Jeremias: Pele – Identidade e Representatividade

 

Kelvin Jorge Batista Silva*

 

Desde 2012, a Maurício de Sousa Produções criou o projeto Graphic MSP, para o qual artistas brasileiros são convidados a criar histórias sobre os clássicos personagens da Turma da Mônica. Jeremias por muito tempo foi um personagem da turma que não possuía uma história de origem ou uma identidade que o tornava único dentre as diversas criações de Maurício de Sousa. Entretanto, em 2018, é lançada a novela gráfica intitulada Jeremias: Pele, cujos autores são a dupla de artistas Rafael Calça, que trabalhou com o roteiro, e Jefferson Costa, que trabalhou com a arte. Graças a sua potência, repercussão e sucesso, em 2019 a produção recebeu o Prêmio Jabuti de Histórias em Quadrinhos.

Jeremias: Pele narra a história de um garoto que, em sua rotina, começa a viver e enfrentar as dores de viver em uma sociedade racista. A história de Jeremias não é muito diferente das que muitas pessoas negras vivem e viveram em sua infância. A escola, sendo o lugar onde deveria haver o acolhimento e aceitação da diversidade, é o local no qual muitas crianças negras começam a experienciar o preconceito de cor. Como os autores abordam essa triste realidade de forma tão simples, mas ao mesmo tempo potente, o livro faz com que o leitor reflita sobre as instituições de ensino e sobre como devemos agir para que tais situações sejam evitadas em ambiente escolar. A forma com que Jeremias lida com as adversidades é dura e dolorosa, porém o personagem pega sua dor e a transforma em orgulho e respeito pela sua negritude e seus ancestrais.

Um ponto forte da obra é a arte feita com maestria por Jefferson Costa, um artista premiado. As cores e as formas estão inteiramente ligadas aos sentimentos das personagens, apresentando um aprofundamento e sensibilização ao que pretende ser representado em determinada cena. Através da arte, Jefferson Costa traz a subjetividade da vivência negra, o artista consegue exibir uma gama de sensações e ainda trazer nas páginas da novela gráfica a beleza e a diversidade negra. Além desse aspecto, é possível encontrar na obra diversas referências à cultura e à arte negra e procurar essas referências na história se torna uma atividade prazerosa. Logo, a arte eleva mais ainda a qualidade da obra, oferecendo uma maior profundidade e identidade negra à história.

Jeremias: Pele é uma obra que fissura as estruturas da sociedade brasileira. É Soraya Martins (2023, p. 97) quem reflete sobre o conceito de fissurar:

 

O gesto de fissura diz sobre o ato de rachar, fender as determinações representativas calcadas na rigidez das homogeneidades, sobre as formas de ser e estar negras e negros. Fissurar aqui é fender, intentando maneiras novas de encenar velhos dramas negros e novas maneiras de fazê-los ser sentidos.

Os autores da obra aqui analisada geram uma fissura de forma tão incisiva e sensível que, ao mesmo tempo, torna-a algo singular e plural, é uma história em que muita identificação será encontrada. O drama de Jeremias é algo antigo, que se opera nos moldes da sociedade contemporânea. Logo, a obra torna-se muito relevante não só por abordar o velho drama do racismo, mas também por trazer assuntos diversos, como as masculinidades negras, a representatividade nas mídias, a autoestima, o empoderamento e o orgulho.

Soraya Martins (2023, p. 97-98) adiciona que, a partir do gesto de fissurar, surge a fabulação, que é nada mais do que:

[...] a ficção como possibilidade de construção de um espaço onde negras e negros possam existir sem amarras, recriar memórias e temporalidades. Recontar a história. Dedicar-se a um desejo. Fabular é produzir imagens, olhares e identidades a partir da releitura crítica da história: do passado, operando no presente e no futuro, através de uma leitura poética do mundo. Fabular é especular para se produzir rotas de fugas existenciais e estéticas.

Porém, a história não foca somente em falar sobre as mazelas do racismo, os autores fabulam e criam esse espaço sem amarras que Martins (2023) cita. Ao criarem essa história para Jeremias, Rafael Calça e Jefferson Costa abrem portas para uma nova forma de existência negra. Jeremias demonstra com todo seu carisma que devemos amar nossa existência e abraçar nossa identidade, ser quem somos sem a necessidade da sensação de inferioridade gerada pelo racismo. Os autores apresentam uma forma de lidar e subverter as amarras racistas às quais pessoas são submetidas desde a infância.

Outra faceta importante da história de Jeremias é a sua relevância como referência às crianças, tornando-se, assim, um material que pode ser amplamente utilizado em salas de aula para o fomento de uma educação antirracista. A lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas, completou 21 anos da sua criação agora em 2024. Contudo, vê-se ainda que a lei não é amplamente cumprida nas instituições educacionais. A história de Jeremias, como de muitas crianças negras, demonstra a importância da educação antirracista. Logo, é de extrema necessidade que essa lei seja trabalhada nas escolas. Existem diversos materiais à disposição, que podem ser utilizados, como exemplifica Jeremias: Pele. Somente uma educação de qualidade é capaz de gerar mudanças sociais.

Jeremias: Pele é uma obra super necessária, não só pelo que aborda, mas também por ser um gênero textual magnífico (HQ) e que, muitas vezes, não possui reconhecimento para o mundo das Letras. As histórias em quadrinhos possuem uma grande riqueza além de serem uma porta de entrada para o mundo da leitura. Jeremias: Pele é uma obra imponente, que deve ser lida por pessoas de todas as idades, uma história em quadrinhos que é profunda, incisiva, poderosa e revigorante. Uma história que emociona por sua magnitude e sensibilidade.

(CALÇA; COSTA, 2018, p. 52).

(CALÇA; COSTA, 2018, p. 75).

Belo Horizonte, 29 de fevereiro de 2024.

Referências

CALÇA, Rafael; COSTA, Jefferson. Jeremias: Pele. São Paulo: Panini, 2018.

MARTINS, Soraya. Teatralidades-aquilombamento: várias formas de pensar-ser-estar em cena e no mundo. Belo Horizonte: Javali, 2023.

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* Kelvin Jorge Batista Silva é graduado em Biomedicina pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH) e fez bacharelado em Inglês na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é mestrando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG e atua como pesquisador no Literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira, disponível no endereço http://www.letras.ufmg.br/literafro/.

 

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