Olhares sobre Betina

Dalva Martins de Almeida*

Uma das ponderações mais relevantes do discurso feminista diz respeito ao que propõe Virginia Woolf em Um teto todo seu. A autora vai tecendo, frase a frase, um modo de expor à mulher, e a quem mais possa interessar, sobre a importância e a força da palavra escrita: “Não há marcas na parede para determinar a altura precisa das mulheres”. (WOOLF, 2014, p. 123). Plataforma ou simplesmente slogan político, a frase encerra uma certeza que resistiu ao passar dos séculos: o poder da mulher. Embora ao precisar essa e outras reflexões Woolf tenha se dirigido a um público específico de mulheres não negras, seu discurso abraça a todas elas. Se, para as brancas, a conquista da escrita significou um ato de resistência e empoderamento, o mesmo se pode afirmar quanto à mulher afro-brasileira. Apesar de confinadas por longo tempo ao trabalho doméstico como subsistência, elas não ficaram na retaguarda. Desse modo, é preciso insistir e refletir sobre qual é o espaço de voz da mulher afro-brasileira, e saber também que contos essas minorias sempre contaram.

Nesse contexto inclui-se a escrita afro-brasileira de Nilma Lino Gomes. Professora, pesquisadora, escritora, reitora e, agora, ministra, tais frentes de trabalho em que vem se empenhando ao longo da vida só legitimam sua voz. Ao inquietar-se com a necessidade da construção de uma imagem positiva da pessoa negra, a autora tem por tarefa a reversão dos processos do racismo à brasileira – e do mito democrático que propaga a falácia da igualdade de oportunidades para todos. Da mesma forma, desconstrói estereótipos e se integra à tradição das aguerridas escritoras negras, que remete ao trabalho de Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e, mais recentemente, Conceição Evaristo, entre outras.

É dessa última autora que se registra o termo “escrevivência”.1 Ou seja: “A escrevivência é auto representação de um corpo vivido em sua própria escrita. É contar histórias não para ninar a casa grande, mas para incomodar”. A escrevivência de Gomes é um falar de dentro, repleto de alteridade, isto porque em sua escrita negra incluem-se textos políticos, científicos e ficcionais. Em seu livro Sem perder a raiz (2008), a autora põe em evidência os resultados de sua pesquisa em salões étnicos de Belo Horizonte, refletindo sobre esses espaços políticos onde se discutem o “cabelo” como “ícone identitário” e o “corpo como veículo de expressão e de resistência sociocultural”, bem como de “opressão e negação” (GOMES, 2008, p. 21).

Como a própria autora reflete, corpo e cabelo são alguns caminhos para a discussão da identidade e considerá-los como tal, não implica em “reduzir o complexo sistema de classificação racial brasileiro às impressões e opiniões sobre cabelo e à cor da pele” (GOMES, 2008, p. 21). Portanto, incomodar, desestruturar, fazer ruir sistemas eurocêntricos e apontar alternativas são atitudes que podem ser lidas na obra de Nilma Lino.

Desse modo, se a estratégia de começar pelo cabelo e pelo corpo tornou-se um caminho para a autora, sua opção se justifica, ainda mais, ao escolher o campo da literatura infantil contemporânea como espaço de onde poderá incitar e deslocar posicionamentos historicamente essencializados. Ao escrever para crianças, a autora apresenta ao público um modo de rompimento com estruturas de racismo: a presença de uma protagonista negra, que restitui à leitora infantil n possibilidades de representação positiva. A menina pode se mirar em Betina e se reconhecer. Então, quem é essa protagonista? Que representações são possíveis a partir desta personagem? Assim, os olhares se voltam para o texto de Gomes.

Betina é um conto infantil narrado em terceira pessoa, em que a protagonista de mesmo nome é uma menina que mora com a família, tendo como enfoque a relação especial com a sua avó. Durante a narração, o leitor conhece toda a sua rotina: ela brinca com as amigas, brinca em casa com seus brinquedos e frequenta a escola. Diferentemente de muitas personagens da literatura infantil contemporânea, Betina é uma menina negra que possui um lar estruturado.

Desde a capa, as possibilidades de leitura dessa obra se ampliam. A protagonista surge de costas para o leitor, num espaço de sua casa, sentada no chão, rodeada por vários brinquedos. No entanto, são as tranças da menina o principal discurso. Em evidência, tal penteado insinua um olhar afro identificado para dentro da narrativa. A narrativa não verbal, inclusive, dá o tom diferencial em toda a escrita.

Então, o eu narrador em Betina expõe a história de uma menina cuidada por sua avó, que vai se desenvolvendo e aprende, desde pequena, o ato de trançar os cabelos. Não como um ato qualquer, mas como ato político. Quando vem a fase adulta, Betina torna-se uma profissional engajada, que dá palestras sobre a visibilidade da pessoa negra, através do penteado.

Eis que surge o mágico momento do penteado, assim descrito:

Depois de todas essas etapas, a avó sentava-se em um banquinho, colocava uma almofada para Betina sentar-se no chão, jogava uma toalha sobre os ombros da menina, dividia o cabelo em mechas e ia desembaraçando, penteando e trançando uma a uma, com rapidez incrível. Enquanto trançava, avó e neta conversavam, cantavam e contavam histórias. (GOMES, 2009, p. 6).

Trançar os cabelos é o modo de tecer a discussão social e política em Betina, quando se torna possível ler o discurso de Gomes em torno da conquista de voz. Os diálogos entre avós e netas são tecidos de modo verbal e visual. Durante todo o texto, Betina e sua avó sempre aparecem em contemplação ao infinito, ao vir a ser.

O único momento em que Betina surge frontalmente é quando ela se mira no espelho para admirar mais uma obra de sua avó. Como demonstra a figura 2 abaixo:

 

Figura 1: Betina diante do espelho. In: Betina, de Nilma Lino Gomes, 2009, p. 9.

É possível discutir, a partir desses dois momentos, que os olhares que a narração sugere ao leitor são de provocação e de rompimento. Ao ilustrar a menina de costas, os aspectos relacionados às discussões étnicas em geral, são postos em evidência: o cabelo, o corpo, a situação socioeconômica da criança negra, a educação escolar. No entanto, a frontalidade de Betina exposta pela imagem do espelho, propõe outros olhares.

Ao refletir sobre a construção da identidade da pessoa negra é possível considerar o que estuda Tomaz Tadeu da Silva (2014, p. 89). Para o autor identidade e diferença são conceitos ligados a sistemas de significação. Desse modo, é possível discutir, a partir da frontalidade de Betina, quais os significados sociais e culturais implicados. Portanto, esse momento de frontalidade, pode encerrar uma proposta de comunicação, de diálogo entre a narração e o leitor, a partir da voz da própria protagonista. É o espaço de voz da menina negra, historicamente silenciada na ficção.

Desse modo, a intriga é construída a partir da representação do cotidiano de Betina, da infância até a vida adulta. O enredo é um desenrolar de fatos e momentos importantes da vida de Betina: sua infância, sua adolescência e sua vida adulta. Então, em Betina, as experiências cotidianas podem ser consideradas elementos que confrontam o modo como a menina negra vem constantemente sendo representada. A valorização da vida diária e doméstica pode redimensionar o modo de ver a pessoa negra na sociedade, não mais como sujeito passivo consumidor da cultura dominante.

Ou seja, dialogando com De Certeau (2014, p. 38), “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”. Assim, pensar a importância da vida cotidiana de Betina implica ressignificar seu espaço social e, no diálogo com De Certeau que propõe uma “combinatória de operações que compõe uma cultura e exumação dos modelos de ação”, perceber o modo de agir nos espaços sociais para esta conquista.

A valorização dos eventos da vida de Betina é um possível indício para reverter o modo como a menina negra ordinariamente é representada nos espaços midiáticos e culturais. Tomando aqui o conceito de “tática” usada por De Certeau (“a tática só tem por lugar o outro” (p. 45)), as relações sociais e afetivas que a protagonista Betina estabelece com os grupos sociais dos quais participa (amigos da rua, escola, família, comunidade) dão um tom diferenciado à conquista de um espaço ressignificado de representação étnica.

Deste modo, em suas “práticas de espaço”, Betina é uma menina negra que brinca, tem uma boneca preta, anda muito limpa e bem vestida, cabelos sempre alinhados e bonitos, tem uma família, tem amigos, é participativa na escola. Reage com firmeza à manifestação de preconceitos que lhe imputam na escola. É possível que a narrativa Betina represente um meio de redimensionamento do olhar sobre a pessoa negra, cujos conceitos se deslocam de passivos para sujeitos pertencentes e atuantes na sociedade. Isto resulta que a identidade negra é um construto “social, histórico, cultural e plural”, como assevera Gomes (2005, p. 42).

Então, a autoria afroidentificada de Gomes fez surgir um texto que legitima o espaço de voz desta como artífice. Por sua especificidade, Betina é uma obra que não transita invisível. É impossível sair da leitura sem se inquietar com a necessidade da desconstrução dos processos de racismo a partir da infância da menina negra, em especial. E essa constatação dialoga, ao que parece, com a postura engajada da autora.

Referências

CERTEAU, Michel De. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 21 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos de identidade negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

GOMES, Nilma Lino. Betina. Ilustrações de Denise Nascimento. Belo Horizonte: Mazza, 2009.

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Stuart Hall, Kathryn Woodward. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Tradução de Bia Nunes de Sousa eGlauco Mattoso. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

Nota

1. Palavras oriundas de palestra de Conceição Evaristo na Universidade de Brasília, em 1º de novembro de 2013. Parte de evento do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC).

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* Dalva Martins de Almeida é professora e Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília, com a dissertação A menina negra diante do espelho.

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