Selfie: eu mulher negra escritora

Fernanda Felisberto*

 

Sempre tento entender o porquê, de uma literatura nacional ter orgulho de ser uma literatura para poucos, quase uma sociedade secreta, deixando de fora a pluralidade de vozes e da diversidade cultural que compõe o mosaico brasileiro. É bem verdade que um dos motivos é a manutenção das “castas brasileiras”, onde poder econômico e habilidade literária se fundem, formando o “brinquedo” literatura brasileira, que já sai do forno como “clássico”, como bem sinalizou Flávio Khote em sua trilogia sobre o Cânone Literário Brasileiro.

Mas a insurgência de homens e mulheres negras frente a todas as adversidades que foram impostas, também se dá no campo literário, e rasurando os padrões estéticos, linguísticos e semânticos autorizados, pela elite letrada, que um conjunto de escritoras e escritores negros vem, desde o século XVIII criando espaços, construindo frestas, na tentativa de deixar sua experiência autoral registrada, em uma sociedade arrumada e estruturada na letra presa no papel, hierarquizando todas as outras manifestações culturais que possuem o binômio oralidade/memória como meio de difusão.

A literatura negro-brasileira hoje é um campo, que vem fortalecendo cada dia mais a cadeia autoria, editora e público leitor, e ganhando cada dia mais espaço dentro da academia e das escolas brasileiras, fruto de uma identidade dupla, quase indissociável, que é o lugar da autoria e do ativismo, caminhando de forma coordenada, seja para pautar temas comuns à experiência negra no Brasil, assim como recuperar autoras e autores, que foram sistematicamente rasurados ou embranquecidos, e este compromisso de (re)elaborar outras representações se intensifica, quando pensamos no lugar ocupado pelas mulheres negras na prosa brasileira.

Por muito tempo, quando refletia sobre mulheres negras e espaço literário, o que emergia eram puros objetos de análise, presentes nos romances nacionais, tais como Esméria e Lucinda (Vítimas-algozes), Bertoleza e Rita Baiana (O Cortiço) Tia Anastácia nas obras de Monteiro Lobato, as várias mulheres de Jorge Amado, entre outras. Os corpos destas mulheres não eram seus, serviram aos outros, todas tratadas como objetos, nenhum sujeito, nenhum afeto, nenhuma maternidade, nenhuma família, espelhando a pouca diversidade no cânone literário brasileiro e sua ideologia mofada, de um conjunto de autores brancos, heterossexuais, católicos e que tinham a região sudeste, como ponto de partida, e muitas das vezes como destino de seus imaginários.

Ressignificar narrativas antissexistas, antidiscriminatórias está diretamente relacionado ao fazer literário de mulheres negras, que desde o século XVIII vêm de maneira insurgente construindo mecanismos de eliminar as(os) mediadoras(es) de suas vozes, que insistem em contínuas formas de representações equivocadas, que não foram construídas pelas próprias escritoras negras, mas que se cristalizaram no imaginário nacional como uma verdade totalizadora e inquestionável, que é lugar dado à subserviência, a uma trajetória de vida pouco interessante, “seu modo de dizer não serve, sua experiência tampouco tem algum valor”(DALGASTAGNE, 2002). Diante de um quadro deste como pensar em ser escritora negra?

Certa vez bell hooks, feminista negra, estadunidense, problematizou o lugar da intelectualidade feminina negra, e que neste caso chamo atenção para as escritoras negras, numa sociedade arrumada e projetada para as questões materiais, como assimilar que seu fazer ativista, refletido na sua escrita também é mais uma forma de enfrentamento ao racismo.

As possibilidades de resposta são inúmeras, entre elas devolver a humanidade a todos nós negros e negras, começando por nossos corpos, como bem sinalizou Conceição Evaristo:

as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de auto representação. Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. (EVARISTO, 2005, p. 54).

Assim como nos devolver representações de afeto, solidariedade, enfrentamento às imposições sexistas e racistas do cotidiano, pelo direito a vida, revelando alegrias e dramas das mulheres negras, que o cânone literário brasileiro, desconhece e ignora, cabendo às mulheres negras escritoras esta incumbência.

Esta autoria feminina negra desloca bruscamente, e a intenção é esta mesma, o desconfortável lugar de objeto, para um empoderado lugar de protagonismo, tanto na representação de suas personagens, assim como na afirmação de um lugar de produtoras de conhecimento, construindo a partir do combate a discriminação interseccional, que recobre mulheres negras no Brasil e na diáspora africana, uma sociedade mais plural, transpondo inclusive a utilização desta língua, que diariamente é moldada a incorporar, usos e sentidos, de matriz africana, que foram removidos do nosso léxico e da nossa memória, vão sendo incorporados ao fazer literário destas escritoras.

Os primeiros registros da autoria negra datam do século XVIII, com Rosa Egipcíaca, que ainda possui poucos estudos, sobre sua biografia e obra. No século XIX temos publicado nosso primeiro romance, Úrsula, da maranhense Maria Firmina dos reis, em 1859, porém esta publicação não se revelou numa tradição romanesca consolidada. E no século XX, ainda é reduzido o número de romancistas negras brasileiras, fenômeno que não ocorre com o gênero conto, pois nesta modalidade literária encontramos um número significativo de escritoras.

Esta forma narrativa concisa, de revelar afetos e dramas negros, tem se tornado um campo efervescente de produção desta nossa literatura negro-brasileira, além do formato atrair, também é preciso registrar que a presença destas mulheres contistas aparece na forma de antologia, pois o mercado editorial brasileiro, que já registra mudanças, em termos de acolhimento destes textos, ainda está longe do ideal, o que de certa maneira conduz estas mulheres a publicações coletivas, as antologias, como forma de se fortalecer e visibilizar sua obra, além de uma brecha para driblar as questões econômicas, que demandam uma publicação individual.

Este compromisso se revela dentro desta nova antologia Olhos de azeviche, que a editora Malê de forma sensível e comprometida, uma vez mais, se debruça em torno dos 10 contos, mergulhando no universo de 10 mulheres negras, ativistas, contistas e cronistas: Ana Paula Lisboa, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro, Fátima Trinchão, Geni Guimarães, Lia Vieira, Mirian Alves e Taís Espírito Santo, convidam a você leitora e a você leitor a participar deste selfie literário, disseminando estas vozes, para outros territórios.

O desafio destas autoras negras, de diferentes gerações é que a produção escrita, de sua auto representação, assim como suas leituras de mundo a partir de suas singularidades de mulheres negras, possam alcançar mais leitoras e leitores, através de imagens positivas, ampliando sua efetiva participação, nos circuitos literários, nos espaços escolares, e no imaginário de seu público.

Boa leitura!

Rio de Janeiro, Março de 2017

Referências

AMARO, Vagner (Org.). Olhos de azeviche: dez escritoras negras que estão renovando a literatura brasileira. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

DALCASTAGNÈ, Regina. Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 20., p. 33-87, jul./ago. 2002. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4846244.pdf>.

EVARISTO, Conceição. Fêmea fênix. Maria Mulher – Informativo, ano 2, n. 13, 25 jul. 2005.

SILVA, Ana Rita Santiago da. Literatura de autoria feminina negra: (Des)Silenciamentos e ressignificações. iN: Vertentes & Interfaces I: Estudos Literários e Comparados. Fólio – Revista de Letras, Vitória da Conquista, v. 2, n. 1 p. 20-37, jan./jun. 2010. Disponível em <http://periodicos.uesb.br/index.php/folio/article/viewFile/38/276>.

SILVA, Fernanda Felisberto da. Escrevivências na Diáspora: escritoras negras, produção editorial e suas escolhas afetivas, uma leitura de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Maya Angelou e Zora Neale Hurston. Tese (Doutorado em Letras) − Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. Disponível em <http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UERJ_c9307f5a1c6e52f79d0ad4bbf2853677>.

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* Fernanda Felisberto da Silva é doutora em Literatura Comparada pela UERJ e professora do Departamento de Letras e do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Dentre suas publicações destaca-se a organização da antologia de contos Terras de palavras (Pallas/Afirma, 2004).

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