá – desejamos – o crivo da história, contudo a nós – da ponta menos privilegiada das linhas – nunca coube esperar por justiça dentro narrativa oficial da nação, por isso a luta. Sempre houve, nas periferias, nas margens da nação oficial, organizações descontentes dos aparelhos oficiais (ideológicos) repressores. Elas se constituíram nas redes discursivas responsáveis pela manutenção de táticas de resistência frente às vozes hegemônicas. As artes, suas tantas linguagens em suas diferentes formas (Samba, RAP, Hip Hop, literatura etc.) são parte dessas táticas, meio como minorias resistem frente ao poder do discurso oficial, da voz dos dominantes, e intentam preservar suas vidas e culturas.

No campo literário há uma produção que provoca ruído num mercado editorial ainda hoje predominantemente masculino, branco, heterossexual, ligado às classes média e alta (DALCASTAGNÈ, 2012). Entre essas performances ruidosas cabe lembrar diversos grupos de escritores, dentre esses talvez o de maior repercussão, o Quilombhoje. Este grupo vem lançando, há 40 anos, volumes de poesia e prosa afro-brasileira, reunindo autores consagrados e outros recém-iniciados na seara das letras.

Na mais recente publicação, o volume 41 dos Cadernos Negros (2018), é trazida à roda uma seleta de poemas negros, em variados temas e formas, dada a pluralidade de escritores: dos já tarimbados como Cuti, Fausto Antonio, Esmeralda Ribeiro, Lepê Correia, Sergio Ballouk; às novas e novos.

Em diversos caminhos de ressignificação da afrodescendência, possibilitados pela arte, os textos presentes nesses Cadernos Negros refletem-refratam, em poesia, olhares vitais (de existência e resistência) de uma subjetividade negra sobre situação histórica das populações negras em nosso país.

As publicações dos Cadernos... contam com muitas inteligências e mãos, colocadas na roda do tempo e do espaço desde os primeiros insurgentes (Zumbi, Dandara, Maria Quitéria, Luiza Mahin, Luiz Gama, Lima Barreto, Francisco José do Nascimento, Carolina Maria de Jesus, André Rebouças, Cruz e Sousa, Aqualtune, Mãe Menininha do Gantois, Tereza de Benguela, Laudelina de Campos, Esperança Garcia, Maria Firmina dos Reis etc.) até o primeiro Caderno, este que há quarenta anos vem sendo publicado.

Todos esses sujeitos e seus coletivos desconstroem a lógica linear do tempo, esta razão que privilegia uma ideia de progresso que serve apenas para a manutenção do poder nas mãos dos dominantes. Os Cadernos... avançam na espiral, de um “tempo espiralar”, de Leda Martins (2001) – dinâmica de transformação mutacional e regenerativa – completando os ciclos de prosa, em volume par; e poesia, como este volume ímpar. “Tudo vai e tudo volta” (MARTINS, 2001, p. 84).

Em cada ciclo, novas escritoras e escritores são chamados a integrar o movimento, essa dança, e são recebidos pelos mais experientes – Ngangas, griôs, contadores e cantadores que encantam. Em cada giro, vão enredando novos leitores nessa roda e fazendo-a continuar em movimento. Assim, a publicação vem contribuindo para a formação e consolidação de um público leitor negro de literatura afro-brasileira e, com isso, se faz presente e projeta-se para o tempo futuro, num logo ali, e num devir.

Na seleta dos 144 textos que compõem o livro, os poemas, nos mais variados temas e expressões, entram na roda por conta de uma congregação de especialistas, diversas leitoras, pesquisadoras, pedagogas, revisoras, professoras, ativistas de variadas áreas do conhecimento e da cultura (elas são dezesseis) e um pesquisador. Assim, foram selecionados para este volume 46 escritores, sendo a exata metade composta por escritoras. Eles são: Adegmar Candiero; Akins Kintê; Alessandra Sampaio; Beatriz Lima; Benedita Lopes; Benício dos Santos Santos, Bruno Gabiru, Catita; Claudia Walleska; Cristiane Mare; Cuti, David Alves; Débora Garcia; Duan Kissonde; Esmeralda Ribeiro; Fátima Trinchão; Fausto Antônio, Jairo Pinto; Joana D’arc; Joceval Nascimento (Layê); José Jorge Siqueira; Jovina Souza; Jovina Teodoro; Kasabuvu; Leandro Passos; Lepê Correia; Lidiane Ferreira; Luana Passos; Luís ‘Aseokaýna’; Manoel Francisco Filho; Marli de Fátima Aguiar; Patricia Aniceto; Paulo Dutra; Raquel Almeida; Romildo Ibeji; Samira Calais; Serafina Machado; Sergio Ballouk; Silvia Barros; Thiago Amepreta; Tuanny Medeiros; Urânia Munzanzu e Zainne Lima da Silva.

Os organizadores Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa afirmaram, na apresentação do livro, que os cadernos de muitas vozes avançam no tempo permitindo que essas vozes, suas poéticas, construam caminhos de reflexão, afeto e felicidade, para serem trilhados coletivamente. Na “percorrência” dessa trajetória em que acreditamos ser constelações de escritores e escritoras deste volume 41 a outros tantos artistas e ativistas negros, juntam-se uma miríade de asterismos de vários tempos, textos, ideias, fabulações, jogos da/sobre a língua(gem) e culturas.

Esses tempos e seus segredos se roçam e, numa ação exuzíaca, revelam o que são suas dobras, fraturas e acúmulos de ruínas, escombros, esqueletos. Quando se esbarram e as pontas se fundem causam faíscas que permitem entrever os fragmentos de outras épocas e lugares e, com isso, se pode ver e enxergar como é persistente o imaginário racista sobre o negro, mas também a resistência dos ancestrais, como podemos perceber no poema “Modus Vivendi”, de Zainne Lima da Silva, em que a voz poética se aproxima de uma senhora negra e, com isso, percebe que escreve porque essa senhora há tempos resiste.

Em relação aos últimos volumes anteriores a este, são continuadas as epígrafes antes da seleção das poesias de cada poeta, que são frases/pensamentos sobre a própria escrita. Longe de encerrar a leitura do texto, elas contribuem para os descentramentos, próprios da arte literária, que os poemas causam no livro como ideia de livro. Eles engendram a poesia como desafio da linguagem; que consome o ser e o alimenta. Uma oscilação entre escrita e recepção; lúdico como ação de aprendizagens, nesse potencial de transformação de mentes.

É caminho que nos permite pensar o caminhar, partindo da pavimentação de uma língua oficial, para os senderos das outras línguas do país, nas encruzilhadas da linguagem. Vida poesia, ela é transbordamento, insurgência contra a ordem. Rio, rinha; trincheira. Informação, conhecimento, comunicação sobre si e sobre o mundo. Jogo entre mistérios e trabalho com a linguagem para perceber a teia de (con)tradições, e para o desmantelamento dos mecanismos de invisibilização dos negros. Às vezes a poesia pode ser inventário, documento, em outras, toda uma biblioteca.

É tela, afeto, frequências: energia, sinergia; amparo, empatia, impressão da força dos muntuês. É maneira de dialogar com ancestrais e com os novos vindouros; é, portanto, modo de encher-se de assombros diante do acumulado de ruínas da história oficial, contando outras histórias (histórias do Outro) que são proibidas e veladas, diante de um imaginário oficial aparentemente inexorável. Vida liberdade, guarda do corpo. Existência/resistências que engendram o ser; a poesia como estilhaços; musicalidades, ritmos, que desobedecem ao silêncio imposto. Divisão do que é posto como indivisível; a escrita é reencontro, conexões; e, num deslocamento como projeto (de vida, de literatura, de vida literária), e ela alça-se liberdade num “voo do abutre” de Adão Ventura, a perceber as misérias e as injustiças humanas.

Assim, os Cadernos são rumo político, pelos olhares sobre o tempo e o espaço em traços/tessituras/enlaces poéticos. E, para além de uma temática (ab)usada em diversos momentos como massa para estudos e complementação de anedotários brancos, os temas não são o alvo em si, sendo obtidos, construídos pelo ponto de vista, pelo olhar, pela perspectiva das poetas e poetas negros, numa discursiva ação de olhar o presente – desde os pensamentos de longa duração e sua reprodução, em reações deste cotidiano, às quizilas/ações negras contra tais pensamentos.

Com isso, inscrevem-se poesias que versam sobre a autoestima; a construção de uma imagem de si em contraponto com uma imagem dos nós (rumo a um “nós”); sobre o amor, o sexo, os impedimentos para a ação; sobre ser mãe, filha e mulher negras; sobre as tantas violências, contra corpos e mentes negras.

Os poemas versam sobre modos de ser/estar/permanecer vivos; sobre o racismo e o preconceito – essa “força / não natural / que teima / em resistir / como uma praga / que persiste no tempo” (Benício dos Santos Santos, p. 52). Ainda, o livro traz questionamentos sobre os alvos, o mercado editorial, o projeto durativo de extermínio de jovens negros e, dos que conseguem ultrapassar o tempo de juventude, vencendo pontes e obstáculos, como podemos ver nos versos de Esmeralda Ribeiro:

O mundo não me fez promessas.
Bem que o mundo poderia ter feito promessas
De me dar para eu prender
Minha juventude com as mãos e,
Apesar da melanina,
Ajudar a enganar os olhos dos outros [...]

Poderia revestir de couraça
A pele de jovens negros,
assim, sob proteção, nenhuma bala
Poderia lhes ferir. 
Que chorássemos somente de emoção por algo
Que tocasse os nossos corações. [...]

                                          (RIBEIRO, 2018, p. 103-104)

A voz poética termina na indagação de que o tempo, este que se preencheu com os passos dela, pesa-lhe, no corpo; porém, ela, por mais que insista na questão da perda de forças, continua leve, atravessando pontes e barreiras diárias, rompendo-as, por meio de uma “escrevivência”[1] que transita os tempos e permite a construção de um outro futuro, construído em coletivo. A metalinguagem é também trabalhada em vários poemas, e, sobretudo, os textos todos apontam para a formação desse coletivo, nas comunidades, nos quilombos contemporâneos.

A partir dessas perspectivas, os textos reunidos neste volume constroem imagens que estilhaçam o imaginário negativo gestado por anos da instituição da escravidão, continuada pela manutenção do status quo racista. Cantam ritmos em frequências diversas, tratam feridas, contam cicatrizes, saúdam os antepassados, e revelam, a nosso ver, o olhar contemporâneo sobre o tempo.

Daquela velha literatura como “notícias de nós” (TANUS, 2018), que assíduo eram bem mais notícias que apagavam a violência da formação do país, imagens de uma tradição sobre e entre o Mesmo, a literatura negra tem questionado as verdades unívocas e universais, a poética e epistemes brancocidentais, apontando para as frinchas que existem na cerâmica fina do tipo nacional. Acreditamos que ela tem apresentado, em seu fazer poético, os nós como os embaraços em relação à representação e aos impedimentos para a representatividade. Esses nós têm sido desembaraçados a partir do desvelamento das farsas e artimanhas dos poderosos, por um processo de fiar histórias e subjetividades. Os fios são juntados em novelos de uma comunidade sonhada por meio da arte literária, na cabeça, no corpo, na pele das palavras em cujo trânsito – sua performance – se desconstrói a referida noção linear do tempo e também a ideia de progresso, e se movimentam dentro de uma espiral, numa composição das tessituras de tantos olhares em textos, que se deslocam aos leitores em formação. Como escreve Lidiane Ferreira:

Sentença

já derramei mil lágrimas
e pus espinhos em minha carne
agora regurgito pedras


deixo escorrer o fel
enquanto giram os ponteiros
dessa longa espera

         (FERREIRA, 2018, p. 167).

As lágrimas da voz poética, embora vertidas pelo sujeito, pertencem a outros tantos sujeitos. A eles obrigaram, pelo apagamento, invisibilização e aniquilação de suas culturas, a autoflagelação, como se fossem eles próprios a causa dos problemas. No entanto, as pedras, os obstáculos têm sido destruídos pela re-construção da autoestima e, na ação de leitura e escrita, compõem o arranjo constelar de inteligências e sensibilidades que enlaçam insubmissas e insubmissos de todos os tempos, apontando para o já, o aqui e agora de nossa existência.

A esse movimento, permitido pelos letramentos – literário, racial, de “reexistência”[2], como um projeto estético – e a procura por relacionar, das frinchas, cacos e estilhaços, na apresentação do pensamento e literatura negras, cria-se os nós, estes agora inclusivos, como os enredamentos possíveis para formação de uma sociedade sem racismo e mais justa, visando à construção de uma comunidade nacional calcada verdadeiramente na diversidade.

Natal, RN.
10 de março de 2019.

Referências

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo; Rio de Janeiro: Horizonte; Editora da Uerj, 2012.

MARTINS, Leda. Oralitura da memória. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Brasil afro-brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

RIBEIRO, Esmeralda; Barbosa, Márcio (Org.). Cadernos Negros 41: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2018.

SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento Hip Hop. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Universidade Estadual de Campinas, 2009.

TANUS, Gustavo. Entre nós, a representação e a representatividade: imagens, literatura e arquivo afro-brasileiros. In: OLIVEIRA, Aciomar de; COSTA, Antonio Carlos (Org.). Relações étnicas: conexões possíveis. Ibirité: Poesias Escolhidas Editora, 2018. p. 115-126.

 

[1] Conceito e modo de existir/resistir por meio de um projeto de vida e literatura, criado pela escritora Conceição Evaristo, que permeia seu pensamento, sua obra, num fortalecimento para construção de si, em observância da formação de um coletivo.

[2] O conceito foi criado e elaborado pela professora e pesquisadora Ana Lúcia Silva Souza (2009), para observação da complexidade social e histórica das práticas cotidianas do uso da linguagem não só de resistência, como também de existência, ou melhor, de reexistência, que desestabilizam os discursos (cremos que também seus produtos: o imaginário) já cristalizados e validados socialmente pelas instituições que fortificam a pedagogia de uma nação do Mesmo para o Mesmo.

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* Gustavo Tanus é doutorando em Estudos da Linguagem/Leitura do texto literário e ensino pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG, é pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, NEIA/Faculdade de Letras/UFMG.

 

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