De cabeça feita: os fios, as tramas e os trançados

 

Giovanna Soalheiro Pinheiro

 

Em outubro de 2024, o poeta, professor e pesquisador Cuti ministrou uma palestra no Colóquio Internacional Literatura e Negritude: literafro 20 anos, realizado na Faculdade de Letras da UFMG, intitulada “poesia da crespitude”. Na ocasião, ele recitou versos de Cristiane Sobral, de Miriam Alves e de outros escritores brasileiros que traziam a beleza dos cabelos crespos e encaracolados à poesia.

 

Em Sem perder a raiz (Editora Autêntica, 2019), Nilma Lino considera que os crespos não são apenas a parte mais visível do corpo negro, mas são ainda uma linguagem – estética e identitária – a partir da qual emerge um modo de ser e de estar no mundo. Disso deriva uma concepção de ancestralidade, de retorno às origens, à própria história individual e coletiva, marcada por diversas formas de opressão e de negação, mas também de afirmação. É ainda nesse contexto que se insere De cabeça feita (Editora Quelônio, 2024), da escritora, socióloga e educadora Neide Almeida: uma narrativa centrada no público infantojuvenil, mas sem perder de vista os outros adultos, inevitavelmente inscritos no jogo do texto e da leitura.

 

Neste trabalho, Almeida revisita a história dos cabelos crespos, num gesto quase antropológico de compreensão dos penteados que surgem dos fios da personagem criança cujo nome é Dandara. Cabe inicialmente dizer o modo como De cabeça feita se produz – como um significante visual que suplementa a leitura –, e isso diz muito sobre a escritora e sobre a sua escolha pela Quelônio, editora que soube dar forma ao tópos ancestral inscrito nessa produção. Não se trata de uma edição comum: a capa, as ilustrações de Beatriz Lira, as fontes, a cor marrom-dourado, junto ao preto, a expressão tipográfica, as manchas gráficas, tudo isso se corporifica à experiência de Dandara, que passa por um processo de reconhecimento e de descobertas de seu cabelo: um tema já presente em Nós - 20 poemas e uma Oferenda (2018), primeiro livro da autora. Deste, lê-se, por exemplo, o poema “Por um fio”:

 

Nasci de cabeça feita.
No começo, não sabia.
Entre os hábeis dedos maternos
via os meus crespos fios
domados por um laço,
que me prendia também por dentro. 
Cresci sob um mito,
medo de me ver refletida 
no espelho do que sempre fui. 
Mas ainda menina, meu desejo
já se enroscava, virava trança
e me protegia.

[...]

(ALMEIDA, 2018, p. 44).

Nesse gesto de iniciação, o primeiro verso é também aquele que dará o título ao livro aqui apresentado. No enredo, tem-se uma história dos cabelos negros e, como personagens, encontramos a mãe (Zali), sua filha (Dandara), Tia Luiza (“de black curtinho”), Tia Maria (“tinha um tiquinho de cabelo dividido ao meio com duas tranças fininhas”), Tia Tereza (com seu black que lembrava um cocar indígena) (p. 30). Dandara queria experimentar todas as formas capilares que via nos livros, nos desenhos a que assistia. Era também uma menina aguerrida, feliz e imaginativa, assim como os cabelos criados por sua mãe. Ela adorava as palavras e outras coisas (“cabelos e cheiros”) e até inventou uma bonita canção:

Sou Dandara, sou Dandara

bato palma, sou festeira

Sou Dandara, sou Dandara

gingo sempre na capoeira

Sou Dandara, sou Dandara

rodo a saia, sou batuqueira

Sou Dandara, sou Dandara

menina e guerreira...

Oilelê, ôooo, Oilelê ôoo, oilelê...

(p. 11).

A cantiga então se repete ao longo da narrativa, e nela sentimos o corpo de muitas Dandaras: a de Palmares, por exemplo, capoeirista e guerreira, quase sempre figurada com um lenço sobre os cabelos. Há ainda a alusão à canção capoeirista de Mestre Barrão: “Ê Dandara / Ê Dandara / Ê Dandara / (Ê Dandara ê ê) / Ê Dandara ê ê”. O ritmo (o estribilho, as rimas, as repetições) parece nos inserir em um tempo ancestral, à poesia oral, à voz dos griôs. Nesse sentido, Neide Almeida soube operar muito bem os aspectos estéticos das tradições negras no Brasil e em África, inserindo-os no texto não só para a construção do sentido, mas também da linguagem.

 

Como disse Lívia Natália (2019), Almeida é “das heranças”, e isso se pode facilmente vislumbrar em sua mais recente publicação. O livro não diz só às crianças: reinventa uma tradição, performatiza um lugar de pertencimento, de corpo-presente, de cabeça e cabelos de ontem e de hoje. Não se pode negar o caráter pedagógico dessa narrativa como caminho à formação educativa de crianças, adolescentes e adultos, mas é preciso notar ainda a materialidade da forma, a poesia que desse processo advém. De cabeça feita é uma peça de oralitura.

 

Belo Horizonte, setembro de 2025.

 

 

Referência

ALMEIDA, Neide. De cabeça feita. São Paulo: Quelônio, 2024.

ALMEIDA, Neide. Por um fio. Nós: 20 poemas e uma oferenda. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2018.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.

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* Doutora em Letras: Estudos Literários pela UFMG.

 

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