Os sons das conchas: a voz/poesia de Interiorana, de Nívea Sabino

Thamyris Rodrigues*

Gustavo Tanus**

Toda obra literária é, antes de mais nada, uma série de sons de que emerge o significado.
René Wellek e Austin Warren

 

O livro de poesia Interiorana, de Nívea Sabino, foi lançado pela Padê Editorial, em um volume que é envolvido por um involutório em dobradura de papel, cinturado por uma fita prateada elástica.

Este possui um projeto editorial artesanal − costura de três pontos encadernação com miolo composto por in-fólios − e incomum, por alocar a apresentação dentro do papel que envolve o livro. É uma espécie de coleção de conchas, isto é, de poesias, que marca a estreia de Nívea Sabino, no papel impresso, já que é bastante reconhecida nos saraus e nos Slams, que são duelos de poetas, na cidade de Belo Horizonte.

Os poemas selecionados para o livro permeiam sua faceta política e contêm subjetivismo poético (autobiográfico) que representa a multiplicidade de faces da mulher negra. 

O livro se divide em quatro partes: "Não creia em perfeito"; "Nova Lima em pressa"; "Pra mãe e pro pai: ausência sentida"; e "Conto de Piquitita − Pititu − Pi". Nessas partes, vemos que a voz poética trabalha em três perspectivas, que diminuem em intensidade frente às outras, mas não se apagam totalmente, coexistindo nos textos, são elas: o "eu interior", o "interior de nós", e por fim, "nós do interior".

A primeira parte, "Não creia em perfeito", contém 32 poemas, que salientam mais as duas primeiras perspectivas percebidas por nós, tratando, de maneira geral, mais diretamente do amor e a afetividade como matérias, porém sem seguir os velhos modelos das poesias de amor.

É interessante que essa parte se inicie com o poema "Meu traço", em que ela diz "Falar sobre mim / é de uma imensidão / sem rastro". (SABINO, 2016, p. 12); e "Toda escrito", em que a voz poética erige-se como um corpo escrito, composto por vozes: "Meu berro é no verso / sou toda escrito." (2016, p. 13).

Assim dito, a poesia não acontece para cantar estes amores, o amor carnal (perdido, assumido, acontecido), como no relacionamento das personagens "O Tesão e a Graça" (SABINO, 2016, p. 18), a desilusão/ilusão − palavras antônimas, porém sem positividade, ou o amor entre irmãos, como neste poema:

Irmãos de outro lar

Vem de sangue
no olhar
da sangria (meu guia)
de amar

amigo é família
que cresceu
noutro lar                                                               (SABINO, p. 16)

Ou neste, sobre as verdadeiras amizades: "Faz junto", pra sempre / e mesmo / se houver tristeza / não virá / todo mundo / o viver / lhe ap(r)onta / com quem vai junto. (SABINO, 2016, p. 34).

A voz poética (re)cria cenas de conquista amorosa, revela-nos o jogo do erótico, esse velar inteiro em espera do desvelamento. Como podemos ver no poema "Sondagem": "Mira, / arde / Miragem no que toquei / Saudade / Não há de ser / só minha / age!? / Chamei de flor / pra expressar / vontade / paisagem / Moldura em mim / sondagem. (SABINO, 2016, p. 31).

Estes modos de amar e seus efeitos são maneiras que a voz poética utiliza para falar de si, como pessoa, para falar dos amigos que a cercam e para constituir sua realidade (inclusive de interiorana). Com isso, a separação e a solidão também se tornam matéria, como, por exemplo, em "Mendigas de um outro olhar" (SABINO, 2016, p. 28). A poesia de Nívea que reconstrói significados e elabora outros, é repleta de sensualidade e, mesmo, certa lascividade, como nos poemas "O cheiro da mexerica" (2016, p. 15) e "Mirando o peito" (2016, p. 35).

A segunda parte "Nova Lima em pressa" é composta por sete poesias que, segundo as três perspectivas, tratam mais especificamente da última, "nós do interior", a compor as duas primeiras "eu interior", "interior de nós". Dito isso, a voz poética canta a constituição do lugar e a constituição da identidade do Nova-limense, nascido nesta nova mina, como em "Silenciada a ouro" (2016, p. 63):

[...]

O ciclo do ouro
que se esvai
nada fica
pra gente contar

Extração de saúde
gerações marcadas
vidas minadas

De pulmões cheios
falta fôlego no peito
pra conseguir gritar. [...]

Desta parte, destacamos o poema "Lírica de favelada", em que a voz poética compõe-se pelo canto, pelo "encanto provocar / E desmontar / o ódio e / a aversão à cor / que chegam primeiro / do quem eu sou", e continua, dizendo sobre sua formação, no que ela denomina "denúncias líricas": "[...] Li livros / ouvi discos / folheei jornais, me formei ao gosto / do que tanto faz / Meu grito é o mesmo / dos meus ancestrais / de um Amarildo / que não volta mais." (SABINO, 2016, p. 79-80).

A terceira parte "Pra mãe e pro pai: ausência sentida" é uma pequena seção composta por poemas homenagens a seus pais, conforme o título sugere. Eles revelam outra maneira de amar, composta por saudade nostálgica, por reconfiguração do significado da palavra "ausência", "ausência de ver vocês" em que ela está confinada, e ausência como morte, preenchida, pela voz poética, com elementos como presença sentida.

A última parte é composta pelo texto em prosa "Conto de Piquitita − Pititu − Pi", que se aproxima − como tem acontecido com o gênero nestes últimos tempos − da crônica. Esta trata da incomunicabilidade própria do ser humano, que pode ser amplificada por questões de ordem das tecnologias (por ironia) de comunicação, abundantes nestes tempos contemporâneos.

Para quem a viu e ouviu duelar nos Slams, no livro impresso é como se ela nos apresentasse uma face interior que, por ser mais íntima, parece estar "desarmada" das suas estratégias (planos anteriores ao início da peleja) e táticas de combate, estas realizadas no campo de batalha. Esse desguarnecimento das armas usadas nos duelos de poesia não implica em estar desarmada, porém vemos que a voz poética despe-se de sua armadura e nos mostra as sutilezas da representação, as maneiras tantas de se cantar o amor, e de se demonstrar a dor.

Destarte, desse invólucro que contém e guarda o livro propriamente dito, ilustrado por conchas, vemos que é ele próprio uma concha em cuja abertura − côncava − em que aproximamos nossos olhos-ouvidos, escutamos diversos sons e múltiplas vozes.

Referência

SABINO, Nívea. Interiorana. Ilustração de Jupiter Coroada. Brasília; São Paulo: Padê Editorial, 2016.

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* Thamyris Rodrigues é formada pela Escola Pública Estadual Professora Benvinda de Carvalho, ex-aluna da Educafro Minas e, atualmente, é bacharelanda em Biblioteconomia pela Escola de Ciência da Informação, da Universidade Federal de Minas Gerais.

** Gustavo Tanus é professor, Licenciado em Letras, Bacharel em Edição e Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade - NEIA, desta Instituição. No momento finaliza seu Doutorado em Literatura Comparada na UFRN. É autor do volume de poemas A Hagbe que nos guarde (2019).

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