Dos ventos de Iansã aos morros de Minas: A mulher negra na poética de Jussara Santos

Pedro Henrique Souza da Silva*

Para além de suas características biológicas, o corpo da mulher negra é marcado por noções – imposições – ideológicas, de raça, classe e de gênero. Tais pressupostos acabam por fornecer eco à doxa “branca para casar, preta para trabalhar e a mulata para fornicar”; ao passo que são metamorfoseados (e, por conseguinte naturalizados) em “gosto” no que tange às relações interpessoais, além de camuflar um padrão estético eurocentrado e corroborar para o sentimento de solidão da afrodescendente, como se para esse determinado segmento não fosse permitido o “Amor”.

Por seu turno, a produção literária feminina afro-brasileira reflete e refrata a condição da mulher negra frente a uma sociedade fortemente pautada em valores misóginos. Contudo, há que se usar bateia e peneira para não reduzir a literatura negra ao testemunho panfletário ou um mero esboço mimético, mas sim concebê-la como um exercício de composição concomitante ao de transfiguração e “momentânea suspensão da realidade”.

E é nessa segunda acepção que se encontra escritora mineira Jussara Santos que, no presente ano, surpreende os seus leitores com os volumes Samba de Santos e De Minas, livros de poesia construídos a partir de uma poética afro em que as relações afetivas das mulheres negras, dentre outros temas, são problematizadas. Nascida em Belo Horizonte, Jussara Santos é autora dos volumes De flores artificiais (2002), Com afagos e margaridas (2006), Indira (2009) e Crespim (2013), além de figurar em diversas antologias, dentre as quais a Revista Literária do Corpo discente da UFMG e a Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica.

“Qual samba é composto por esses afro-mineiros versos?” A inquirição feita pelo crítico Adélcio Sousa Cruz na orelha do livro pode servir como porta de entrada à poética de Jussara Santos, que em seus “poemas-sambas” dialoga com o repertório afro-brasileiro à medida que aprofunda e abre “o sagrado baú de si mesma” (CRUZ, 2015). Tal exercício de reminiscência à outra extremidade do Atlântico se dá de maneira sutil, sem fincar bandeiras, mas a partir da (trans-)criação do resgate de uma memória cultural negra. Sobre isso, percebe-se a constante presença das Yabás (orixás femininos) em Samba de Santos, como no poema “Soam os tambores” em que a escritora se vale da divindade Iansã como mote para a criação poética:

Soam os tambores, 
Toda terra trovoada 
E insana guerra travada 
Põe seu corpo em armadilha 
É o vento, é o vento, é o vento 
Que quase lhe rouba o leque 
[...]
                     (SANTOS, p.39)

 

É perceptível, pois, nesse poema a noção de movimento que se assemelha à performance ritualística afro-brasileira. O primeiro verso – “Soam os tambores” – nos faz lembrar o som da orquestra sagrada do candomblé que, seja pelas mãos do Xicarangoma (nações Angola e Congo), em contato direto com o atabaque, ou ainda pelo aguidavi – varetas utilizadas para a percussão dos atabaques – do Alagbê (nação Ketu) e Runtó (nação Jeje), presentificam os deuses da natureza que atendem ao chamado por meio da manifestação nos corpos de seus filhos.

Uma vez feita tal evocação, a deusa das tempestades se mostra no poema e nesse momento tudo é o vento “que quase lhe rouba o leque”. O transe das palavras se segue no poema com os versos:

 

Dona do céu rosado

Se agita em frenético bailado:

Epa, epa, epa, grita aquele que é rei

E no ziguezague desse raio alaranjado,

[...]

                             (SANTOS, p.39)

 

Aqui são propostas diferentes imagens referentes à Yabá, a começar pelo verso “Dona do céu rosado”, uma possível tradução para Iansã, título dado para Oyá por Xangô; e, por sua vez, em “Epa, epa, epa, grita aquele que é rei” é explicitado o intertexto com a saudação à dona dos ventos: “Eparrei”. O conjunto de versos é fechado pela imagem de um dos principais elementos de Oyá, o raio, que sempre acompanhado do trovão, representa a união da deusa com o seu marido Xangô.

Nada de sombra, nada de medo

Tudo de bárbara, que muito mais que bela,

Muito mais que estrela,

Risca seu destino já

Sob o atento olhar de Oyá

                                   (SANTOS, p.39)

 

Por fim, nesses últimos versos percebe-se a junção entre a divindade e sua filha, pois, sob o governo de Iansã não há “nada de sombra, nada de medo”. “Tudo de bárbara, que muito mais que bela,” cabe destacar a referência à Santa Bárbara que, no contexto do “sincretismo” religioso, representa a Oyá dos candomblés nagô, além da antítese “nada” e “tudo” que parece marcar uma tomada de consciência da mulher negra. Logo, após esse resgate identitário a mulher se torna senhora do seu destino que passa a ser “riscado” “Sob o atento olhar de Oyá”.

Já em De Minas, Jussara Santos inscreve o estado de Minas Gerais para além das representações convencionais, de modo a evidenciar as suas contradições sociais e o conservadorismo exacerbado da “tradicional família mineira”. Destarte, como a marcar o tom do seu poema, adverte o eu-poético, “De Minas não sei nada ou muito pouco./ Sei dela aquilo que dizem” (SANTOS, 2015, p.7), isto é, num estado fortemente pautado em valores tradicionais, o subalterno é constantemente silenciado e tem a sua narrativa histórica contada a partir da ótica do dominador. Experienciando a cidade segue a voz do eu-poético:

 

Dizem do silêncio das montanhas

Cortado pelo barulho das ruas

De certas cidades

Dizem da transpiração de um horizonte

Já de beleza enfumaçada

Escondido pela poluição

                                (SANTOS, p.8-9)

 

Nos versos acima o sujeito oculto marca a relação opressor oprimido, sendo o primeiro o dono da “memória oficial” e o segundo da “memória subalterna” – para ficarmos nos termos de Michael Pollak – cabendo, portanto, ao subalterno a busca por marcar a sua representatividade por meio de táticas de resistência que se dão no campo do discurso hegemônico. É possível também perceber a cidade dividida no espaço-tempo, um paradoxo saudosista que consiste nas fortes marcas interioranas que convivem com o constante devir da modernização; concomitantemente, as “montanhas” assistem de maneira silenciosa ao “barulho das ruas”. Em paralelo a essa questão, são registrados os seguintes versos:

 

De minas sobram rojões de jargões

Por isso, prefiro não mentir meu nome

De nascimento

E ouvir tons, todos os tons,

Ainda que me acreditem louca

Porque falo com meu ancestral

De igual para igual

                                 (SANTOS, p.11)

 

É fato que um dos principais projetos da literatura afro-brasileira e da literatura da diáspora negra nas Américas como um todo é o sentimento de pertencimento étnico. “Por isso, prefiro não mentir meu nome”, escreve a poeta num ímpeto de desnudamento do eu que impulsiona o discurso rumo à afirmação identitária. Mais uma vez é evocado o contexto da pedagogia negro-africana que, em seus multifacetados aspectos, tem na figura do ancestre um principio motriz em sua dinâmica.

Ainda no que tange o processo de resgate étnico tem-se a polissemia do título do impresso – De Minas – que pode tanto ser compreendido como o estado de Minas Gerais, ou ainda como o jargão popular “mina” utilizado para se referir às mulheres. Há também a ambiguidade suscitada pelo uso do “de”, que se entendido como uma preposição pode indicar uma origem do eu-poético (oriundo de Minas Gerais), como também o genitivo que, por sua vez, pode ser compreendido como “sobre minas”, tanto o estado quanto às pessoas do sexo feminino.

Esse segundo sentido nos possibilita uma diferente interpretação para o poema de Jussara Santos, daí percebe-se a mudança de tom no poema que passa a se referir ao corpo feminino que parece se misturar ao “corpo” que consiste a cidade, como se vê nos versos:

 

Minha Minas

É barulhenta

Nos desmandos vive atenta

E já não quer requebrar

Porque esse é o seu lugar

Se requebra,

É porque quer desvencilhar quadril e anca

Da dor de estereótipos de outdoor

E revelar para o país varonil

Meio assim botando banca

Tudo que recebeu de herança

                                   (SANTOS, p.11)

 

Ao questionar os estereótipos que são impostos ao corpo da mulher negra, a poética de Jussara Santos engrossa o coro das vozes femininas em nossa literatura. De modo a registrar a performance-requebro que marca no corpo feminino a sua ancestralidade, “Tudo que recebeu de herança”, ao passo que marca a construção da autoestima e autovalorização da afro-brasileira que “meio assim botando banca” refuta os consolidados “estereótipos de outdoor”.

Por fim, a poética de Jussara Santos aponta para novos olhares sobre a mulher negra e suas representações e relações interpessoais. Num texto de rara sensibilidade que dialogo diretamente com os saberes africanos e afro-brasileiros por meio de um constante exercício de ressignificação da negritude.

 

Referências

LOUISE, Caroline. O amor tem cor? In: Geledés Instituto da Mulher Negra. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/o-amor-tem-cor/#gs.c2c3233bf7804cb2b8d4c567fe4c7539>. Acesso em: 20 jun. 2015.

SANTOS, Jussara. Samba de santos. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2015.

SANTOS, Jussara. De Minas. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2015.

 

* Pedro Henrique Souza da Silva é graduado em Letras e mestrando em Educação pela UFMG. Como pesquisador, integra o NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da FALE/UFMG.

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