Águas da Cabaça: escrita de mulher-rio que não corre sozinha

Fabiana Carneiro da Silva*

 Prefiro pisar em areias que movem
o mundo
E que em um único segundo,
Traga mar onde eu ir....
Seja no asfalto urbano e penoso
ou nos afluentes dos rios
Gosto de banhar-me de todas as águas
E o mar onde eu ir....

(Elizandra Souza).

 A despeito de um histórico de invisibilização e/ou exclusão dos cânones nacionais, a produção literária negra-feminina no Brasil remonta ao século XIX – quando Maria Firmina dos Reis já fazia públicas suas tramas – e constitui uma malha tecida delicadamente por autoras que, ao longo desses séculos, fizeram da experiência racial, num país marcado pela estigmatização dos sujeitos negros, bem como de suas representações, substrato de escritas detentoras de potência estética e empenhadas na (re)elaboração de universos simbólicos a partir do reconhecimento de uma ascendência africana. Desse modo, numa mirada sobre tais produções, é possível notar, conforme indica Leda Maria Martins, que: “Quebrar os ritos de ficcionalização da mulher negra, tecer outras dobras, desdobrar seus contornos e alinhavos, ferir as imagens viciadas são atos performados por esses textos, que desvelam, na rasura dos véus da tradição poética e ficcional, outras possíveis silhuetas do feminino corpo da negrura” (1996, p. 119). Em direção que dá a ver uma das facetas desse corpo, escoam as Águas da Cabaça de Elizandra Souza.

Publicado em 2012, como ação de um projeto contemplado pelo programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Secretaria de Cultura do Municipal de São Paulo, o segundo livro da poeta, jornalista e ativista paulistana transfigura a negritude em experiência de linguagem e configura um trajeto pessoal de movimento-rio comprometido com o encontro de outras mulheres-correntezas a fim de desaguar num mar que é ponto de chegada, mas também origem de força ancestral. Na obra, é notório o percurso integrativo de vozes, o qual explicita-se já em seus paratextos textuais.[1] A dedicatória do livro presta homenagem e coloca em simetria o pai da autora, Felicio José de Souza, a poeta Maria Teresa, o grupo de mulheres Capulanas Cia. de Arte Negra e “todas as mulheres negras que espalham suas sementes” (SOUZA, 2012, p.05). De modo análogo, nos agradecimentos podemos rastrear por meio dos muitos nomes citados uma genealogia da formação e circulação da poeta, na qual organizações como Hip Hop Mulher, Frente Nacional Mulheres do Hip Hop, Cooperifa e Ação Educativa se conectam aos amigos que anteciparam a leitura crítica do livro, dentre eles Allan da Rosa e Luciana Dias, e formam uma rede da qual também participam a família da autora e os Orixás (cuja evocação demonstra o alinhamento de Elizandra Souza ao universo religioso de matriz africana, presente em inúmeros poemas).

Destaque especial, contudo, é dado nesse segmento, como também no prefácio, pósfacio e nas epígrafes de cada uma das partes do livro, à atuação de outras mulheres negras, escritoras e artistas. Nesse sentido, inscrevendo-se no contexto de produção literária periférica da cidade de São Paulo, a obra tem como traço singular e premeditado o fato de ter sido produzida exclusivamente por mulheres negras participantes e/ou colaboradoras dessa cena. Nomeadas como “Parteiras”, Salamanda Gonçalves, Renata Felinto, Nina Vieira, Mel Adún, Priscila Preta e Carmem Faustino foram responsáveis, respectivamente, pela capa, ilustrações internas, diagramação, prefácio, posfácio e revisão do livro e dividem os créditos da publicação com a autora, que reconhece a importância de cada um desses elementos para a composição geral da obra e faz questão de sublinhar e valorizar o protagonismo das parceiras, em sua dimensão material e simbólica. Nesse sentido, a exaltação do gênio e da individualidade burguesa que marcou a figura do escritor ocidental, cede lugar a dimensão coletiva da elaboração artística que caracteriza os circuitos negros de produção cultural em seu empenho de constituir-se autonomamente.

Na dicção de Águas da Cabaça conflui, assim, o vigor do encontro dessas águas tantas que correm lado a lado. Os 103 poemas constituintes do livro estão divididos em cinco seções, as quais, por sua vez, conformam cinco anos de produção da autora, compreendidos entre 2007 e 2012. Fazendo uso da liberdade formal em diálogo com estruturas populares, com acentuada oralidade constituinte dos versos, os poemas de Águas da Cabaça são heterogêneos mas, em seu sentimento fundante, não ocultam o vínculo com o caráter crítico e transformador do Hip Hop, bem como a correspondência com as discussões e avanços dos movimentos negros no período de sua escrita, dando a ver uma poética que rechaça o “Meio-Termo” e posiciona-se “Em legítima defesa” de modo a lograr um “Poema Novo” que seja capaz de, a uma só vez, acolher “os seus” e confrontar a ideologia da branquitude:

Quero escrever um novo poema
Que seja um afago nos crespos cabelos
Um cafuné dedilhado na nuca, sem algema
Um carinho no nosso eu, reforçando nossos elos.
Palavras para os que não negam amor
Navalha cortante nos ouvidos do opressor
No papel libertador, pétalas suaves balançam
Conversa informal como contratos de confiança.

                                   (SOUZA, p. 31).

A confiança na palavra (e no acesso a ela) como emancipação para sua comunidade surge nesse poema e em muitos outros, corroborando a escolha política da poesia como uma das formas de estar no mundo da autora. No livro, essa pulsão combativa é entrelaçada a uma escrita de si por meio da qual, sem deixar de se circunscrever num espectro mais amplo que compreende sua identidade enquanto mulher negra em luta, o eu-lírico afirma sua subjetividade particular:

Procuro escrever na minha poesia
a leveza das crianças nas costas das mães,
as mãos calejadas que não recebem
a beleza das flores…..
as florestas que sangram leite.

Como quero escrever
as lágrimas cristalinas das rochas,
as Mjibas e as Zapatistas de mãos dadas
lutando de armas em punho e
de beleza libertária [...].

                                   (SOUZA, p. 80).

O curso dos poemas delineia uma perspectiva aguda em relação às estruturas desiguais de poder que engendram a sociedade contemporânea e sensível às constrições que definem como subalterno o lugar da mulher nela (a personificação da favela em uma mulher, no poema “Favela, Mulher!”, constitui boa síntese desse procedimento). Nesse contínuo, a fim de afrontar a rigidez agressiva dessas delimitações e raspar a “parafina passada nos corações”, a obra dá vazão ao lirismo amoroso, plasmando movimentos complexos da intimidade do eu-lírico negro-feminino, que ama e deseja ser amado. Os textos logram desautomatizar as lógicas racistas de controle da imagem da mulher negra e, simultaneamente, esquivar-se das escritas que, a fim de descontruir esses estereótipos, por meio da figura da “forte e autossuficiente guerreira” criaram um novo aprisionamento.

Desse modo, apesar da distância temporal em relação aos trabalhos de que se ocupa Martins nesse artigo citado, a obra de Elizandra Souza parece poder ser incluída no conjunto de textos analisados por ela, nos quais:

Da alquimia do verso emergem novas modulações tímbricas e figurativas que, pelas vias da reversibilidade, disrupção, confrontação e autocelebração, esculpem, como contraponto às representações tradicionais, engenhosas construções poéticas que ressemantizam a personagem negra na linguagem poética e o próprio corpus literário nacional. (1996, p.113).

Permitindo que tracemos as correspondências entre seus poemas e a produção das que vieram antes, tais como Miriam Alves, Geni Guimarães, Conceição Evaristo, e que vislumbremos um coro de novas escritoras, evocadas em seus versos, Águas da Cabaça alimenta o estuário das escrevivências das mulheres negras. Por meio de imagens que recuperam e sacralizam a fertilidade dessa mulher, o eu-lírico dos poemas verte-se em água e faz-se rio e faz-se a chuva que “respinga na janela do ônibus da cidade grande e que não se quer afogar em um bueiro”. Sendo capaz de saciar a sede das mulheres que combatem, de lavar as mágoas das que sofrem em solidão, ou ainda, de afogar os seus algozes, essas águas performatizam desejos, conspirações e vozes em afluxo dinâmico, ora suave, ora violento. 

São Paulo,

14 de Julho de 2017.

Referências

GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

MARTINS, Leda Maria. O feminino corpo da negrura. Revista de Estudos de Literatura: Belo Horizonte, v. 4, p. 111-121, out. 1996.

SOUZA, Elizandra. Águas da Cabaça. Edição da Autora: São Paulo, 2012.


[1] Os paratextos textuais são lidos aqui em correspondência com o que nos ensina Gérard Genette e dizem respeito aos elementos por meio dos quais um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores. (GENETTE, 2009).

 *Fabiana Carneiro da Silva é Mestre e Doutora em Letras - Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFSB – Universidade Federal do Sul da Bahia.

Texto para download