ACHADOS

 

"a. nesta mão eu te trago a estrada suja de suor,
nela escrevi meu nome, dela reconheci a firma,
apesar da dor e do sofrimento, muitos anos correram
até eu chegar aqui, com este testamento
todo timbrado de armaduras e distâncias.”
(Adão Ventura)

 

Tava já passando a vez do engraxate. Aquele ofício dava pra nadinha mesmo. Rendia uns trocados que mal acudiam o picolé, o aluguel da bicicleta e outras bobaginhas de economia rasa. O mais era carregar aquele despropósito de caixa às costas, batendo de porta em porta. Serviço cansativo e de pouca glória. Já era tempo de pensar noutro oficio. Não fosse pela sensação de ficar ali na zona boêmia, caçando um serviço mais avultado das mulheres-damas, a desistência já teria arriado a caixa e o tempo consumido com as escovas, graxas, tintas e a flanela de realçar o lustre e fazer um ritmado bonito. Dava até para tirar um samba e alguma justificada gorjeta. Ficava por ali perambulando, como quem não quer nada, me ardendo de vontade de ver alguma safadeza. Um desprevino qualquer, era a conta da cafetina repor as coisas ao seu devido lugar: ─ Moleque atrevido, lugar de esperar sapatos é lá fora! A orelha ardia em brasa. Valia a pena o risco, só para sentir aqueles perfumes e ver aquelas mulheres todas pintadas e de vestidos extravagantes, perdidas em nuvens de fumaça. Mas ficou nisso. Nas penumbras. Naquilo que não alcançavam os olhos o fermento da imaginação completava. Lição do Capa Preta.

Chegava-se ao fim de um ciclo econômico. Urgia mudar de negócio. Foi a vez do mercado. Menino pequeno é que nem o tinhoso: aparece e desaparece num piscar de olhos. Só fica a marca do malfeito. Uma fruta ou outra, surrupiada com categoria, não ia deixar ninguém mais pobre do que eu. Valia a lógica de quem tem mais... Depois, era demais tormentoso e cansativo carregar aquele cesto que mais parecia um balaio acompanhando que nem rabo de cachorro vadio as pechinchas das madames e seus bate-papos sem fim. Daí, uma bananinha maçã, bem madura, pulava da cesta para recompor as forças na peregrinação. Às vezes, acendia a lembrança da maçã. O coração palpitava. Corria a mão por sobre as bichanas, vermelhinhas, danadas de cheirosas. Coração disparava. Secava a boca. Faltava atrevimento. Maçã é comida de rico. Aprendizado pela falta. Ela deve saber quantas tem. Eles contam. Dá pra mexer, não. De banana ninguém faz conta. A mexerica cheira muito. Não dá para disfarçar.

Não durou muito o ofício de esterqueiro. A bosta do boi e do cavalo era posta para secar no quintal, depois batida com um cacete até ficar sem grumos. Só comprava quem tinha canteiro de flores ou de verduras. Era costume ter-se ao fundo do quintal alguns canteiros com legumes, verduras plantadas de sementes, alguns remédios (funcho, hortelã, cidreira, boldo, etc.) e um pé de pimenta malagueta, por sabedoria esquecida. Pagavam pelo saco de aniagem, transportado num carrinho-de-mão de fabricação própria, preço de merda. O alumínio e o cobre, vendidos no ferro-velho, tinham paga

miserável. O truque de amassar a lata com ferro ou pedras dentro, nem deu para ser utilizado. Seu Vuco-Vuco era bem vivido em sua profissão. Ninguém queria passar a vergonha de ser apanhado com a mão na massa. Além do mais, era conhecido do pai.

Paralelamente a estas, corria outra atividade, também de carregar. Um parente cismou de engordar um porco. Ganhou o tal suíno lá de não sei quem, fincou uma meia dúzia de lascas de aroeira no fundo do quintal, uniu a elas umas tábuas e delimitou a residência do dito. Fui contratado para alimentar o bichinho. A lavagem era apanhada no centro da cidade e levada para o bairro, todas as tardes. O miserável ia ajudar no enxoval do meu parente que tinha noiva para casar. Quatro arrobas eram o bastante. Como paga, aos domingos, era garantida a matinê das duas, no cinema da praça do Hotel São José.

Tarzan era forte e bonito. Vestia-se que nem eu. Nadava que nem um danado. E andava no meio dos bichos. Dele deixei de gostar. Ao querer imitá-lo, na sua fortaleza e esperteza de passar de uma árvore para outra, Zé Maria Curiango, sem saber de meus propósitos e sem malícia, comentou que eu poderia fazer um filme de Tarzan, mas, no papel da companheira dele. Foi a primeira desavença com o filho de Dona Mariinha. Talvez a única. Bastaram-me poucas brigas para assentar fama, que administrei até pelos doze anos.

Alguns fatos duraram por uma eternidade, embora acontecesse apenas uma vez no ano. A exemplo, o Natal. Natal era festa da diferença e dos rancores não explicitados durante o ano. Vinha acompanhada de uma música que dizia: "botei meu sapatinho na janela do Quintal / Papai Noel deixou meu presente de Natal / Como é que o Papai Noel / Não se esquece de ninguém / Seja rico ou seja pobre / O velhinho sempre vem." Tia Mana, ao se exercitar em fazer diferente, mais ressaltava o que não pretendia. Tirava do pouco que recebia como empregada da torrefação de café do Sr. José Trindade, com que contribuía para o sustento da casa, e comprava balões que soprava à noite e amarrava na viga da sala que dava para o corredor e separava os quartos da cozinha. Esta cena se repetiu por alguns anos. A ela íamos, invariavelmente com afoiteza, para terminá-la com muita raiva, inveja e choramingos. Nem bem amanhecia, os primeiros raios de sol nos encontravam na frente da casa a jogar nossos balões como se fossem bolas de futebol. No tempo em que a avenida era terra viva, ainda duravam algumas pelejas, desde que não nos empenhássemos em bola dividida. Depois que colocaram cascalho... Logo apareciam outros meninos com suas roupas novas, sapatos, bolas de verdade e até bicicletas. Havia sempre algum descuidado a nos perguntar o que o Papai Noel nos havia dado. Naqueles momentos, eu me detestava e ao meu pai, por ser preto, pobre e feio. Papai Noel parecia não gostar destas qualidades. Pois, não havia meio daquele velho barbudo, intencionalmente míope, atender a nossas intenções. Faltou sapato. A música pedia. Não havia remédio. Quando se conseguiu, não se remediou. Depois da janela do quarto do casal, à frente da casa, havia mais uma, pequena, num dos três quartos. A janelinha fora aberta com tanta esperança e certeza que, por momentos, a realidade fora como a do sonho da valsa. Havia uma aura por sobre o sapato, fracamente iluminado por preguiçosos raios de sol. Seria o presente? Era mentirosa a letra. Ele não

vinha para pobre. Nada poderia dizer o contrário. Conhecimento vivido é fé, nada arreda. Nem ameaça de cruz. A primeira mentira pressentida revolve o estômago. Falta-nos o amparo da hipocrisia. O aprendizado sinaliza: a sensibilidade pode não ser boa companhia, mas é a nossa marca d'água. Igual frutos, amadurecemos desiguais. Primeiro, do lado exposto ao sol. A bronca subiu até Deus, por ter-me deixado nascer ali, naquela família que só sabia crescer como erva daninha.

Aí, deixei de ser primário, ingressei na Escola Profissional Umbelino Martins, recém-criada e administrada pela Estrada de Ferro Central do Brasil. Ia aprender ofício, ser ferroviário. Exigência do pai. De início, já sabia que não ia dar certo, mesmo com tudo concluído: expectativa, formatura, aplausos e quatro anos de peleja. Não me adestro em mecânica, naquilo que é repetitivo, sem imaginação. Não me via maquinista, percorrendo itinerários de ferros em bitolas estreitas, sem autonomia de atalhos, submisso a traçado pré-determinado, com hora precisa para sair e chegar. Por mais poéticas que pareçam Maria Fumaça e a encantação de sua buzina, penso nelas mais como passageiro que condutor. Era necessário ter profissão. O pai determinou. Os ferroviários eram bem conceituados econômica e financeiramente. Tio Manoel desbordava exemplo. Ao voltar da "cidade" com a Tia Chica, desembrulhava todas as compras feitas para si, para a mulher, para a casa e para os filhos. E se iam soberbos.

A maioria dos professores era de ex-alunos, vindos de outras escolas. Professor Juvenal Caldeira Durães, que levou para o caráter o sobrenome, uma exceção. Era da terra. O gênio, professor Joel, criava mil utilidades. Inventou porta que se abria sozinha, quando a gente se aproximava dela. Historicamente, desvelou Ali Babá, com grande vantagem: não precisava senha, bastante se chegar à engenhoca para ela se abrir despudoradamente.

A Igrejinha, como carinhosamente era chamado o Santuário do Bom Jesus, está plantada a dois passos de casa, no outeiro da Rua Belo Horizonte. Voltada para o poente, contempla à sua esquerda a Catedral e à sua direita, a Matriz. Abençoando ao fundo montes esbranquiçados. Na corda do arco imaginário entre uma e outra, mira complacente a minúscula Igreja do Rosário. A primeira estação dos ternos de catopês que desciam do Cintra com destino a ela era no Santuário. Caixas, chocalhos, pandeiros, violas, penas e cantigas de letras indecifráveis enchiam de som, colorido de fitas, reflexos de espelhos e rodopios os arredores do cruzeiro à frente da porta principal. Reis e rainhas, príncipes e princesas realizavam nossa imaginação atordoada pela emoção. Zé Preto cantava mais alto que o cego Lauriano, rivalizando-se com as caixas. Servida por minúscula praça de mesmo nome, impede a progressão da Rua Belo Horizonte para, logo depois, ceder vez ao Pai da Aviação, numa humilhante avenida de pouco mais de cem metros. A Turma que gravitou ao seu redor é realidade viva, bastante encontrar um desses personagens, para tudo recomeçar. Justino é uma enciclopédia viva. Fazíamos enormes caminhadas filosóficas. Não raro, íamos até a zona boêmia analisar a degradação dos sentidos. Nossa maior tristeza era ver o Padre Jota babando de bêbado sobre as mulheres e elas repelindo-o. Lembra-se de casos e atribui-me fatos com os quais não atino mais. Passo-lhe o troco.

Estes são os achados. As lacunas entre uma coisa e outra, não

iluminadas pela luz da memória, são os perdidos..., que poderão ser achados, se me faço entender. Donde os criados, recriados e mal criados. Cabe a cada um escolher. O propósito não é o de “unir uma ponta à outra”, como pretendeu o Bruxo do Cosme Velho, mas confesso que me atrai o sabor em reatar, urdindo, invencionando e confundindo o real com o idealizado, os fatos com as pessoas.

(Achados, p. 23-28)