Na nossa pele: uma análise lúcida e sensível sobre o Brasil
Túlio Romualdo Magalhães
Precisamos retomar a nossa capacidade
de compreender que o caminho é equidade, justiça, humanidade, valor à vida,
respeito às diferenças que temos, indignação contra atos violentos, c
uidado com o meio ambiente, proteção à infância e a retomada da alegria.
(RAMOS, 2025, p.75)
Após o grande sucesso de Na minha pele, livro de tom autobiográfico, publicado por Lázaro Ramos, em junho de 2017, o ator e multiartista baiano continua suas conversas sobre carreira, pautas raciais, família, afetividade, discriminação e outros tantos assuntos com o lançamento de Na nossa pele: continuando a conversa, de 2025, um escrito inspirador e com magnífica capa/fotografia de Alceu Nunes e Edgar Azevedo, respectivamente. Em uma gostosa dicção prosaica, o escritor parte, desta vez, de recordações marcadamente íntimas, ao começar o livro falando de sua mãe, Célia Maria do Sacramento, e tece reflexões que apontam para um campo coletivo, o qual engloba as conquistas e os desafios perenes dos sujeitos negros no Brasil. O escritor, na verdade, convida-nos a uma grande viagem, às vezes com mais perguntas que respostas, mas uma verdadeira travessia.
O primeiro capítulo do livro, “Minha mãe”, é um bonito pedido de licença realizado por Lázaro à sua mãe a fim de iniciar sua conversa conosco, seus leitores e leitoras. A história de Dona Célia, uma mulher negra retinta, empregada doméstica e batalhadora, é marcada por muitas violências, o que, bem sabemos, não se configura como fato isolado, mas, sim, como uma vivência coletiva em nosso país. Contudo, seu filho faz questão de salientar um outro lado da matriarca: uma mulher doce, alegre, amorosa, piadista e que gostava muito de dançar. Vemos, durante a leitura do capítulo, um movimento evidente de recuperação de uma humanidade que, muitas vezes, lhe foi negada, inclusive nas vezes em que teve de suportar na própria carne episódios de agressão física vindos das mãos de sua patroa, de um ex-namorado e, já quase ao fim da vida, de sua própria cuidadora, ainda que estivesse enferma, fragilizada e vulnerável.
Já no segundo capítulo, cujo título é grafado sem espaço - “Eunumjátedisse”-, o escritor constrói uma narrativa sobre o poder da palavra, já que, em seu ciclo familiar, a enunciação do termo revelava, ainda que implicitamente, o valor de qualquer promessa feita. Também a necessidade e o orgulho de serem uma linhagem respeitável e comprometida. Oriundo de uma família baiana humilde, Lázaro conta que, desde muito cedo, aprendeu com os mais velhos uma ética da palavra, o valor de um compromisso firmado. Personagens de seu convívio como seus avós, Edith e Carrinho, sua dindinha, Elenita, e sua prima, Tânia, lhe ensinaram um preceito que, na verdade, alude a um grande imaginário compartilhado pelo senso comum brasileiro: o pobre pode não ter dinheiro, mas deve ter honra e honestidade.
Por outro lado, a seção também traz várias anedotas que giram em torno de uma pergunta que Lázaro faz, ao mesmo tempo, para si e para seus leitores: por que vale a pena conversar?. Ao assumir seu gosto por conversas e conexões com pessoas, o escritor evoca diversos momentos: os diálogos com sua bem humorada filha, Maria Antônia, e seu filho, João Vicente; o almoço com um assaltante depois de uma tentativa de furto; episódios racistas sofridos em um hotel de Salvador - BA; reflexões sobre as personalidades díspares e, ao mesmo tempo, complementares de Martin Luther King e Malcolm X; análise e crítica às ideias violentas dos colonizadores portugueses; enfim, reflexões que tentam convencer o leitor e a leitora sobre o pensamento de que “conversar educa e pode ser estratégico” (p. 25), ainda que vivamos em um mundo estruturado pelo ódio e pela polarização. Nesse contexto, o artista faz questão de colocar o dedo em várias feridas sociais ainda abertas no Brasil que escancaram uma latente crise civilizatória. O autor demonstra como somos, velada ou assumidamente, uma sociedade racista, classista, corrupta e violenta. E mais: a necessidade de que todos lutem contra isso.
Na sequência da boa prosa proporcionada pelo autor, o capítulo “Diálogos” traz a importância e o impacto da arte na vida do artista soteropolitano. Ele reflete sobre as várias máscaras que assumimos em nossas trocas cotidianas, a partir da construção de vários arquétipos. Lázaro destaca que diferentes pessoas se comportam utilizando formas híbridas de emoção, a depender do momento, da raça, da classe e do gênero: segundo ele, existe O que espera; O que reclama; O piadista; O comprometido; O tensionador; O permissivo; entre tantas outras máscaras. Entretanto, para o autor, o que realmente permite diálogos profícuos é a combinação da fala, da conversa e da escuta. Nesse sentido, vemos que o escritor desnuda uma série de carências de nossos tempos atuais: justamente o que tange a fala e a escuta. Basta que pensemos na maneira fluida e, muitas vezes, desrespeitosa com a qual nos tratamos em sociedade, seja nas redes ou no contato físico, não é mesmo?
Em “Violência versus amor”, o escritor destaca a necessidade de refletirmos sobre essas atitudes. Dialogando com vários pensamentos de bell hooks, Lázaro nos mostra, de maneira central, que a ideia de que silenciar nossos sentimentos é sinal de força é equivocada, embora este ainda seja um pensamento tão presente nas famílias e na educação de crianças. Pelo contrário, é o amor que permite ao ser humano construir uma personalidade sólida. Nesse ponto, percebe-se que o mais cruel é a nefasta herança deixada pela escravidão: ainda hoje, há sujeitos negros que nem se reconhecem nos direitos de amar e ser amado, fatos diretamente ligados a nossa história de hierarquização de raças. Nesse sentido, o escritor conclui que, contra a violência tão alastrada em nossas vidas, só o amor pode ser a arma de combate.
No decorrer da discussão proposta em Na nossa pele, o autor vai dedicar um capítulo também para refletir sobre a “Poética do acolhimento estratégico ativo”, uma linguagem consciente empregada em suas criações artísticas desde 2014. Segundo o artista, essa técnica consiste em, primeiro, buscar assuntos ou comportamentos de conexão; depois, mudar o rumo da prosa para assuntos sensíveis e importantes. Tudo isso com uma só finalidade: tentar contribuir para sensibilização e transformação da sociedade (p.67). O artista revela que se valeu dessa metodologia em Na minha pele, Medida provisória e várias outras obras de sua autoria. O resultado? Tem colhido bons frutos. Com a identificação e acolhimento das pessoas, todos os assuntos mais desconfortáveis se tornam menos repelidos.
Em “Conexão”, por exemplo, capítulo que marca uma transição no livro objeto desta resenha, é exatamente isso que o autor faz, mais uma vez. Desde o início da viagem, Lázaro traz assuntos com potencial de identificação em seus leitores e leitoras. Isto feito, na parte final de seu livro, em que a ideia é trazer à baila pautas mais difíceis, ele dedica uma seção exclusiva para nos alertar, dizendo: “Intensifiquei as perguntas nessa nova viagem porque quero tentar tirar de você algumas opiniões, e não oferecer resposta simples para questões complexas.[...] A luz pode não vir da solução mágica de um ator, mas sim de se imaginar uma outra possibilidade de futuro - e construída pelo coletivo. Por isso te convoco a pensar sobre o poder e o grande desafio da emancipação” (p. 72).
A partir dessa explícita convocação, em “Poder” o ator reflete sobre como as diferentes formas de privilégio (econômico, político etc.) geram sociedades desiguais. É destacado no capítulo que, ainda em espaços de maioria e protagonismo negros, como escolas de samba e times de futebol, geralmente são pessoas brancas que, até hoje, detêm o poder: decidem, contratam, mandam, dão a palavra final... A quem diga, nesse contexto, que existe mobilidade social, mas Lázaro demonstra que, mesmo para aqueles que ascendem economicamente, como foi seu próprio caso, acabam por descobrir que a tal mobilidade social é cheia de entraves e ciladas. Na profissão de artista e no contexto da televisão, por exemplo, possui sempre mais obstáculos aquele que não tem uma família influente no ramo ou aquele que precisa dividir a sua renda com outros membros familiares, a fim de promover uma vida mais digna não só para si, mas também para os seus, que, não raras as vezes, pouco têm. O individual e o coletivo se misturam nas famílias em situação de vulnerabilidade, pois quem avança tenta trazer os outros consigo. A conclusão desse raciocínio? “O poder não está para todos” (p. 87). Contudo, o autor ressalta que a arte pode ser “uma forte aliada porque é capaz de nos emocionar e resgatar em nós mesmos a capacidade de sentir e pensar com empatia” (p. 91).
Por fim, ao encerrar a profunda viagem com seus leitores e leitoras, Lázaro Ramos traz o capítulo intitulado “Emancipação”. A partir da história na qual narra a compra de um apartamento em Salvador em que sua mãe, dona Célia, fora empregada por anos, o artista resgata sentimentos de um eu menino que viu e experienciou tanta dor naquele espaço. Comprá-lo era dar um contragolpe na esteira da história brasileira e, com isso, afirma Lázaro: “Sou vitorioso. Estou curado de toda a dor. Me emancipei. Me libertei” (p. 99).
Entretanto, essa emancipação que parecia ter chegado ainda lhe traria muitas surpresas, porque a dor sempre tem várias camadas, não é mesmo? O ator nos relata que, um dia, aparentemente no qual tudo estava tranquilo, sentiu um grande mal-estar. Era a somatização de tantos sentimentos no corpo, manifestando-se de maneira adoecedora na carne. “[...] a fama, a grana e a ascensão social não curaram este preto aqui” (p.101), ressente Lázaro, mas a busca segue: “[...] amar e se saber no direito de ser amado faz parte do processo de emancipação” (p.105).
Em palavras finais, Na nossa pele: continuando a conversa (2025) começa e termina com as memórias de dona Célia, não só uma grande homenagem de Lázaro à sua mãe, mas também como um processo de cura para um filho colecionador de tantas dores. Em uma análise lúcida e sensível sobre o Brasil, o artista expressa suas vulnerabilidades ao público a fim de promover profundas discussões sobre o que é ser um sujeito negro nesse país, transitando entre o individual e o coletivo. Por fim, uma coisa é certa: seja na ficção ou não, podemos afirmar que se debruçar sobre as obras de Lázaro Ramos sempre será uma boa pedida.
RAMOS, Lázaro. Na nossa pele: continuando a conversa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2025.
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* Túlio Romualdo Magalhães é graduado em Letras (UFOP), pós-graduado em Ensino da Língua Portuguesa (IFMG-OP), mestre em Letras: Estudos Literários e doutorando em Literatura Brasileira (ambos pela UFMG). É professor da rede pública do estado de Minas Gerais e do município de Ouro Preto - MG. Também é membro e pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do portal literafro (UFMG). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..