A Luz de Luiz, de Oswaldo Faustino

Lígia Fonseca Ferreira*

No exato momento em que escrevo este texto ou que vocês, leitores e leitoras, lhe dão ouvidos, possivelmente passam despercebidos, quando não permanecem invisíveis à pressa dos paulistanos, os “lugares de memória”, assim chamados pelo historiador francês Pierre Nora, dedicados a Luiz Gama na cidade de São Paulo. Nascido em Salvador em 21 de junho de 1830, ao final da vida ele fora reconhecido como um dos mais “ilustres cidadãos” da capital paulista, onde residiu por mais de quarenta anos. Um passeio atento nos faria descobrir o imponente busto no Largo do Arouche, realização magnífica da comunidade negra no centenário de Luiz Gama; prosseguiríamos até o túmulo no Cemitério da Consolação, erigido à mesma época pela Loja Maçônica América ao seu digníssimo membro; o último destino seria a Rua Luiz Gama, no Bairro do Cambuci. Ao longo dessa caminhada, um portal se abriria aqui e ali, fazendo-nos mergulhar num tempo aparentemente longínquo, mas, para nossa surpresa, ainda em perfeita sintonia com nosso presente. Nesta era de facilidades propiciadas pelas buscas na internet, que talvez estejam bem aí, ao alcance de sua mão, comprovaríamos que o nome “Luiz Gama” batiza ruas, travessas, avenidas e logradouros públicos em muitas cidades, o que permitiria reproduzir, Brasil afora, passeios semelhantes ao que o livro de Oswaldo Faustino engenhosa e sedutoramente nos convida.

Os leitores e leitoras hão de se lembrar que, em 02/03/2014, o filme Doze anos de escravidão ganhou o Oscar na categoria de melhor filme. No dia seguinte, um articulista do jornal Folha de São Paulo, baseando-se em minha tese de doutorado sobre a vida e obra do ex-escravo, poeta e abolicionista Luiz Gama, admirou-se com alguns elementos comuns existentes entre a história de um músico negro norte-americano nascido livre, mas que foi inexplicavelmente escravizado, e “uma das raras histórias da escravidão brasileira conhecida pela pena do principal protagonista” (referência a uma carta de cunho autobiográfico escrita por Luiz Gama em 1880). Feita a comparação, ressaltou que o brasileiro possuía “uma história gloriosamente verdadeira e bem superior à do filme”.

De fato, uma das personalidades negras mais notáveis e fascinantes do século XIX foi fruto de nosso país. Luiz Gama nasceu livre, foi escravizado pelo próprio pai, recobrou a liberdade, aprendeu a ler e a escrever aos dezessete anos; transformando a palavra em formidável arma de combate, usou-a para denunciar as mazelas políticas, sociais e raciais de seu tempo e, sobretudo, para libertar centenas de escravos. Sua vida se teceu de episódios dramáticos, atravessados pelas tensões e contradições de um regime monárquico assentado no escravismo, circunstâncias que o fizeram cumprir um destino improvável para um “negro”. Em sua época, proliferavam as teorias sobre as desigualdades das raças que colocaram os africanos e seus descendentes na escala mais inferior, fornecendo bases científicas para o racismo que adentrou o século XX. Luiz Gama tinha plena consciência dos pré-conceitos que pesavam sobre pessoas como ele e seus irmãos de cor e condição, ele, em cujas veias corria o fértil sangue africano de sua mãe, a mítica Luiza Mahin, originária da Costa Mina, região do Golfo da Guiné. Dono de uma memória e inteligência assombrosas bem como de uma rara capacidade de superação, o autodidata Luiz Gama era um contraexemplo daquelas falsas crenças, segundo as quais os negros eram congenitamente incapazes de produzir criações artísticas e reflexões abstratas. Com sua refinada ironia, humor e lucidez, o autor das Primeiras Trovas Burlescas, primeira voz negra da literatura brasileira, registrava em seus versos que “na terra que rege o branco / nos privam ‘té de pensar”. Explicitava, igualmente, a mutiladora ideologia e barreira raciais então reinantes: “Ciências e letras / Não são para ti / Pretinho da Costa / Não é gente aqui.”

Os leitores e leitoras constatarão que o personagem aqui colocado de forma tão próxima e vívida por Oswaldo Faustino jamais aceitou que impusessem jugos e limites a sua liberdade, tida como um “direito natural”, noção que se fortalecerá ao longo do século XIX, século das abolições da escravatura nas Américas. Em Luiz Gama, cuja cor, corpo, vida e consciência sempre se encontraram marcados pelo embate entre os polos opostos da escravidão e liberdade, esta última assumiria formas muito modernas, plenas de sentido para nós, indivíduos do mundo de hoje: liberdade como antítese de submissão, como sinônimo de autonomia, movimento e autodeterminação; liberdade de ação, de criação, de pensamento e de expressão, condição sine qua non para as inovações que esse grande intelectual negro introduziu no campo da literatura, do direito e da política, destacando-se no ativismo antiescravista e antimonárquico. Tal combinação levou Lúcio de Mendonça, futuro fundador da Academia Brasileira de Letras, a saudar seu amigo Luiz Gama, em 1880, como um modelo de “bom republicano”, e já, àquela altura, um nome que suscitava orgulho para a “democracia brasileira”.

Nos contatos que, há bom tempo, tenho tido com professores do ensino fundamental e médio, bem como com estudantes, especialmente no ensino superior, ouço-os infalivelmente declarar que nunca se depararam com informações sobre Luiz Gama em sua formação escolar. Mas não há o que estranhar, pois de nosso “herói” pouco ou quase nada se diz nos livros didáticos, situação que se repete nos grandes manuais de Literatura Brasileira ou de História, inclusive em publicações mais recentes. Para ficarmos apenas neste último campo, é possível observar que o movimento iniciado por Luiz Gama e seu grupo, vinte anos antes da abolição em 1888, frequentemente aparece pelo viés de uma “história oficial”. Apresentada de cima para baixo, trata-se de uma versão contada sob a ótica de líderes brancos que se tornaram em geral porta-vozes quase únicos tanto da escravidão quanto do abolicionismo, acabando por diminuir a importância de agentes históricos que atuavam dentro da legalidade, porém sem fechar os olhos e ouvidos aos movimentos sociais e, no caso, ao protagonismo dos próprios escravos.

Pergunto aos leitores e leitoras, pensando no que aprenderam ou estão aprendendo na escola: para vocês, os abolicionistas têm “cor”? Não me espantaria que a resposta fosse “sim, professora, os nossos abolicionistas eram brancos, aliás como a Princesa Isabel.” A resposta só não está errada porque, na verdade, todo o material mencionado acima raramente mostra aos brasileiros que tivemos, sim, influentes abolicionistas negros como Ferreira de Menezes, José do Patrocínio e André Rebouças. Embora atuando na Corte, situada no Rio de Janeiro, eram amigos e reverenciavam a figura de Luiz Gama, o mais velho de todos, ao qual Patrocínio chamava de “grande chefe” e “símbolo da evangélica causa” dos escravos. Logo, uma parte do abolicionismo brasileiro tinha cor, o que determinava uma visão e atitude diferente por parte desses homens que conheciam de perto as vivências e angústias dos escravos, como também dos negros e mulatos livres ou libertos, porém privados do exercício e desfrute pleno da cidadania. Veja-se que, ainda hoje, “cidadania” é uma questão mal resolvida em nosso país; porém, é um reconforto saber que a formação e debate sobre o tema têm sido objeto de preocupação de vários setores da sociedade brasileira e levados para dentro das escolas.

Logicamente, não existe cidadania sem posse da palavra e de saberes. Nesta obra, encontramos, pois, um “cidadão” Luiz Gama que sempre se mostrou fascinado pelo conhecimento e pela leitura. Devorava livros, tinha entre suas referências escritores brasileiros do período barroco ao romantismo, bem como autores clássicos como o português Luis de Camões e um outro poeta lusitano, seu contemporâneo, Faustino Xavier de Novais, cunhado de Machado de Assis, o grande escritor brasileiro, bem mais discreto do que Luiz Gama, pois jamais declarou ser “afrodescendente”. Pelo que me consta, ambos os homens jamais tiveram contato. Se eu, aqui, me permitisse um grão de “fantasia”, daria tratos à bola, imaginando se, num encontro, o nosso “Orfeu de Carapinha” conseguiria convencer Machado a “assumir sua negritude”, ou, como ele escreve num verso de Primeiras Trovas Burlecas, a não ser desses mulatos que “desprezam a vovó que é preta-mina” (Machado era neto de escravos), em suma, a não se envergonhar de suas raízes africanas. Conseguiria? Difícil saber, mas nada nos impede de imaginar, como o fazem os escritores... A companhia dos bons livros e o valor da cultura aparecem como conselho maior que Luiz Gama, sob ameaça de morte, deixaria numa carta escrita para seu filho, Benedito Graco, em 1870, horas antes de sair para defender cativos. A tensão se justifica, pois o imbatível advogado negro, tido como um dos maiores conhecedores da jurisprudência relativa à escravidão, era o “terror dos fazendeiros” e dos senhores de escravos. E raramente escondia seu orgulho de autodidata, por nunca ter cursado a Faculdade de Direito, proclamando que “a inteligência repele os diplomas, como Deus repele a escravidão”:

Nos últimos quinze anos, tenho incansavelmente repetido: se Luiz Gama fosse afro-americano, já teria decerto inspirado um filme comovente e edificante como Amistad, de Steven Spielberg. Um dos personagens centrais da história é um influente abolicionista negro, encarnado pelo ator Morgan Freeman, cuja semelhança física evoca, sem sombra de dúvida, a figura do também ex-escravo, escritor e advogado Frederick Douglass, um ícone da história afro-americana. Costumo insistir, igualmente, no fato de nós, brasileiros, desconhecermos que, quase cem anos antes de Martin Luther King Jr. ter proferido, na década de 1960, seu célebre discurso “I have a dream (Eu tenho um sonho)”... Na batalha pelos direitos cívicos do negros em seu país, Luiz Gama antecipou-se ao norte-americano e declarou, em 1868, ter um sonho, um “sonho sublime”, no qual transparecia, igualmente, um profundo desejo de igualdade: “as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos”.

Oswaldo Faustino nos oferece, com grande respeito às mais recentes pesquisas historiográficas, uma saborosa e instrutiva “ficção”, bem diferente de tantas outras que, desde meados do século XX, falsearam acontecimentos, palavras e atitudes, prestando um desserviço à memória de uma personalidade negra rica e complexa. Como falar de “identidade” em suas múltiplas dimensões, se desprezarmos a História? Como fortalecer, no presente, a autoestima de um povo se não acolhermos com reverência o passado, a ancestralidade? Este é o encontro que nos proporciona Faustino.

Em sua narrativa, um jovem professor com seus alunos adolescentes viajam no tempo, guiados por Luiz Gama. O ilustre e carismático cicerone os faz descobrir uma história que aqueles jovens jamais imaginaram. Descortinam-se cenários e situações, surgem pessoas e personalidades, do escravo aos doutores, que figuraram na existência de Luiz Gama. Depois de assistir à sua morte, os membros do grupo retornam ao presente, transformados pela oportunidade que tiveram de conviver com um indivíduo tão especial. Para relembrá-lo e compartilhar sua experiência com os amigos, decidem organizar um grande evento festivo, num estilo bem próprio dos jovens de hoje. A homenagem seguramente agradaria ao saudoso amigo que, em sua época, vivia cercado pelos estudantes da Faculdade de Direito, fascinados por aquela alma nobre e de espírito jovial, marcas de um homem de fibra que nunca se deixou abater pelos horrores da escravidão. Alguns de seus poemas satíricos são pura música, animada pelas “zabumbas”, “marimbas”, “urucungos” (berimbaus), instrumentos africanos que animavam sua “festança”, sons que poderiam se fundir nos ritmos que “ouviremos” ao final deste livro.

Luiz Gama faleceu em 24 de agosto de 1882 aos cinquenta e dois anos, sem assistir ao advento das duas causas pelas quais dedicou sua vida: a Abolição e a República. A notícia de seu falecimento repercutiu em todo o Brasil. No dia seguinte, um jornalista carioca escreveu: “Há como uma história sobrenatural, um romance inverossímil na vida deste homem que finou-se, deixando após si um rastro de luz (Gazeta de Notícias, 25/08/1882)”.

Se por muito tempo e para alguns ficou invisível, a “luz” de Luiz Gama jamais se apagou. Prova é que seu clarão inundou a mente e o coração de Oswaldo Faustino e inundará a mente e o coração de seus leitores e leitoras – afrodescendentes, brancos, indígenas, asiáticos. Tenho certeza de que se orgulharão deste “herói” que é um patrimônio de todos os brasileiros.

São Paulo, 2 de julho de 2015.

* Lígia Fonseca Ferreira é professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo. Possui doutorado sobre a vida e obra de Luiz Gama pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne. É autora de Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas (2011). Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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