eu falo as vozes de totunha, do avô mazola, do tio balê e de toda uma nação de gente que, sem saber, carregou no dentro de si a voz dos cantos, a felicidade, a angústia e uma história que se perde no seu começo. trivó duzinha cozinhava ovos com olhar dos olhos (manduca fazia correr o que não tinha perna), e derramou em meu sangue esse calor de poleiro, de algazarra de penas e cantoria. vai longe os conselhos de zefa, as garrafadas de pantião, as rezas de segredo produzindo boa cura, mesmo naqueles que não se viam pelos olhos da presença. falo sem força de querer ou desejo de pensar. é corredeira d'água, correndo em pedra de seixo, em grandes quedas e sem evitar grotão. é qual pensamento meu. de lá vem sofrimento que me dói aos ombros, me pesa as pernas e me cansa o corpo. essa coisa de fala que fala essas coisas de sem viver, vivido, sem avistar, já sentido e quando visto é reassombro de reencontro. eu falo por totunha, mazola e balê: príncipes e reis, princesas e rainhas. de mim nada sei, nada falo, nada quero para. me perco no zarolho dos olhos da meia-noite. me reassumo. quero que ouças o canto da flauta de osso e tenhas maneiras suaves de bater o coração, ao possuir tua suave dona. tenhas tu maneiras suaves de rasgar o pão e repartir teu sangue, e participarás do mistério do riso que borbulha em luz de sol, inda que meia a noite; quando serás ceia de ti mesmo. eu falo a voz do vento que zune e tal que nem flauta seus elementos modulam em minhas cavernas suas melodias. apura-te que me resumo e um tan tan tange longe, tan tan tange longe, tan tange longe, tan tange longe, tan tange longe, tan tange longe...

(Cadernos Negros 19, p. 186)