Um ebó todo feito de palavras

Lívia Natália*

 

Jogando com o título do belo livro de estreia da poeta Neide Almeida, inicio esta leitura dizendo que, generosamente, a autora nos entrega mais do que prometeu. Recebemos, todas e todos, a oportunidade de testemunhar a autora arriando 21 oferendas aos pés da ancestralidade e, no mesmo gesto, as oferendas são promessas para o futuro.

Estamos ante uma histórica cerimônia: os poemas se transmutaram em Ebós alimentando os 21 Eguns que acompanham Iansã, os poemas são um Ebó de pimenta da costa, que limpa a boca, afia a língua, lava a garganta e liberta o canto da poeta para nossos ouvidos.

Atenta e quieta, ouço, no poema “Em mim”, a lição de que é necessário ser aquela que “inventa passos para andar entre as pedras” e eu, que sempre senti pedras mordendo-me os pés, finalmente compreendo que precisamos de outro corpo que, pela inventiva, repense os passos, já que as pedras são inescapáveis.

Os nós, que também participam o título do livro Nós: 20 poemas e uma oferenda, aparecem continuamente, trazendo, para os poemas, um sentido dúbio de coletividade e de firmeza, nos provocando a pensar sobre o que sustenta nossos passos, ideias e ideais, se fazemos mesmo parte deste “coro de insubmissões que rompem cercos de ocultamento”, como afirma a poeta em “Meus Quilombos”.

Somos todos corpos-quilombos, mais que corpos aquilombados, somos estes seres feitos de matéria e mistério, o ritmo melancólico dos tumbeiros ainda estão nos nossos corpos, ainda informam nossas almas, é desta travessia ancestral poetizada nos 21 textos deste livro que somos parte, e o somos graças ao que dessa travessia relata esta mulher negra-diaspórica.

Neide Almeida nos dá a chance de encontrar, dentro de nós, este ritmo de navio dentro da água, este ritmo de corpos colocados dentro deste navio contra a sua vontade, mas, ante o inescapável da travessia, a poeta nos ensina a acolher e criar outras formas de ser, todas rebeladas: “Meu corpo é um campo ocupado por séculos de rebeldia e por cantos de liberdade”. É isto, somos todos insubmissos, como Neide demonstra no poema Abebé:

[...]

e singro os mesmos mares
que engoliram tantos de nós.
Mas deles ressurjo,
trajando sonhos, desejos
e forças ancestrais.
Mergulho na profundidade dos tons
de nossas peles
e sinto enegrecer ainda mais
o corpo-alma
o corpo-mente
meu canto
minha palavra.
      (ALMEIDA, 2018, p. 37-8)

Como já afirmei algumas vezes, sou das heranças, e Neide Almeida também é. E, quem assim se compreende, dá mais até do que recebeu. Então, o Mar que antes nos engoliu, hoje recebe nossos mergulhos, em lugar dos naufrágios de corpos, almas e subjetividades. Mergulhamos e trazemos tesouros que o Mar guardou para nós: sonhos, desejos e forças. Mais uma vez, mergulhamos, juntos com Neide, e de lá saímos banhados com um “corpo-alma", “corpo-mente” ainda mais negros, e Neide nos diz que, para ela, enxergamos esta negritude rediviva no seu canto e na sua palavra, e ela está certa.

Neste belo livro, tudo é oferenda, e, tal como a mulher do texto final, para todos nós estas memórias estavam cobertas de poeira, numa caixa esquecida em algum lugar da nossa casa-memória. Neide Almeida reencena, para nós, o resgate destas histórias depositando, amorosamente ante nossos olhos, este ebó todo feito de palavras, e de afeto.

Referência

ALMEIDA, Neide. Nós: 20 poemas e uma oferenda. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2018.

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* Lívia Natália é Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFBA e professora de Teoria da Literatura do Instituto de Letras desta mesma Instituição. Poeta premiada e reconhecida internacionalmente, é autora de Água negra (2010), Correntezas e outros estudos marinhos (2015), Água negra e outra águas (2016), Sobejos do mar (2017), Dia bonito pra chover (2017), além do volume infantojuvenil As férias fantásticas de Lili (2018).

 

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