O poeta e sua nova expressão: Guarda pra mim, de Éle Semog

Gustavo Tanus*

 

 

 

Quando

A primeira vez que fiquei louco 
foi quando nasci. 
Lá dentro era um silêncio quente, só meu. 
Aqui fora foi um frio coletivo, 
cada um com o seu. 
A segunda vez que fiquei louco, 
foi quando me disseram 
que o saber de todos não era meu, 
o que todos me ensinaram 
não era nosso... 
 precisava pensar sozinho 
para ter os méritos. 
A terceira vez que fiquei louco, 
uma delas disse, 
que o amor não era bem isso, 
que devia repensar o que é 
a entrega, o ter e o repartir. 
Na quarta vez que fiquei louco 
fiquei procurando a minha alma branca 
e quanto mais caminhei, 
só me seguia a minha sombra, 
espalhada pelo chão que se confundia 
com a sombra negra dos brancos 
que passavam por mim. 
Na quinta vez que fiquei louco, 
eles disseram que a minha tri tataravó 
gostava de ser violentada 
que a mãe da mãe da minha mãe 
também gostava, 
só não disseram que se eu existo 
é porque gosto de existir 
por ser fruto de tantos violentados. 
Agora é a sexta vez que vou ficar louco, 
Vamos ver no que vai dar, 
mas nem pensar em me dizer ‘pega leve
mermão, deixa rolar’.

Éle Semog

 

Os leitores que ainda não tiveram oportunidade de conhecer a poesia de Éle Semog poderão se iniciar a partir de seu mais recente livro – Guarda para mim –, publicado em 2015. Esta, que é sua quarta obra individual, apresenta uma outra face do poeta que, se contraposta a de seus outros livros, parecerá mais intimista, menos ligada à militância à qual se engajou, desde a década de 1970, em torno de discussões sobre afirmação da identidade e da denúncia do racismo e das desigualdades dele decorrentes.

À primeira vista, essa diferença pode parecer uma mudança de rumos, entretanto, ela é a confirmação de que o poeta não está estacionado no tempo, pelo contrário, está em movimento, portanto, continua em armas. Nestes tempos da chamada “crise de identidade”, Semog nos convida a repensar a noção de identidade ao revelar-nos um eu de muitas faces e disposições: engajado, idealista, crítico, apaixonado, amoroso, lascivo.

Perante tais processos de identificação, a poesia de Guarda pra mim revela o fundamento político que busca a reconfiguração dos modos de existir/resistir, frente às grandes questões do humano, seus sentidos, suas percepções, e entre suas pequenas interrogações, afirmação de sua humanidade, em sua experiência da vida cotidiana.

O livro apresenta cento e seis poemas que se organizam nas quatro seções: “Filosofia e outros bichos”, “Amor e essas coisas”, “Tempo por aí” e “Povo e aqueles”. Há uma organicidade entre essas partes, porém sem uma obrigatória rigidez temática. Isso significa que a filosofia, o amor, o tempo, o povo emanam de um mesmo sujeito, que interliga as partes num todo, destacando a semelhança entre os modos de pensar, de amar, de perceber o tempo e a vida e os modos de se organizar.

Da primeira seção, desperta a atenção a sensualidade do poema “O dia que você virou manga”, em que o eu lírico canta uma tentativa de fugir da “vã filosofia” até que é “apanhado” pela “arapuca”, pelo mistério da mulher que o captura e toma corpo – entendido pelo eu lírico a partir dos “elementais”, fogo, água, terra; depois flor, pulmões, semente, cheiro. Momento em que ele vê a mulher amada como “inteira fruta manga”, operação permitida porque ela antes assim se afirmara: “Repito essa rotina minutos a fio, / mas tudo que encontro são as palavras / daquele dia que você se disse manga.” (p. 27). Ou, por outro lado, poderíamos nos deter na dura constatação do eu poético em “Conjuntura e olhar crítico” que, ao cambiar a mirada “do meu umbigo / para dar uma olhadinha no mundo” (p. 31), percebe que mais do que difícil, “lá fora tá foda pra preto” e, apesar disso, não há outra solução senão o enfrentamento.

Da segunda seção, destacamos a construção metafórica de “Gavetão”, em que a mulher e companheira “mandou um recado [...] / E no recado vieram todos os pingos dos iiiiis... / [...] que já gozou e gozará / sem precisar dele de fato...” (p. 46); que o eu lírico retoma, em “Arrumando o gavetão” (p. 47), como motivação para a manutenção do relacionamento, que urge uma reconfiguração papel masculino, não mais como mantenedor de uma postura/convicção falocêntrica, porque isso já não faz sentido.

Apresentamos, da seção “Tempo por aí”, o poema “Guarda pra mim” (p. 60), que dá nome ao livro, e do qual podemos destacar a tensão entre o espírito colecionador do sujeito, que guarda objetos reais como uma mania, uma compulsão, e nos instiga a ajudá-lo a guardar as “coisas que posso perder”. Dessas coisas, ele nos pede que guardemos parte delas, e então constrói um inventário de documentos poéticos, uma constelação de imagens, pequenas cenas, fotogramas, representações diversas, personalistas ou gerais. Interessante perceber práticas da escrita contemporânea, em que o eu lírico realiza, a partir do material que ele mesmo fornece, um gesto de rememoração concomitante ao procedimento biográfico, que o leitor, impulsionado pelo poema, realizará, ao aceitar o pedido de conservar essa sua memória.

Da última seção, em que a ideia de povo é trabalhada, de forma a construir uma espécie de consciência das imprevisibilidades da vida, destacamos os poemas “Aos mortos das nossas cotas” e “Um negrinho sem noção”. O primeiro consiste em uma poesia narrativa que conta a história lúgubre – tão lamentavelmente verossímil e atual – de quatro meninos (“corpinhos pretos”) exterminados, em contraste às medidas afirmativas das cotas, que visam minimizar os efeitos históricos gerados pela escravidão. As cotas que foram oferecidas a esses quatro meninos (e tão frequentemente são oferecidas a “outros corpos” que se somam a eles) não são excedidas, “... E as estatísticas rolam / e é dado de boca em boca, [não sai na imprensa tradicional] / cada pretinho na cota da escola / vale dez pretinhos na vala” (p. 90-91).

O outro poema é uma composição biográfica de um “negrinho” que nasceu no meio do povo, inserido em sua cultura e a qual renega, posicionando-se até (veja aí um fenômeno também atual) contra as medidas reparadoras do mal que o estado impingiu ao negro escravizado, ao pensar e dizer que “a escravidão não doeu tanto / que a cultura-vida é folclore”. Essa negação de suas origens (“Nanã, Oxossi, assentamentos... / agogôs, rompis, berimbaus e tamborins”, p. 96), que chega até a negação das atrocidades a que foi submetida a população negra contém uma espécie de perversidade, por assegurar uma argumentação convincente, na qual a elite se apoiaria contra as políticas afirmativas, para a manutenção de um status quo secular.

Tais modos (de pensar, de amar, de perceber o tempo, e de se organizar) possibilitam ao leitor a ampliação/dilatação das maneiras de ver o mundo, por permitirem rápidos movimentos (entre leituras dos poemas) de imagens diferentes, em diferentes focos, que podem ir desde o ponto de vista do indivíduo em um curto instante a uma visão ampla, Bird's-eye view, ao que, em exercício crítico – de uma crítica influenciada pelas questões do contemporâneo – contrapomos a uma visada histórica, ao buscar esse autor em suas produções anteriores. Estratégias por parte do leitor, táticas escolhidas pelo poeta, um idealista utópico, que, neste momento atual, revela um pouco mais de si, em toda sua complexidade.

Referência

SEMOG, Éle. Guarda pra mim. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.

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* Gustavo Tanus é professor, Licenciado em Letras, Bacharel em Edição e Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade - NEIA, desta Instituição. No momento finaliza seu Doutorado em Literatura Comparada na UFRN. É autor do volume de poemas A Hagbe que nos guarde (2019).

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