Pretumel: entre a chama e o gozo da palavra

Cátia C. B. Maringolo*

 

 

De fora pra dentro
De dentro pra fora
Eu quero que fique
Ele ameaça ir embora
Assim começa a trança
De fora pra dentro
De dentro pra fora.
Elizandra Souza

 

É devassar cada parte
Concedida
É mão espalmada
Onde se queira
Onde se peça pra dar
O amor
Que se faz com poesia.
Cizinho Afreeka

 

 

 O prazer sexual, desligado frequentemente da ideia de sentimento, de prazer mútuo, ou também solitário, torna-se muitas vezes um produto, um meio de exercer poder, de oprimir, de suprimir, de hierarquizar e excluir. Visto por uma outra ótica, o prazer torna-se poder, poder de sentir-se e sentir os outros, de encontrar-se consigo mesmo, de aceitar a diversidade, de estabelecer uma ligação direta com o que nos faz, de fato, felizes. Audre Lorde (1987), feminista negra americana, ao discorrer sobre a ideia do erótico, diz que existem diversos modos, ou formas de poder que costumam ser usadas ou não, reconhecidas ou não, e o erótico é uma forma de poder que está profundamente atrelada a um plano feminino e espiritual, firmemente ligado ao poder dos nossos sentimentos expressos e não reconhecidos.

A escritora, em um ensaio intitulado “Uses of the Erotic – The Erotic as Power” (Usos do erótico – O erótico como poder) afirma que este poder “para as mulheres é considerado uma fonte de poder e informação.” (p. 53)1. Lorde clama que as mulheres utilizem esse poder que é delas, para não somente possibilitarem uma mudança de perspectiva em suas vidas, mas de fato, possibilitar uma mudança de paradigma em uma sociedade sexista, patriarcal e racista. A escritora negra americana enfoca a ideia de poder do erótico através de uma ótica feminista: todas as mulheres possuem esse poder, entretanto, são criadas para suspeitar dessa fonte de poder, para não a utilizar, suprimindo-a.

Esse poder do erótico, a que se refere Lorde, em particular no tocante à experiência das mulheres que são constantemente oprimidas, é retomado, de modo mais amplo na antologia Pretumel de chama e gozo, de poesia negro-brasileira erótica, tendo como foco a experiência desse poder para os sujeitos negros e negras, que, como afirma na própria orelha do livro, prezam, nesses poemas, pelo “respeito ao outro e seus limites em meio a apetites rítmicos.”

Se Lorde está apontando somente para a questão do poder do erótico para as mulheres e sustentando que elas devem ter consciência da enorme capacidade que carregam dentro de si, podemos ampliar esse poder, e tentar depreender que, a antologia tem objetivos semelhantes, ao enfatizar aos sujeitos negros e negras, primeiro que esse poder existe, e foi durante tantos séculos suprimido e oprimido, e segundo, que ao tratar sobre ele possibilita-se também uma outra forma de libertação, mais intima e profunda: a libertação dos corpos negros das algemas do discurso estigmatizador sobre o direito ao prazer e ao amor.

A palavra erótica vem do grego eros e significa o amor em todas as suas formas e aspectos. Nesse sentido, a antologia prima pela representação do erótico alinhado à ideia de amor, personificação de amor, ou amores, de todas as formas, de todos os jeitos, guiado pelo respeito, pelo carinho e, também, conscientemente atrelado a uma política de afirmação positiva do sujeito negro. Essa antologia se interessa por poemas que procurem uma “afirmação da identidade” do sujeito negro: da sua beleza, do seu fenótipo, dos seus amores e desejos; como demonstra Jairo Pinto: “Como se tirasse a casca/ E em total devassa/ Me comesse/ Com seus grandes lábios/ Com sua negrura” (p. 15).

Negros e negras são sujeitos ativos e donos de seus corpos, seu desejo, seu amor –parece-me, primordial, nesse sentido, a atitude: eu me deito com quem eu quiser. “A linguagem erótica, nos poemas desta antologia, afina com o senso de que o gostoso pode melhorar sempre com um fluxo de leitura instigador do desprendimento de nossos medos de tomar banho na cachoeira do prazer.”2

O corpo negro é celebrado, em suas variadas formas, formatos, cheiros, fenótipos, tipo de cabelo. A beleza negra não é mais pautada por padrões brancos, europeizantes e normalizados: “No campo da sexualidade amorosa, seus poetas trazem o testemunho da liberdade, da opção pelo prazer, inclusive como superação dos obstáculos dos séculos de mazelas provocadas pela escravização e pelo racismo.” (p.10). Os sujeitos dos poemas são exaltados pelas características que foram tão estigmatizadas e oprimidas pelos padrões de beleza caucasianos: cabelos crespos, lábios grandes, tez negra, negríssima, todos são “crespitudelícias”3 a se melanizar.

Elizandra Souza afirma que devemos enxergar que nosso “corpo negro é nosso terreiro. Precisa de dedicação, de carinho e de cautela. Território de todas as sensações, vibrações e movimentações que nos possibilita ser e estar. Quando encontra o agrado e o aconchego, lubrifica os dias, adentra e jorra na alegria de um orgasmo.” (p.139). Assim, o corpo é sagrado, território de sensações e movimentos, onde não se aceita mais o sexo pela força, o estupro. A poesia preza pelo amor, pelo erótico, que diferentemente do pornográfico, está sempre atrelado ao sentimento, sexo que é prazer, mas que é primordialmente, amor ao próprio corpo e ao corpo da outra ou do outro.

Como no poema “Encontro” de Elizandra Souza, onde a voz que enuncia abraça o erótico que está em si mesma: “Ela se sentou na cadeira / Colocou suas pernas / Em cima da mesa / Admirou-se do que viu / Ela brincou consigo mesma / Brindou sua beleza negra / Bebeu a garrafa inteira / E se lambuzou do seu próprio néctar.” (p. 104).

Como Lorde, nesse poema, a mulher negra encontra o poder do erótico que está embebido em sua alma, em seu espírito, e que é oprimido, recalcado pelo discurso vigilante e punidor. Ela encontra o poder em si mesma, brindando sua “beleza negra”.

A reflexão sobre o belo é também um dos temas retomados em vários poemas, frisa-se a importância de uma afirmação do negro e da negra exaltando características fenotípicas que foram, e ainda continuam sendo, desvalorizadas socialmente pela branquitude. Em “PRETAs, NÊGAs, NEGUINHAs” de Mel Adún, o texto elenca essa imensa variedade de belezas: “somos negras de todos os tons/ podemos ser a cor da noite/ retintas/ mas não ache que sumiremos com o nascer do dia/ podemos ser o amanhecer/ dourado não é exclusividade de mulher branca.” (p. 35).

Encontra-se também a exaltação da beleza do homem negro, agora despido dos estereótipos de garanhão, ou de “avantajado”. Os poemas ocasionam o empoderamento desse homem, que se deita com sua mulher negra, ou com seu homem negro. A negrura – blackness – simboliza, num primeiro momento, o reconhecimento desse ser como ser (auto-)desejado. Mas, primordialmente, a recusa do papel de mero reprodutor escravizado, que transa sem prazer nem amor: os homens negros dos poemas amam, e com certeza, isso faz toda a diferença. Lívia Natália, no poema “Encantadeira” sublinha, “O que tens, meu homem, neste corpo do qual bebo, / são estrelas que, brilhando, / transbordam da minha boca.” (p. 77).

Preza-se pela humanização dos sentimentos, pelo sexo feito com calma, “aos que meditam/ encontro de dois rios/ enlaçando os vales/ até formar a volumosa cascata/ mergulho no abismo profundo de cada um.../ aos apressados/ bum! ”, (CUTI, p.117), por escolha dos envolvimentos, por respeito mútuo. O sexo é manifestação de liberdade, como escreve Israel Neto, ao afirmar que nesses poemas objetiva-se “alforriar o prazer”, libertar as amarras do desejo coisificado, negado, amordaçado, abusado – o erótico torna-se manifestação ativista: é também político. Como questiona o falante do poema de Felipe Choco: “ – Amei! / E agora? / É sem edição, e sem pane/ Querida, / Esperemos apenas a repercussão/ De nossa/ Manifestação/ Não reprimida!” (p. 67). Assim, a liberdade dos corpos e dos desejos está sendo, finalmente, proclamada!

Referências

CUTI; KINTÊ, Akins (Org.). Pretumel de chama e gozo: antologia de poesia negro-brasileira erótica. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2015.

LORDE, Audre. Sister Outsider: essays and speeches. Berkeley: Crossing Press, 1987.

 

1For women, this has meant a suppression of the erotic as a considered source of power and information within our lives.”

2 Citação encontrada na orelha do livro.

3 Poema “Saliência”, de Raquel Almeida, p.30.

* Cátia C. B. Maringolo é professora, mestra em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/FCL e doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Texto para download