Cantos à beira-mar e Gupeva:

das possibilidades de sempre (re)descobrir Maria Firmina dos Reis

 

Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho*

 

Durante as atividades da 11° edição da Feira do Livro de São Luís (FeLis), que homenageou Maria Firmina dos Reis (1822-1917), foi realizado o lançamento da nova edição de duas obras desta escritora, o conto indianista Gupeva e o livro de poesias Cantos à beira-mar, ambos na mesma edição, que contou com a organização de Dilercy Aragão Adler, presidente da Academia Ludovicense de Letras (ALL), e Oswaldo Gomes, membro fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Guimarães (IHGG).

As últimas edições das duas obras foram ao público pela última vez nos anos de 1975 e 1976, organizadas por José Nascimento de Morais Filho, Gupeva na coletânea Maria Firmina: fragmentos de uma vida (1975) e Cantos à beira-mar em edição própria no ano seguinte. Nesse sentido, cabe ressaltar que as duas obras há muito estavam distantes do grande público, sendo acessível apenas para pesquisadores mais engajados na pesquisa em torno da produção de Maria Firmina dos Reis, o que justifica a pouquíssima quantidade de trabalhos envolvendo outras produções literárias da escritora, mais conhecida pela publicação do romance Úrsula.

Diante disso, propomos a reflexão acerca dos contornos temáticos dessas obras menos conhecidas, mas também importantes para a compreensão da atuação literária da escritora maranhense, afirmando a possibilidade de descobrir novas faces de sua produção literária, desenvolvidas no contexto de ascensão do Romantismo, mas passíveis de estudos em novas perspectivas.

Maria Firmina dos Reis, apesar de ter seu nome relacionado, atualmente, às produções abolicionistas, como o romance Úrsula, publicado originalmente em 1859, ou o conto A escrava, de 1887, participou ativamente da imprensa maranhense durante cerca de cinquenta anos, entre 1859 e 1908, período em que publicou poesias e contos em diversos periódicos da província, bem como construiu teias de relações que, possivelmente, possibilitaram a publicação de suas obras e sua participação no meio literário.

Cantos à beira-mar, publicado originalmente em 1871, é dedicado à memória da mãe de Maria Firmina dos Reis e conta com cinquenta e seis poesias, das quais o próprio título da obra indica os caminhos percorridos em muitas delas, como não poderia ser diferente. Sendo Guimarães uma cidade litorânea, onde Maria Firmina dos Reis passou grande parte de sua vida, o mar e a praia são presenças marcantes nas poesias, esta última transformada em lugar de beleza, meditação ou melancolia, como pode ser verificado nos poemas “Uma Tarde no Cumã”, “Nas Praias do Cumã” (p. 127). “Cismar” (p. 118), “Itaculumim” (p. 119), “Meditação” (p. 125), “Melancolia” (p. 61), entre outros, nos quais o ambiente da praia, por vezes, aparece como o lugar propício para a reflexão em torno dos próprios sentimentos e anseios.

A desesperança com a vida, o sofrimento, o desejo da morte, os amores não correspondidos, entre outros temas semelhantes, aparecem em outros poemas. Em parte, isso pode ser fruto do próprio movimento literário romântico em vigência no Brasil, o qual Maria Firmina dos Reis observou temáticas, regras de composição e estilo, presentes tanto em sua produção poética quanto em prosa. Assim, não se pode desvincular a obra da escritora do seu período de atuação, pois estão de tal forma entrelaçados que o fundamento central das poesias encontra eco expressivo nas características do movimento romântico, em especial na fase do ultrarromantismo, de forte teor sentimental e espiritual. Alguns dos poemas que trazem essa face são “Amor” (p. 117), “Desilusão” (p. 135), “A dor, que não tem cura” (p. 106), “Súplica” (p. 39) e “Confissão” (p. 71).

A exaltação da terra e nacionalismo, bem como homenagens a pessoas ilustres, são também temas recorrentes, comprovando o interesse em manter teias de relações que a mantivessem no meio letrado, além de ser prática recorrente entre escritores do período. Alguns exemplos são os poemas “Minha terra” (p. 30), oferecido a Francisco Sotero dos Reis, “Te-Deum” (p. 80), oferecida ao poeta Gentil Homem, “Por ocasião da passagem de Huimatá” (p. 55), dedicada ao poeta maranhense João Clímaco Lobato, entre outros.

Nesses e outros poemas sobressai, ainda, a escrita de textos de cunho nacionalista, nos quais elogia a província maranhense e a capital São Luís, como os cenários naturais, o passado de luta, a terna ligação com a própria terra e o receio em deixá-la, como nos poemas “O proscrito” (p. 104) e “Minha terra”, além dos textos dedicados aos homens que lutaram na Guerra do Paraguai (1864-1870): “Poesia” (p. 72-73), “À recepção dos voluntários de Guimarães” (p. 74-75), “Poesias” (p. 76-77) e “À partida dos voluntários da pátria do Maranhão” (p. 143), “Poesia” (p. 78-79), sobre os quais tece o elogio à resistência e almeja a preservação da memória dos que ali lutaram.

Em outros movimentos nessa mesma obra, Maria Firmina dos Reis usa da crítica velada contra a opressão patriarcal, denunciando o papel social destinado às mulheres no período, que as distanciava do ambiente público. A escritora maranhense subverte padrões estabelecidos, ao publicar seus textos em jornais e livros.

Neste período, como indica Constância Lima Duarte (2016), a participação na imprensa era pouco viável às mulheres, apesar da existência de jornais editados e destinados ao público feminino, alguns dedicados a reafirmar a cultura patriarcal, e outros permeados pela questão educacional e reflexões acerca do papel da mulher, afirmando um desejo de emancipação feminina em meio  a forças  contraditórias, ora intermediando  o  movimento  emancipatório,  ora  funcionando  como  obstáculos.

A ousadia de Maria Firmina dos Reis, ao tratar do tema da opressão feminina, demonstra a compreensão do contexto senhorial, bem como desnuda sua concepção sobre a sociedade do período em relação às mulheres, utilizando de uma “estratégia irônica”, por meio da qual se coloca em lugar subalterno para poder romper com o emudecimento imposto, lançando ao público seu livro de poesias e outras obras, como bem observa Juliano Carrupt do Nascimento (2007).

Alguns dos poemas que exprimem essa face crítica são “No álbum de uma amiga” (p. 62), “À minha extremosa amiga D. Anna Francisca Cordeiro” (p. 123), “Minha Alma” (p. 133), “Confissão” (p. 71), “Não quero amar mais ninguém” (p. 131), este último tecendo significativa relação com poemas românticos que exaltavam o amor ideal, no entanto, subverte ao ser construído com um eu-lírico feminino afirmando não querer amores terrenos, que apenas trazem sofrimentos, assegurando sua satisfação com o amor idealizado.

Nessa obra sobressai, ainda, um poema com temática indianista, “Por ocasião da tomada de Villeta e ocupação de Assunção” (p. 59), que confere à produção de Maria Firmina dos Reis mais um ponto de relação com as produções românticas nacionais, nesse poema é exaltado o caráter guerreiro e vitorioso dos indígenas. Essa produção tece diálogo com o conto Gupeva, publicado originalmente em 1861, no jornal Jardim das Maranhense, e republicado em 1863 e 1865, respectivamente nos jornais Porto Livre e Eco da Juventude.

Sobre a temática indianista, possivelmente por conta do seu sucesso no Brasil entre 1845 a 1865, a escritora também enveredou para esses escritos, produzindo e publicando poesias e o conto Gupeva, sobre os quais também imprimia um ponto de vista dentro e fora do Romantismo nacional. O indianismo no Brasil surge em virtude da busca pelo específico brasileiro, sobre o qual o índio tornou-se uma representação aceita e equiparável a personagens nobres europeus, apresentando-se com grande capacidade poética, dado que sua construção também primava pela pureza de caráter e virtudes.  Sua presença na literatura  nacional  deve-se,  ainda, à  busca  de uma  identidade  nacional  por  meio  do  estudo  do  passado  brasileiro.

Gupeva trata da história do índio, de nome homônimo ao do título do conto, e sua filha, Épica, que se apaixonou pelo marinheiro francês Gastão. O desenrolar da narrativa, como outras de Maria Firmina dos Reis, ocorre por meio de flashbacks, quando Gupeva rememora para Gastão o passado da mãe de Épica, que tinha o mesmo nome da filha. Épica (mãe) ainda jovem viajou para a França, e também se apaixona e engravida de um conde francês, que a abandonou quando soube de sua gravidez. Épica (mãe) retorna ao Brasil e casa-se com Gupeva, no entanto, ela morre ao dar à luz a sua filha.

O índio Gupeva, testemunha do sofrimento de Épica (mãe), nutre o sentimento de vingança contra os franceses, e transmite esse sentimento para Gastão que, coincidentemente, era o filho do homem francês com quem Épica (mãe) se relacionou na juventude, portanto, irmão de Épica (filha). Após o tenso encontro entre Gupeva e Gastão, que se torna um confronto entre Brasil e França e entre culturas  diferentes, tudo termina na trágica  morte  dos  três  personagens principais.

Analisando a posição de cada personagem no conto percebe-se que Gupeva, como representante dos indígenas, era um homem bom e honrado; Épica (mãe) era a vítima da vilania dos franceses; Gastão e o conde de... são a personificação de uma nação colonizadora e desonrada, que, pensando em seus próprios desejos, recai na violência.

Como narrativa épica fundadora da concepção de nação ou identidade nacional, como outras produções indianistas do período Romântico, a obra de Maria Firmina dos Reis traz a figura do colonizador francês, tão intruso quanto o português, e igualmente indesejado pelos nativos. A temática da narrativa não traz a perspectiva do encontro harmonioso entre europeus e indígenas (ZIN, 2016), mas, sim, da impossibilidade da união frutífera entre esses povos, reiterando a violência com a qual essa relação se pautou na província maranhense.

Ao propormos a interpretação produção poética de Maria Firmina dos Reis, consideramos que há certa falta do que podemos chamar de interpretações modelares ou paradigmas de análises (KUHN, 2007) de suas poesias, visto que sua produção em prosa, particularmente a antiescravista, é mais comentada no campo científico que se dedica à sua obra. Longe de isso ser um problema, mostra-se como mais uma oportunidade de apresentar as diversas faces de Maria Firmina dos Reis. Se, até o momento, não foram lançadas perspectivas que apontem profundamente o percurso do projeto literário da escritora – mesmo que haja certos padrões de análise, como projeto antiescravista, projeto nacionalista, projeto ultrarromântico – certo é que esse projeto existia, e estava de acordo com aspirações do seu período de atuação e estilo literário do período, ainda que tenham tanto a comunicar para os leitores e críticos atuais.

Neste sentido, ressalta-se a possibilidade de novos estudos da obra de Maria Firmina dos Reis, voltados especialmente para a produção poética e outros textos menos pesquisados, que ainda aguardam novas perspectivas de análise, o que implica voltar o olhar para o muito que ainda há para conhecer e para o que voltou a circular apenas neste momento, como seu livro de poesias e o conto Gupeva, igualmente passíveis de (re)leituras pautadas no contexto atual.

Teresina, 01 de março de 2018.

Referências

CARVALHO, Jéssica Catharine Barbosa de. Literatura e atitudes políticas: olhares sobre o feminino e antiescravismo na obra de Maria Firmina dos Reis. 128f. 2018. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2018.

KUHN, Thomas. A prioridade dos paradigmas. In: _______. A estruturas das revoluções científicas. 9ª ed. São Paulo: Editora perspectiva, 2007. p. 67-76.

DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX. Dicionário ilustrado. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2016.

MORAIS FILHO, José Nascimento. Maria Firmina: fragmentos de uma vida. São Luís: COCSN, 1975.

NASCIMENTO, Juliano Carrupt. O livro de poesia de Maria Firmina dos Reis. NIELM em foco. Rio de Janeiro, ano 5, n° 5, out. 2007.

REIS, Maria Firmina dos. Cantos à beira-mar e Gupeva. São Luís: Academia Ludovicense de Letras, 2017.

ZIN, Rafael Balseiro. Maria Firmina dos Reis e seu conto Gupeva: uma breve digressão indianista. Em Tese. Florianópolis. v. 14, n. 1, jan./jun., 2017. p. 31-45.


* Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho é Mestra em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professora do Centro de Educação Aberta e à Distância da Universidade Federal do Piauí (CEAD / UFPI) e integrante do grupo de pesquisa Americanidades: lugar, diferença, violência.

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