Confluências de águas: Correntezas e outros estudos marinhos, de Lívia Natália

Gustavo Tanus*

 

Negridianos
 
Para Cuti, José Carlos Limeira e Guellwar Adún

Há uma linha invisível,
lusco-fusco furioso dividindo as correntezas.
Algo que distingue meu pretume de sua carne alva
num mapa onde não tenho territórios.

Minha negritude caminha nos sobejos,
nos opacos por onde sua luz não anda,
e a linha se impõe poderosa,
oprimindo minha alma negra,
crespa de dobras.

Há um negridiano meridiando nossas vidas,
ceifando-as no meio incerto,
a linha é invisível mesmo:
mas nas costas arde,
em trilhos rubros,
a rota-lâmina destas linhas absurdas que desenhas
enquanto eu não as enxergo.
(p. 71)

Correntezas e outros estudos marinhos (2015), publicado em Salvador pela Ogum’s Toques Negros Editora, é a segunda obra individual de Lívia Natália, poeta cuja sofisticação dos versos e o refinamento com que trabalha sua matéria são reconhecidos e a acompanham desde o premiado Água negra (2011), seu livro de estreia. A lírica da soteropolitana trabalha o elemento água assentado nas temáticas da origem, do corpo, do amor, e da religiosidade afro-brasileira, a partir da tomada de consciência sobre si, sobre seu corpo (físico e textual).

Em relação à dedicatória presente no livro, a escritora Conceição Evaristo, que prefacia o volume, aponta a oferta à mãe, física ou simbólica, “como motivo de inspiração e continuidade” (EVARISTO, 2015, p. 13). O que percebemos ser também a assunção do ofício de cantar em nome destas mães, por essas Iyás (mães de carne e de espírito) aquilo que fora recebido como sua herança, seu caminho, seu odu.

Dito isto, essa assunção relaciona-se ao respeito inerente a sua identidade negra, mais especificamente ao empoderamento da mulher negra, que se assume como senhora do seu destino, e gere razão e imaginação, engendrando maneiras de enfrentar as contingências da vida. O livro apresenta 62 poemas, divididos nas três partes: Vaga; Maresia; e Sargaço. A lírica de cada parte corresponde a “estudos marinhos”, entre tempos e deslocamentos.

Da primeira seção, destacamos os poemas: “Freudiana” (p. 31), “Estudo marinho” (p. 39), “Orixá didê” (p. 41) e “Riografias” (p. 45). Em “Freudiana” (p. 31), são interessantes a maneira como a voz poética trabalha a busca pela figura do pai “com sua carne de maresias”, “[...] (Todo corpo em que derivo absorta / tem algo de sua voz pedregosa.)” e o modo como ela se defende: “Aos pés destes timoneiros delicados / que pensam singrar minhas Águas / sou a kianda-sereia, / um coral espelhado, / sou a ostra que se demora em silêncio”, este corpo dentro dessa estrutura da concha, que lhe protege, transformando-se no ser mítico marinho a quem se pode amar e se deve temer.

“Orixá didê” (p. 41) trabalha poeticamente com a expressão que corresponde ao chamado para que o Orixá se levante e se manifeste; com isso, esse chamamento é feito sem utilizar modo verbal apropriado, o imperativo. Assim, os verbos de ação utilizados no indicativo funcionam como um convite para que leitor participe (e participamos) da cena possível, em que “[O orixá] Caminha com sua carne de mito / e, quando vai, não parte. / Apenas se banha em seu próprio mistério”. Já “Riografias” (p. 45) elabora as escritas das/nas águas sobre impressões daqueles que se banham e vivenciam histórias ribeirinhas, com seus vestígios compulsórios traduzidos em imagens: “[...] o Rio, prenhe de suas negruras, / ainda perfuma a noite, a juba, o silêncio / das correntezas. / O Rio, inolvidável, deixa até nas pedras / o seu rastro.”

Destacamos, da segunda seção, os poemas “Filosofia da composição” (p. 59), “Anatomia” (p. 67), “Negridianos” (p. 71), “Imitação II” (p. 75) e “Alvorada negra” (p. 76-77). Em “Filosofia da composição” (p. 59), a matéria se relaciona ao modo de constituição do texto e o que isso causa na voz poética é uma tentativa de definição operacional da criação. Mas, também, das dificuldades inerentes, em que, além do desejo de escrita, nada irrompe, “senão o silêncio branco da página / que é o negativo de escrever.” A isto se segue a constatação de que não há lenitivo, a palavra e o corpo se tornam tão indissociáveis, que a performance da palavra é também a performance do corpo. Em “Anatomia” (p. 67) o sujeito poético remete ao próprio labor e disseca suas entranhas – útero que sorveu tinta das letras e ganhou guelras, ser marinho.

Em “Negridianos” (p. 71), é interessante o modo como é elaborado poeticamente, e de maneira sofisticadíssima, o fenômeno complexo do racismo. Já “Imitação II” (p. 75) encena o “ser contemporâneo” na forma de um aforismo: “Toda luz é um exercício negativo de escuridão”... Esta poderia ser também uma maneira de definir a poesia, luz que contraria as trevas, sendo um modo de perceber e afirmar a existência delas. “Alvorada negra” (p. 76-77) surge como “autobiografia poética” que remete às “Asas-irmãs” – ascendentes intelectuais a quem é dedicado o poema: Geni Guimarães, Conceição Evaristo, Odete Semedo e demais asas-irmãs – com quem a voz poética partilha o “mistério”. Destacamos o refinamento com que trata a Diáspora negra nas Américas: “Houve um porto triste, / uma África de nunca mais. / Houve a lâmina dos navios / sangrando os mares.”

Da última parte, destacamos os poemas “A bailarina” (p. 99), “Onde o espelho?” (p. 113), “Dobra” (p. 129) e “OutrÁfricas” (p. 135). Em “A bailarina”, nos é dado a perceber que por detrás do poético há alguém passível de sofrimento. Mais que isso, mostra-nos a ousadia e a valentia de um ser que se dedica à arte do movimento, calça as “sapatilhas” e dança, por nós e para nós, apesar delas “devorarem” seus dedos. Por sua vez, “Onde o espelho?” (p. 113) trabalha com a aculturação e o embranquecimento como violência que silencia a cultura do negro, (o cabelo alisado, em que é negada a “Dobra”), perdida em meio aos ditos “padrões”, que são modelos culturais normativos hegemônicos. O poema “Dobra” (p. 129), cujo título é dado por uma palavra utilizada em diversos outros poemas, permite-nos recuperar sua polissemia, a riqueza de suas outras significações: o riçado anelado dos cabelos, os volteios sinuosos da pele, e do corpo, os vincos, os pregueados, as dobraduras: “[...] cabe o mundo no silêncio / sobre si dobrado de qualquer búzio”. Já OutrÁfricas” (p. 135) trabalha a percepção do “negrume”, ou da cor da pele, que “[...] não dói na ponta dos meus dedos, / não dói entre minhas pernas, / nem nos joelhos. / Não dói quando meu cabelo se dobra / em cachos crespos, / não dói.”, mas vai doer no “outro”, naquele que a percebe como defeito e marca de inferioridade, ou seja, naquele que é racista.

Em seus “estudos marinhos”, a poesia de Lívia Natália remete às características dos orixás femininos – o amor, a intimidade, a sensualidade, a feminilidade, a correnteza –, pertencentes a Oxum, e a Iemanjá, mãe dos peixes, majestade dos mares, senhora dos oceanos, sereia sagrada, rainha das águas salgadas, e dona do nosso “ori” (cabeça). Esta filha de Oxum, dada aos cuidados da Iemanjá, “alimentada por ela”, “banha-se” nas suas águas, e recebe suas bendições, para este que é seu ofício de cantar, mas que é também uma difícil tarefa.

 

                Estudo marinho

                para Lise Arruda

                Iemanjá me atirou uma palavra de pele salgada
                para fazer um poema de escamas
                e dar à Kianda da minha poesia
                pés de peixe e algo do que balouça
                na Água clara quando o peixe nada.

  A palavra veio num escapulido macio
  E mergulhou no azul de suas entranhas.
  Nadou ferindo as marolas, e eu, de anzol nos beiços,
  me atirei no seu canto empolado
  já enredada nas notas finas.
  Muito mergulhei e, no que me vi,
  virei eu mesma uma sereia-kianda de pés encantados.

                Vivo agora nos naufrágios mergulhada
                onde as palavras tem olhos e guelras,
                e respiram se abrindo para a Água que nelas se
                encharca.
                Lá, onde dormem as pedras negras,
                os sobejos de gente,
                os pedaços de pente
                e as conchas partidas,
                mora a minha palavra,
                com sua cauda marinha.

                                 (Natália, p. 39)

Do movimento, o encontro do rio e do mar, na foz, dos odores do mundo aquático, fluvial ou marinho, à vida permitida pela água, é possível dizer que não há, no livro, uma resposta única que possa pacificar o sujeito (o que tende a torná-lo passivo). Pelo contrário, o que há são confluências de águas: polissemias e possibilidades de significados, uma porção de perguntas que, todavia não possuem respostas, o universal tratado por meio das questões do indivíduo, e demandas do ser contemporâneo, pelo modo como são geradas dúvidas de si, pelas certezas sobre o incerto, pela demonstração (formalização) dos modos de cantar: seus exercícios e a criação.

A esta que também é sereia-kianda, esse ser mítico das águas, oferecemos nossa atenção de leitor deste livro que descortina novas possibilidades à negritude, em respeito, e recebemos em troca boa faina e proteção nessas águas.

Referências

EVARISTO, Conceição. Lembranças das águas primordiais. In: NATÁLIA, Lívia. Correntezas e outros estudos marinhos. Salvador: Ogum's Toques Negros, 2015. p. 13-17.

NATÁLIA, Lívia. Correntezas e outros estudos marinhos. Salvador: Ogum's Toques Negros, 2015.

 

* Gustavo Tanus é Licenciado em Letras/português, bacharel em Edição, mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UFMG, bolsista CAPES, pesquisador do NEIA/UFMG; atua como bolsista do Programa de Incentivo à Formação Docente – PIFD/PROGRAD, no curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas, da Faculdade de Educação, FIEI/FaE/UFMG.

Texto para download