Gramática da ira
Prefácio

Carlos Moore*

Os primeiros grandes debates entre artistas negros sobre a função estética e a responsabilidade do artista surgiram, de ambos os lados do Atlântico, na década de 20 do século passado. Entendia-se que havia uma singularidade na criação artística, como produto duma convergência dinâmica entre talento nato, aprimoramento técnico e uma grande faculdade para a imersão subjetiva individual. Mas, qual seria a finalidade da matéria artística intrínseca ou seu impacto social? Num universo fundamentalmente opressor, o artista poderia isentar-se de um compromisso com o oprimido sem violar a substância de sua criação? Existiria um espaço neutro onde sua arte estaria eximida de um posicionamento social? Havia incompatibilidade entre arte e comprometimento social?

No bojo desses debates, surgira o que se chamou de Harlem Renaissance, ou Negro Renaissance, um movimento cultural em que os artistas negros norte-americanos (músicos, dramaturgos, escritores, poetas, escultores, pintores e dançarinos) buscaram novas formas expressivas que refletissem, especificamente, uma estética moldada tanto pelas tradições artísticas do mundo negro como pela singular experiência histórica de seus povos na contemporaneidade. Essa preocupação ontológica já havia sido prefigurada em As almas da gente negra1 de W.E.B. Du Bois, primeira obra que buscara definir um novo prisma teórico e estético para se enxergar as realidades específicas dos negros.

Os criadores negros não eram os únicos que se colocavam semelhantes indagações. Nos anos vinte e trinta, marxistas e surrealistas também se debatiam em torno dessas questões. Mas, contrariamente aos seus colegas criadores do Ocidente, para os artistas e intelectuais negros, existia um poderoso elemento diferenciador que informaria a sua perspectiva: o racismo! Eles eram o produto de sociedades coloniais oprimidas pelo Ocidente imperial; sociedades ocupadas militarmente por exércitos, funcionários e missionários de pele e visão branca. Ou o produto de sociedades surgidas da escravidão racial, onde os negros, esmagados e inferiorizados, enfrentavam a segregação racial, os linchamentos e vexames de todo tipo, por causa de sua cor e sua origem de um continente execrado.

Na sua busca por um novo marco de compreensão da arte como arte e do artista como seu executor, os artistas e intelectuais negros foram levados a quebrar paradigmas sacrossantos e definir um outro olhar. Desse modo, surgira na Europa o movimento chamado de Négritude, corrente que fundiria ambos os processos ao lhes conferir um prisma estético e um campo de reflexão teórico comuns. Isso se deu nos anos trinta, paralelamente à Negro Renaissance, no entanto nutrindo-se dela.

Os exímios precursores e pioneiros Zora Neale Hurston, Arna Bontemps, Nella Larsen, Alain Locke, Claude McKay, Countee Cullen, Langston Hughes, Aimé Césaire, Léon Gontran Damas e Léopold Senghor, em suas produções, tiveram o mesmo grau de preocupação tanto do conteúdo ético e social como de seu aprimoramento estético. Conscientes do saldo desfavorável às mulheres e homens de pele negra que o racismo produzia constantemente, arquitetaram a noção-práxis da Negritude como teorema de contraposição à inferiorização racial. Assim, desenharam um andar negro, para transitar nas ruas de um mundo negrófobo, e um olhar diferenciado para disciplinar sua sensibilidade artística.
Essas reflexões me remetem a Nelson Maca, que se auto define como artista, poeta e negro simultaneamente. Inimigo da “neutralidade” artística, ele insiste em ser relevante para a época que lhe tocara viver. Sua expressão de artista se insere indiscutivelmente no caminho estético-teórico aberto por Césaire, Cullen, McKay, Hughes e outros grandes poetas negros do século XX, cujo posicionamento firmou a indissociabilidade entre ética e estética, beleza e protesto, técnica e premência social.

Porque a obra dos poetas é feita para ser dita, tornam-se criadores sobre os quais se exerce uma pressão maior para que sua produção seja a expressão do clamor popular. Essa capacidade de comunicação imediata de boca a ouvido os torna agentes culturais potencialmente contestadores. Os poetas se inseririam de maneira ainda mais contundente num universo de fortes tradições fincadas na narrativa oral (oralitura), seu ambiente natural. A inserção poderosa do rap no ambiente artístico do mundo africano e diaspórico é testemunha desse fato. Não seria à toa que à frente da Harlem (ou Negro) Renaissance e do movimento da Négritude estivessem sempre os poetas.

Maca responde à pressão social com uma poesia cuidadosamente articulada, vigorosa, dilaceradora. Seu compromisso é com as causas sociais. Seus versos repousam num andaime sociológico contemporâneo; aquele de nosso dia a dia num entorno hostil às demandas de reparação histórica e/ou de equidade social.

Ele investe seu talento no ato de desnudar as máscaras mutantes da opressão. Quer revelar a hipocrisia ambiente, sacudir a complacência coletiva. Canta para os surdos e escreve para os “analfabetos sociais”, aqueles que ainda não vislumbraram a origem de sua degradação. E não lhe importa de maneira alguma a opinião das elites, só a dos serviçais:

Faço versos para quem não lê poesia
Faço apenas o que eu devo
Traço um pacto com quem não me vê
Escrevo para quem não sabe ler
Agravo o desespero de minha própria revolta
Intensifico a Ira de meus gestos e pensamentos

Não há desligamento entre iniquidade e recusar assistência àqueles que se opõem a ela. Diante da opressão, o poeta transforma-se em guerrilheiro. Andar sigiloso. Emboscadas engenhosas. Ataques fulgurantes. E, logo, a fuga para a opacidade protetora do mato-verbo:

Sou poeta,
E como poeta posso ser preto militante
E como preto militante
Posso atirar pedras nas vidraças da casa branca

Sou poeta,
E como poeta posso ser razão divergente
E como razão divergente
Posso levantar ainda hoje meu quilombo de palavras

Sou poeta,
E como poeta posso ser maloqueiro
E como maloqueiro
Posso cagar no jardim das musas perfumadas

Sou poeta,
E como poeta posso ser Ogum
E como Ogum
Posso cortar a cabeça dos malfeitores e traidores de plantão 

Sou poeta
E como poeta posso ser eu mesmo
E como eu mesmo
Posso transformar em gestos o amargo de minhas palavras

A analogia militar não é exagerada; trata-se, efetivamente, de guerra. Uma guerra sem quartel, primeiro contra a alienação inserida no coração de seu povo negro:

Eu tenho que dizer coisas que são justamente para te sacudir,
Brother
Um espinho rude na memória desfalecida e um soco na boca
do estômago vazio
Porque você insiste em acreditar no discurso que o seu algoz
forjou a chicote
Este sorriso cordial na face, mas essas cicatrizes nas suas costas,
negro
[...]
E você se vangloria em dizer que o Deus é único e que não há
raças distintas no céu
Mas chama os orixás de demônios e assimila a unidade cristã de
tupã na lição de folclore
E você diz cheio de orgulho “eu sou brasileiro e esta é a minha
verdadeira terra”
Mas vota no homem rico adulto branco herdeiro de senhor de
engenho e capitão do mato...
Se não fosse você a babá do herdeiro da babilônia e o PM que
metralha os filhos da favela
Eu não teria piedade se não fosse sua a memória perdida e a
pele desde sempre preta
Se não fosse, finalmente, você, ainda o confuso homem de pele
preta e máscaras brancas 

O poeta fala com autoridade das realidades de um mundo preterido, injustiçado e condenado à inferioridade perene. Desmascara a hipócrita asserção de cordialidade racial (aquela que versa sobre o “amigo negro, a avó negra, o bisavô africano e a babá querida” como se fosse um parente), e atira, certeiro. Metralha o punho de ferro enfiado em luvas de pelica chamado de “democracia racial”:

Oh!, meu Brasil verdadeiro
Não me iludo mais com tuas falácias
Devo mesmo apagar essa longa mentira
Devo mesmo cobrar esta dívida antiga
Devo mesmo dizer que não há mais dúvidas

Nos convoca à vigília permanente sobre aquele passado ímpar que se repete num presente igualmente indigno:

A vigília é constante aos que compram e vendem a vida dos outros,
Que etiquetam as consciências com os algarismos baratos das
mentalidades coloniais

Nos fecha a porta às madrugadas felizes do bêbado; nos veda a amnésia como opção; e convida-nos a uma insônia permanente até a chegada do verdadeiro amanhecer:

Seu bisavô submete o meu avô ao doce inferno colonial:
Agrilhoado pelos pés no trabalho das caldeiras acesas
Sete oito meses ao ano Vinte e quatro horas ao dia
Este é o primeiro tratamento de choque de meu avô
Esta é a primeira tentativa de seu bisavô
De domar os impulsivos e recalcitrantes

Em nenhum momento tenta dissimular a função prometeica do seu verbo. Cada verso é modelado seguindo uma anatomia histórica discernível. A intenção é que, à força de atirar sua pedra-prosa repetidamente, acabe por atingir a turma muda e adormecida:

À luz clara do sol do porto
Aparece uma coluna de esqueletos
Cheios de pústulas Com o ventre protuberante
As rótulas chagadas a pele rasgada Comidos de bichos
Muitos não se aguentam em pé Tropeçam Caem
E são levados aos ombros como fardos
E são despejados como coisas num mercado imundo
Negociados como peças neste país nojento

Aponta para aqueles tempos em que ele, também, dormia inconsciente sobre o peso da raça, preso da amnésia induzida pela sociedade que pisa racialmente sobre as cabeças negras ao tempo que nega a raça:

Eu
Que não sabia o significado da palavra
Pigmento
Eu
Que não sentia o peso de minha
Melanina
Precisei apanhar um tanto
Para pensar um pouco
Precisei distender meus sentidos
Para sentir minhas dobras

Num ato de candidez absoluta, o poeta desnuda-se, oferece-se como exemplo da infância agredida pelo olhar negricida, e de uma adolescência sequestrada pelos demolidores mitos ariano-cêntricos:

Quando pequeno
Meus ouvidos mirins já captavam falácias
Pretinho incomodado
Esperava ser escolhido por eles
para as brincadeiras
deles
[...]
Mesmo assim, também cobicei na adolescência
a pele rosada
das menininhas mais cobiçadas do colégio
deles

Numa descrição que ecoa as páginas mais lancinantes de Frantz Fanon ao descrever, em Pele negra, máscaras brancas2 a alienação racial imposta ao negro, o poeta eviscera com precisão clínica o modus operandi do pensamento-sistema nazista; aquele que funda valores na cor da pele e fixa hierarquias perenes nas feições, na textura dos cabelos e na estrutura do nariz:

E também acompanhei os concursos de misses
deles
pela tevê
deles...
e me iniciei nas revistinhas dinamarquesas, francesas, suecas
deles
Sonhava e mais nada
Minha aparência não sustentava as expectativas
Minhas

Mesmo assim atropelada, a alma de Etiópia se recusara a morrer, e do fundo da memória estilhaçada ressurgira o verdadeiro Eu, resgatado das águas de um novo Nilo além do Atlântico:

Na redescoberta de mim mesmo
desinteressou-me de vez
as princesinhas nórdicas
deles.
Percebi o valor da minha cara
Recusei a imitação das máscaras deles

O novo Eu, já ressuscitado da morte-alienação nas águas vivificadoras exaltadas por Césaire no Caderno de um retorno ao país natal3, leva o poeta a proclamar seu triunfo sobre o longo inverno falaz:

Agora acredito
Ser o vigor em pele, carne e osso
Aquele que sabe das nossas coisas
(e das deles...)
Sei que sou belo
(e em que consiste a beleza deles)

Ele até se renomeia, desta vez geograficamente, como que para melhor se inscrever na ecologia humana da qual seu povo fora apagado pela mão inimiga:

Meu nome é Áfricas
Sou Diásporas
Agora fim das fronteiras e transplante impossível
Porque meu lar sempre foi e será busca
Meu tempo
barco em movimento
Minha geografia
destino

Agora nos incita à posse de todo o território-nação por nós construído, sem jamais abrir mão da seiva materna do perene Continente referente:

Oh!, meu Brasil verdadeiro
E mesmo que não seja a tua vontade
E mesmo que seja para o desespero geral da nação
Diga aos vermes que eu fico

Com esse “diga aos vermes que eu fico”, o poeta coloca um ponto final à toda “conversa” estéril: “mestiçagem”, “babás-parentes”, “meritocracia republicana”, “pós-racialismo”... Descarta o convite para viver de costas às realidades de seu tempo em troca do conforto individual. Denuncia os que optam hoje pela troca desigual da temporada dos negreiros:

Almas sebosas formadas em filas compridas e sorridentes
Moscas felizes que sobrevoam rasantes as fezes que sufocam os ares
À espera da hora exata de lamber as botas do chefe,
À espera da hora oculta de oferendar a delação premiada!

Monologa em cumplicidade absoluta com Fela Kuti, rebelde entre os rebeldes, e traça o sentido de sua missão: travar combate com o inimigo invisível que já conhece e reconhece:

Bom dia, FELA
Bem vindo a toda esta merda chamada Brasil!
[...]
Filho disperso, onde quer que esteja assentado meu rosto
coberto de passado
Ouço tuas palavras proféticas se materializando nessa nossa
Mãe traída.
Por onde quer que eu vá carrego também o cheiro dos esgotos
dessa África que te coube
[...]
A despeito do espaço e do tempo que me separam de ti em
matéria bruta
Sei que, por assim dizer, teu sopro sonoro é tua arma, parindo
meu coração em conflito
[...]
Tenho encontrado aqui a mesma escória que tem colocado a
África andando pra trás.
[...]
Aqui, nesta fatia de país chamada exclusão, passeio ao noturno
dos dias
Sob a visão de corpos pretos putrefatos iluminados ao luar.
[...]
Os mesmos vagabundos também, aqui, estão no poder,
[...]
Pode ter certeza que nunca oferecerei a outra face.
[...]
Estou ansioso para colocar minha comuna no centro do
universo.
Rejeito categoricamente a estrada marginal que me guiava para
fora do problema.Desconfio da beleza sem tensão que tem tomado esta palavra
– periferia.
[...]
Sim, Parceiro,
Eu sei que sou o centro do problema.

O poeta quer é provocar uma irreversível crise moral na alma dos injustiçados amnésicos - de seu povo. Quer ressuscitá-los com a ira dos Sábios. Quer incitá-los a arremeter contra a ordem arcaica dos que derivam privilégios e poder da negritude prostrada. Quer dar voz às gargantas ressecadas... Quer saciar sua própria sede...Quer acabar com toda seca.

Versos voluptuosos como as máscaras do Benin, cortantes como o fio da navalha, semeiam o caos nas igrejas complacentes. Maca demole, com suma elegância, os castelos de prata erguidos com o sangue escravo. Leva a sério a letalidade do seu verbo. Obriga as palavras a serem sérias. E compele-nos, por sua vez, à reflexão.

Referência

MACA, Nelson. Gramática da ira. Salvador: Blackitude, 2015.

 

1 W.E.B. Du Bois. The Souls of Black Folk. New York: Dover Publication; 1994.

2 FANON, Frantz. Black skin, Withe Masks. Londres: Pluto Press; 1986.

3 CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine; 1983.

* Cubano radicado no Brasil, Carlos Moore é professor, cientista social e Doutor em Etnologia pela Universidade de Paris 7. É autor, entre outros, de A África que incomoda (2008), O marxismo e a questão racial (2010), Racismo & sociedade (2.ed., 2012) e da autobiografia Pichón (2015), todos publicados pela Editora Nandyala, de Belo Horizonte.

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