Existência e transcendência negras em Memórias da pele,  de Elisa Pereira

 

Anamaria Alves Dias dos Santos*

 

Lançado na coleção Prazeres Poéticos pela editora Chiado Books, Memórias da pele marca a estreia em livro de Elisa Pereira, mineira de Belo Horizonte que sonha versos desde criança. A capa do volume traz um corpo negro. Quando se abre a obra de arte que guarda as lembranças, completam-se as mãos, braços, a cabeça e as costas de pele preta que expõem as marcas da realidade que a sociedade quis e quer esconder. A estratégia estética presente na capa fará com que o leitor tenha, primeiramente, acesso às dores que o povo negro teve que silenciar por anos e, assim, o impacto se inicia pela capa.

Há um recado ao leitor no primeiro poema que pode ser também um convite à transcendência. Teria a autora feito um chamado à desconstrução do que pensaria o senso comum sobre Literatura e Poesia? “Que ninguém me defina. (Disse a poesia)” (p. 9), na primeira página poética o interlocutor perceberá que penetrar a obra será um convite a uma conversa regada à sonoridade dos versos que transcendem e rememoram marcas coletivas inerentes à negritude. O livro traz um misto de sensações indefiníveis, como nos diz a primeira poesia, transitando entre o natural, o real e o devaneio. Elisa traz elementos naturais em analogia aos sentimentos e emoções humanas:

Adoro a forma como a água escapa pelos cantos das
pedras, apregoando liberdade, louca, alucinada em
direção ao oceano! (p. 14)

O poema fala de uma “revolução aquática” que prega a liberdade e corre em sua direção. Algumas páginas adiante, veremos a água que verte do corpo humano e busca a mesma liberdade:

Sei que desço,
feito lágrimas no rosto de criança.
Meu destino?
É desaguar no oceano. (p. 33)

O livro se divide em 3 partes: “Fragmentos”, “Memórias da pele” e “Para não dizer que não falei de amores”. A poesia consegue trazer com leveza diversos temas inerentes ao humano, vistos de dentro para fora. Elisa Pereira personifica seus devaneios poéticos e seus versos possuem o poder de movimentar o leitor em seu íntimo, pois as Memórias da pele são coletivas, e podem também pensar o agora e o futuro. “Fragmentos”, primeira parte do livro, possui 40 poemas de temas variados que falam da luta e também da beleza de viver.

Estou grávida
de uma casa sem portas
nem janelas,
sem paredes e vielas,
e quando ela estiver pronta,
não terei mais limites” (p. 23)

E ainda:

Eu não estou distraída é que estava admirando o céu parir a lua! (p. 17).

A essência da primeira parte do livro condensa-se em seu último poema: “Somos todos fragmentos de poesia.” (p. 40), em que o humano é poético, cósmico e mistura-se a todos os outros elementos em sua busca incessante de ser. “O que é o novo, senão um lugar dantes conhecido, e perdido dentro de nós” (p. 13). O grito poético de Elisa Pereira é silencioso. No entanto, o livro conduz à fuga sem medos. Por muitos anos foi negado todo e qualquer tipo de fuga ao negro, a evasão proposta por Pereira é subversiva por ser subjetiva. Foge para dentro de si e é capaz de se misturar ao cosmos e se reconhecer em tudo no universo.

A segunda parte, chamada “Memórias da pele”, traz 38 poemas que lembram algumas escrevivências da América. Quando, por exemplo, nos Estados Unidos, os escravos que aprendiam a escrever conseguiam contar suas próprias histórias e falar das aflições da alma que habita o corpo negro, consideravam-se então seres existentes. É nesta parte que se lê as memórias da pele, não apenas da autora. As recordações expõem memórias coletivas. A poetisa traz em seus versos a existência e subjetividade negras. A escrita de Elisa pode ser comparada à da ex escrava americana Harriet Ann Jacobs, que em prosa narrou sua resistência no livro Incidents in the life of a slave girl. Os poemas de Elisa Pereira trazem as marcas da pele preta e clamam por direitos.

Pelo direito de não ser você! Apenas eu mesma. (p. 54)

O único poema que possui título no livro é o “Memórias da pele”, que conquistou o segundo lugar no Prêmio Nacional de Literatura (Ed. 2016)/Poesias Carlos Drummond de Andrade/Sesc-DF. Alguns de seus versos parecem ter sido coletivamente escritos, pois evocam a memória de todo um povo escravizado, posteriormente excluído e invisibilizado, aspectos cruéis que ainda hoje constituem a consciência coletiva negro-brasileira.

Minha pele não tem fronteiras
Não tem classe social,
pele preta!

Rasgada em versos de música,
mesclada a várias cores
muitas vezes coberta de horrores,
outras de amores

Pele que me impele,
pele que me impede.

Dores que se arrastam,
anos a fio, morte.
Morte à pele preta!
Emudeço.
Não cresço, não subo, só desço,
pele que carrego na pele, feito tatuagem.
pele viva, pele nua, pele crua.

Vejo minha pele nas estatísticas dos jornais,
na lista de cadáveres,
no resultado das caçadas diárias nos morros.

 Minha pele esticada no asfalto,
diante das câmeras de TV.
pele que confunde a noite,
e no escuro exala dores. (p. 78)

 O poema que intitula o livro fala sobre o ser social, seus pensamentos sobre si mesmo e sobre o todo, um mundo que o considera e decide como interagir com ele a partir da cor de sua pele. Os versos remetem à escravidão quando falam em caçada nos morros, onde a caça mudou apenas de endereço, mas continua sendo alvo. A partir da pele e suas memórias o poema toca nas dores negras que persistem na sociedade, como as marcas dos açoites e dos selos de mercadoria, que nos dias atuais latejam em seus descendentes e devido aos mais variados preconceitos perduram na alma e refratam na superfície dos seus, ou seja a raça e cor.

A terceira parte, “Para não dizer que não falei de amores” não brinca apenas com o título da canção “Para não dizer que não falei das flores” (VANDRÉ, 1979), mas transporta semanticamente a censura à música, proibida durante a ditadura militar. A proibição do amor romântico ao negro vem sendo composta por vários artifícios desde a escravidão, na qual éramos considerados animais sem sentimentos ou dores e incapazes de amar, mas apenas de manter relações sexuais que trariam ao mundo as crias, filhos de escravos e igualmente cativos. A literatura foi usada como fator de influência nesse sentido ao trazer no negro o ser animalesco e sexual. O preto no amor foi censurado, e para ele sobrou apenas o sexo (DUARTE, 2018).  

Elisa fala do amor em sua plenitude e liberdade nos 10 poemas que compõem a terceira parte do livro. E “para não dizer que não falei de amores” traz também um louvor ao amor próprio:

amor sem pudor, sem vergonha
transparente, sem medo da dor.
amor que se aprende só,
independe do outro

amar o meu ser
todos os detalhes do que sou.
assim como sou
amar a mim mesma! (p. 97)

Amar a si mesmo foi algo não permitido à população negra e até os dias de hoje vemos cenas de racismo que tentam ridicularizar o amor pelos cabelos e a pele escura. O racismo institucional nos deu, por exemplo, uma mídia televisiva branca em quase 100%, bonecas brancas para crianças negras e todos os tipos de alisantes de cabelos. Isso nos aprisionou em pensamentos e atitudes por anos a fio. A poesia de Elisa Pereira é de libertação, mesmo, ou principalmente, quando fala de amor. A ideia de amor e romance foi negada aos negros, e os casamentos na escravidão, quando permitidos, eram somente para que se evitassem as fugas. Atualmente temos a máxima “Eu sou a realização dos sonhos mais loucos dos meus ancestrais” circulando pelas mídias sociais. O amor e a liberdade eram os sonhos mais loucos. Eis uma demonstração de amor livre, leve, erótico e romântico:

Tê-la em mãos
tão como flor.
inocente beleza
amar sem pudor.

Teus lábios serenos
tua pele macia
castigam o meu ser
em puro desejo.

No brilho dos olhos
alcanço tua alma
enxergo teu ser
te amo.

Exausto,
observo teu corpo
esplêndida visão
trazendo-me conforto. (p. 93)

A poesia de Elisa Pereira mostra o protagonismo negro no mundo e o mistura a todos os outros elementos existentes. Os versos trazem devaneios poéticos e sonhos personificados em palavras que a autora descreve em sua poesia como essências e pequenas melodias (p. 38). A obra contém o olhar do negro sobre si mesmo, sobre o outro e todas as coisas que o envolvem na vida, desde o cotidiano até o olhar para dentro.

Ao retomar a capa do livro, contempla-se metade de um corpo negro, cabeça, braços, costas e mãos; quando aberta os traz inteiros. Assim, a proposta estética e literária se reforça, pois para que se alcance a totalidade do sujeito negro é necessário penetrar sua alma e absorver quaisquer rastros ou cheiros. O leitor, por meio dos fragmentos que o interior da obra transporta, exatamente, compreenderá a necessidade de estar em contato com as bases para que se entenda o todo. O negro universo, cósmico e completo. O humano enquanto fragmento de tudo, sobretudo de poesia. O poder sobre si e o poder do amor em liberdade.

Somos a realização dos sonhos mais loucos dos nossos ancestrais.

Referências

DUARTE, Eduardo de Assis. Mulheres marcadas, literatura, gênero e etnicidade. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/149-eduardo-de-assis-duarte-mulheres-marcadas-literatura-genero-etnicidade

JACOBS, Harriet Ann. Incidents in the life of a slave girl. Boston: L. Maria Child, 1861. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/cache/epub/11030/pg11030-images.html>

PEREIRA, Elisa. Memórias da pele. Lisboa: Chiado Books, 2018.

VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores. Rio de Janeiro: Som Livre, 1979.

 

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* Anamaria Alves Dias dos Santos é escritora, graduada em Letras pela UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais e professora de Inglês e Alemão. Como pesquisadora, integra o NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Faculdade de Letras da UFMG.

 

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