A voz do samba e do subúrbio carioca em A Lua Triste Descamba, de Nei Lopes

Nathália Dias1

O samba e o subúrbio do Rio de Janeiro são os principais personagens do romance A Lua Triste Descamba (2012), de Nei Lopes. Uma viagem pelo universo do samba durante a primeira metade do século XX é o que o autor carioca nos propõe. O título do livro é retirado de um samba de autoria de Dona Zica, célebre sambista casada com Cartola. A estrofe em que se encontra o verso “A lua triste descamba” constitui, inclusive, a epígrafe da obra: “Lá vem a aurora rompendo/ E a lua triste descamba/ Ela vai com saudade/ de deixar o nosso samba...”.

A oralidade levada ao extremo trazida ao texto literário é uma forte característica de Nei, o leitor ao abrir o livro logo é avisado sobre isso. A nota dos editores informa que a linguagem ali exposta tem como função retratar a linguagem real do cotidiano, pois se trata de um registro sociológico da linguagem usada no tempo, lugar e contexto social de onde a história se passa. O intuito é fazer o leitor entrar na pele dos personagens e perceber o mundo por meio de seus olhos.

O capítulo de abertura é intitulado “Fala, Nanal!”. Desde a primeira frase do romance, Juvenal toma a palavra e se propõe a contar “tintim por tintim” a história da escola de samba “Irmãos Unidos da Fontinha”. Ao assumir essa posição, o sambista veterano acaba contando de si, do samba e da cidade do Rio de Janeiro. Assim sendo, tem início a narração de um panorama sobre o nascimento do subúrbio do Rio, pois para recontar a trajetória dos moradores do local é preciso antes contar do surgimento dos espaços da narrativa. Isso ocorre, também, para que o narrador possa justificar-se sempre quando diz que “Mário Madureira”, um dos personagens principais da trama, não poderia adotar como parte de seu pseudônimo o nome da região, já que ele não tinha sido criado lá. Junto a isso temos a apresentação dos primórdios do samba, nos são apresentadas diversas manifestações culturais afro-brasileiras que influenciaram o surgimento do ritmo. O jongo e o calango são os mais citados no texto, essas manifestações são de origem africana e típicas de áreas rurais. Um grande número de imigrantes ex-escravos, oriundos da Bahia e das fazendas de café do Vale do Paraíba, se abrigava nas regiões rurais da antiga Corte Imperial, lugar o qual centralizou durante muito tempo as práticas antes citadas. Tais áreas originaram posteriormente os subúrbios da cidade e o mundo do samba. Dessa forma, nos é dada uma amostra das origens do ritmo e a sua relação com o espaço ao qual inicialmente representa.

Nanal se diz “da cidade” o tempo todo, ele descreve os locais como se estivesse dando instruções para alguém chegar a algum lugar. Ao mesmo tempo em que conta a história do Rio, o narrador nos diz conjuntamente de sua própria vida, pois ele é parte da cidade e a cidade também é parte dele. Juvenal volta à sua pré-adolescência, ele fazia parte do “Arsenal de Guerra” como aprendiz e tinha o sonho de se tornar torneiro mecânico. Bom aluno, após o ginásio, ingressou no curso técnico. No entanto, temos uma quebra na carreira de seus sonhos em decorrência da morte do pai, o que o obriga a largar os estudos para trabalhar. A mãe conhecia o chefe de gabinete do Ministério da Viação e Obras Públicas, esse contato permitiu que o jovem voltasse a ser aprendiz. Após ser aprovado no teste da Capitania dos Portos, ele embarca em um navio, viaja por toda costa brasileira, e, ainda, passa pela Colômbia, Panamá e Venezuela. Quando retorna ao rio, prefere não prestar exames para Escola Naval da Marinha de Guerra. Esse momento evidencia a incrível habilidade de Nei Lopes em articular fatos e personagens históricos às suas obras, ele se vale da “Revolta da Chibata” para justificar as escolhas do personagem-narrador. Juvenal nos diz:

Quando desembarquei, eu vim com uma carta, um atestado, do comandante do navio, que me dava direito a prestar exames pra Escola Naval. Mas, sabe como é, né? Marinha de Guerra, a cor não ajudava. Aquele freje que o João Cândido armou lá dentro ainda estava muito fresco, muito recente. Aí, eu fui ser desenhista. Da Imprensa Naval. Graças à minha capacidade. Com a minha honra. (LOPES, 2012. p.18).

Alegando perseguição, Nanal conta que, mesmo com seu talento, logo perdeu o emprego de desenhista. Desempregado, ele começa a trabalhar com jogo de bicho em parceria com o português Seu Avelino. Ainda menino, usava o dinheiro que ganhava para sustentar ele e a mãe. Porém, no dia em que a mãe descobre a origem do dinheiro, ela põe um ponto final na parceria entre o garoto e o português. Se dizendo envergonhada, resolve que eles mudarão de casa. Contudo, o narrador afirma que a razão da mudança era a dificuldade de achar um lugar para morarem ali na “cidade”, no centro do Rio. Com as obras urbanísticas de Pereira Passos, os cortiços presentes na região central foram demolidos e imensas avenidas foram abertas no local. O conhecido “Bota Abaixo” teve como maior consequência o deslocamento social. Sob a égide do discurso higienista, as reformas desalojaram do centro da cidade os antigos moradores que migraram em duas direções: para as periferias ou para os morros. Com isso ocorre a expansão do subúrbio, mas, ao mesmo tempo, a ocupação dos morros, uma que vez que essa foi a única alternativa para a população mais pobre que precisava residir próximo ao local de trabalho.

A mudança de espaço de Juvenal, ainda garoto, e o convívio com outras pessoas provocam uma aproximação do menino com a cultura afro-brasileira. Ele passa a viver na região de Madureira, no subúrbio do Rio, onde a maioria dos moradores era constituída por ex-escravos de café e seus descendentes. Ao começar a descrever o novo local de moradia, Nanal nos conta também dos hábitos de seus vizinhos, de suas comidas “com sustância” e de como aprendeu a matar porco, símbolo das festas. As práticas dos vizinhos são incorporadas às do menino. A partir desse novo lugar, nos é mostrado que a vida no subúrbio da época se aproxima do cotidiano rural. Em meio às chácaras, quintais cheios de árvores frutíferas e aos ritmos que embalam aquelas pessoas, somos apresentados a uma outra realidade do Rio de Janeiro, a que diz respeito ao povo marginalizado que vive longe do centro da cidade.

No terceiro capítulo percebemos um pulo no tempo, a narração se encontra em meio ao primeiro governo de Getúlio Vargas. Novamente temos o entrelaçamento de fatos históricos ao romance, a imagem de Pedro Ernesto, prefeito do Rio por dois mandatos durante os anos de 1930, é evocada ao texto, temos uma breve descrição sobre a sua importância para o universo do samba e sua imensa popularidade. Em seguida notamos uma possível indicação temporal do momento de enunciação em que Nanal nos conta tudo “tintim por tintim”, pode-se supor que ele fala em meio aos anos de 1980, pois:

Se Getúlio estivesse vivo... É... Mas, agora, ele já ia estar com mais de cem anos. Ele era de... Não tem aquele samba da Mangueira, do compositor Padeirinho? “No ano de 1883/ no dia dezenove de abril/ nascia Getúlio Dorneles Vargas/ que mais tarde seria o governo do nosso Brasil...” Samba de enredo é bom por isso! (LOPES, 2012. p. 31).

Após contar um pouco sobre grandes personagens da época, a vida do narrador volta ao centro da narrativa. Agora já moço, Juvenal inicia um namoro com Isaura, uma menina do bairro que pouco saía de casa e nunca tinha tomado sorvete nem banho de mar. A jovem se torna sua noiva, mas, em meio aos preparativos do casamento, foge com outro homem.

Os amigos mais próximos de Nanal são apresentados ao leitor: Lelinho e seu grande talento pela dança, Dilernando, vindo da Bahia e com gosto por todo tipo de música, e, ainda, o tão falado Mario Madureira. Esse último é descrito através de um olhar rancoroso e desconfiado. No mesmo capítulo de apresentação de outros personagens, percebemos outra referência a uma personalidade real: Padre Ricardo. Ao descrever os planos para as festas da Penha, o narrador se recorda de uma conversa com a mãe no dia da comemoração. Em tal diálogo a mãe diz que Padre Ricardo era muito importante porque cuidava da igreja, das pessoas e ajudava escravos fugidos. Ademais, ele foi um grande incentivador da festa da Penha e responsável pela reforma da igreja do bairro. Em meio à festa da Penha os quatro amigos formam um grupo para cantar e dançar, nada muito sério apenas diversão. O conjunto agrada a todos e é convidado a sair à rua no carnaval.

O capítulo intitulado “Sociedades” se inicia com um diálogo entre dois foliões que estão participando de um cordão no carnaval e, ate então, não tinham aparecido no enredo: Janjão e Murici. Janjão diz odiar os cordões, se justifica dizendo que são uma selvageria e um símbolo de primitivismo. Murici discorda afirmando que os cordões são o último elo entre o carnaval e as crenças pagãs. Além disso, tenta mostrar ao amigo as influências dos ritmos de África em tal manifestação cultural. Janjão insiste em sua visão reducionista e decide sair do cordão, a narrativa segue para outro momento. O narrador nos leva a uma viagem ao início da formação das escolas de samba. Ele apresenta a distinção entre os blocos de rua, ranchos e sociedades. Temos, ainda, uma descrição bem feita de como as agremiações carnavalescas cariocas foram obrigadas a tirar alvarás na “Delegacia de Costumes e Diversões” para poderem desfilar. Junto à descrição de como nasceram as escolas, aparece a figura de Paulo da Portela. Personagem real do cenário do samba carioca, ele foi uma das pessoas que mais lutaram para mudar a imagem estereotipada e preconceituosa que se tinha a respeito do sambista. A citação em meio à trama pode ser entendida como uma verdadeira reverência. Seguindo a linha das homenagens, lendárias figuras da história do samba são citadas no romance. João da gente é um exemplo disso, e alguns de seus feitos são incorporados de forma natural ao texto.

O espaço principal dos desfiles é a Praça Onze, uma região da cidade do Rio que ficou conhecida por esse nome em decorrência da simbólica Praça 11 de Junho que ali ficava até a década de 1940. A praça era o reduto por excelência dos afro-brasileiros cariocas e de uma mistura de ritmos que originou o samba. Em meio à representação do cotidiano das pessoas, novos personagens do bairro nos são apresentados: Vanda, uma mulher que primeiramente nos é descrita através do olhar um tanto quanto rancoroso do narrador, é mandona, autoritária e atraente. Outro é o marido de Vanda, Seu Euzébio, que é mais velho e submisso a ela. Os novos moradores têm uma casa com um imenso jardim onde sempre acontecem festas que têm como convidados grandes nomes da música e do rádio carioca, como por exemplo, Gastão Formenti, Augusto Calheiros, Saint-Clair Lopes, e, também, políticos, policiais envolvidos com a ilegalidade, capangas e pistoleiros. Além deles, o leitor é apresentado a Arnô, um jovem bom de bola que começa jogando no time do bairro. A partir da década de 30 o futebol se torna um emprego possível. Somos transportados, então, para uma viagem através da história da agremiação esportiva do bairro e da carreira de Arnô, que logo sai do time amador para jogar na divisão profissional do campeonato estadual. Ele se torna jogador do São Cristóvão, marca gols na final contra o Flamengo e o time vence o campeonato. A torcida e os dirigentes ficam maravilhados com o jovem. Esse encanto gera uma comparação entre ele e Petronilho, um incrível jogador dos anos de 1930. Petronilho de Brito foi o primeiro futebolista brasileiro a jogar no exterior, além disso, foi o inventor do tão bonito gol de bicicleta. Contudo, a carreira promissora do futebolista acaba quando, na estréia do campeonato, ele tem a perna direita quebrada numa disputa de bola no jogo.

Junto às histórias pessoais dos personagens, ocorre no plano de fundo da narrativa o retrato do povo que constitui o bairro, trata-se principalmente de ex-escravos e seus descendentes vindos da Bahia. Vanda é também uma migrante do estado nordestino, a partir da narração de seu envolvimento com Arnô nos é contado um pouco sobre sua vida. Ela é adepta do Candomblé e diz ter recebido a visita de um Exu quando era criança em sua terra natal. Neste momento, o narrador se afasta do caso que está contando e, antes de começar a descrever a visita, logo diz não saber direito o significado do que está a contar porque é cristão e nunca quis saber sobre outras religiões. É interessante notarmos a crítica ao olhar branco cristão e reducionista, que se vê superior, não reconhece e não quer conhecer o Outro.

Após apresentar e descrever melhor os vizinhos da Madureira, Nanal volta ao passeio pelo Rio e chega agora à Vila Mimosa, uma das mais famosas áreas de prostituição da cidade. O percurso de formação da região e da chegada das mulheres vindas do leste europeu fugidas da primeira guerra mundial é bem descrito. Em meio às andanças na Vila Mimosa, uma das prostitutas chama atenção de Juvenal, ao se aproximar ele percebe que se trata de Isaura, sua ex-noiva que havia fugido com outro homem. Ele nos conta que abaixou a cabeça para ela não o ver, e saiu de lá ainda mais abalado do que quando foi abandonado por ela no passado. O rádio era o único companheiro de Isaura em sua vida, a partir deste fato tem início a descrição da importância deste aparelho no cotidiano da sociedade da época, pois ele trazia o mundo para casa de cada um. Em seguida, as figuras de vários radialistas célebres são evocadas. No entanto, a personalidade que recebe destaque no capítulo nove do livro é Almirante. Henrique Foréis Domingues, radialista, cantor e compositor ficou mais conhecido como Almirante durante a Era de Ouro. Ele foi responsável pela incorporação de elementos do samba e canções propriamente ditas aos discos. Inclusive há um trecho de uma das músicas carnavalescas mais famosas de sua autoria, “Na Pavuna”, no romance: “Na Pavuna, na Pavuna, tem um samba que só dá gente reiúna”. (LOPES, 2012. p. 93). A importância do rádio para o crescimento do samba nos é apresentada através da inserção de Oscar, o Cazinho da Estácio, à trama. Também morador da região e participante das agremiações, ele recebe uma proposta de um cantor famoso da época para que lhe escreva uma composição. O romance é marcado pelo retrato da evolução do samba, a música das festas do subúrbio se torna mercadoria com a compra e venda de discos, e sua divulgação pelo rádio. O ritmo que hoje é um símbolo da identidade brasileira só atinge esse status ao se inserir na indústria cultural e ser aceito pelas chamadas classes dominantes.

Observando o sucesso de Oscar, Mario se torna seu parceiro de criação. Os sambas viram de fato mercadorias, com data marcada pra entrega. Madureira começa, então, a viajar e ganhar espaço no cenário musical. A partir dessas viagens o sambista entra em contato com as ideias da Frente Negra. Impressionado com os ideais da Frente e através do convívio com negros bem sucedidos, ele percebe que o afro-brasileiro não tem como função única utilizar-se da sua força de trabalho. Aliado a esse momento de tomada de consciência, temos um diálogo com os movimentos americanos de defesa e afirmação dos direitos do negro. Rob Marujo faz parte da Marinha de Guerra, suas viagens são a ponte que traz as notícias dos acontecimentos nos Estados Unidos. Ele é o porta-voz das informações sobre a organização dos negros americanos, do Harlem e da busca pela igualdade de direitos de um povo que foi colocado à margem da sociedade.

No capítulo intitulado “Embaixadas” surge o possível motivo do rancor o qual Juvenal deixa escapar sempre que fala de Mario Madureira. Em dia de desfile na Praça Onze, Mario chega de São Paulo junto com Oscar e quer que o amigo desfile dentro da corda da Fontinha, junto da agremiação e sem o uniforme característico da escola. Nanal se mostra contrário à vontade de Mario, e uma discussão entre eles se inicia. Após ofensas verbais a discussão desemboca em agressões físicas, a briga entre os dois vira quase um espetáculo. O conflito só termina quando os dois chegam à porta de uma igreja. Juvenal clama por Nossa Senhora e Mario entra no santuário. Nanal aproveita pra fugir e nos conta que só retornou a sede da escola quando soube que Madureira havia se afastado da agremiação.

Em meio à narração de episódios vários do cotidiano do bairro, aparecem as razões da amargura demonstrada quando o assunto é Vanda. A mulher espalhou diversos boatos sobre o narrador-personagem, desde uma possível relação amorosa entre Juvenal e o amigo Lelinho até a invenção de um desvio de verbas da escola de samba. Em meio a isso tudo, somos surpreendidos com a morte de Vanda, ela é encontrada, ainda agonizando, por um morador. Próximo dela se encontra o ex-marido caído, Seu Euzébio, com uma mancha de sangue nas costas. Até então, a policia não consegue desvendar o crime, no entanto, algumas linhas de investigação nos são apresentadas: a rivalidade do samba, um crime passional realizado por algum de seus amantes e questões relacionadas aos pontos de bicho que eram da vítima.

De volta à industrialização do samba, a forma preconceituosa como o ritmo ainda era visto por alguns do mundo do rádio, mesmo estando ele em um momento de ascensão no mercado, é trazida ao texto. Os contrários à inserção do ritmo ao mundo radiofônico justificavam tal postura afirmando que o rádio tinha de falar o “português de família”. Dessa forma, a linguagem oralizada e alguns temas abordados nas letras dos sambas não caberiam nesse universo. A partir disso surge uma espécie de divisão: o “samba do morro” e o “samba da rádio”. O narrador nos conta que devido a essa resistência, os que viviam do samba começaram a entrar em decadência. A figura de Mario retorna ao romance, Arnô o encontra andando na rua, magro e doente. Com a derrocada de sua carreira musical, o sambista teve como única saída tocar tamborim em uma rádio para ganhar algum dinheiro.

A vida dos amigos mais próximos de Juvenal volta a ser o centro da narrativa. Arnô se alistou no exército e foi lutar na Segunda Guerra Mundial. Nanal nos conta que no começo recebeu cartas do amigo, depois elas pararam de chegar. Em seguida surge a notícia de que o ex-jogador de futebol morreu na guerra. A figura de Rob Marujo retorna à trama e o contraste entre as condições do negro brasileiro e o negro americano é abordado novamente. Ele conta a Juvenal sobre o Harlem Hellfighters, um regimento de infantaria de sucesso composto por negros. O exército era bem preparado e os soldados tinham seu trabalho reconhecido. Em contraste a isso temos o exército brasileiro formado por pessoas dos subúrbios que, já eram fracas em decorrência das más condições em que viviam no país, durante a guerra eram mal alimentadas e mal agasalhadas. Pouco tempo após a morte de Arnô, o outro amigo, Lelinho tem as pernas amputadas após ser atropelado por um bonde. O dançarino finalmente tinha entrado para o mundo da dança, estava participando de um musical folclórico, mas, após o acidente, é obrigado a abandonar seu sonho.

O capítulo final do livro é intitulado “Gurufim”, tal palavra é de origem Banta e diz respeito a um tipo de velório em que há música, comida, dança e canto em homenagem ao morto. O título dá ao leitor uma dica do que vem a seguir. Após a decadência de sua carreira musical, Mario fica muito debilitado e morre. Sua morte gera grande movimentação não só na região da Madureira, mas em toda a comunidade do samba carioca. Compositor célebre da época, seu enterro é um verdadeiro acontecimento na cidade. Juvenal nos conta que de onde estava, debaixo de uma mangueira no alto do morrinho da igreja, via um mar de gente no cortejo até o cemitério. A partir disso tem início uma sucessão de fatos que leva o enredo a um fim surpreendente. Nanal conta que viu Isaura chegando junto de Oscar, seu companheiro, e Lelinho lhes pediu algo. Após tirar alguns níqueis do bolso, Oscar cai com a mão no peito. Juvenal diz ter ficado atordoado ao ver a cena, no entanto, somos surpreendidos quando ele conta que a única coisa que conseguiu fazer foi olhar para trás e em tal momento viu um homem que era o seu reflexo, até as vestes eram iguais. Ele termina nos dizendo que, em meio a toda aquela confusão, foi tomar cerveja em uma barraca com roda de samba, e lá ficou até o amanhecer. Depois dessa sequência de cenas confusas que aparentemente não possuem ligação importante para o fechamento do romance, o leitor é levado ao tempo presente de enunciação de Nanal. Ele se encontra na Casa de Detenção Frei Caneca, e a razão de todo rancor que escapa de suas palavras quando fala da vida ao redor da “Irmãos Unidos da Fontinha” é decorrente do fato dele estar preso e ninguém da agremiação atual ter ido até lá conversar e requisitar sua ajuda na criação do enredo comemorativo do cinquentenário da escola, pois ele foi um dos fundadores. A entrevista do sambista veterano e o livro se encerram com uma frase que mostra o sentimento de desilusão e abandono que acompanha o narrador-personagem por toda a sua vida: “Lá fora é muita ilusão, muita fantasia... muito riso falso, muita alegria de araque!” (LOPES, 2012. p. 166).

A Lua Triste Descamba merece destaque, pois leva o leitor a uma viagem através da história do samba. A partir da costura de histórias de vida de personagens fictícios a grandes figuras envolvidas com a cultura do samba, o autor permite ao leitor leigo conhecer melhor o trajeto e a evolução de uma das maiores e mais representativas manifestações sócio-culturais do país, e ao leitor “sabido” se deliciar com detalhes e associações trazidas ao texto. O escritor, ainda, homenageia não só o Rio, mas, também, a memória histórica da cidade.

Além disso, por se tratar de uma ficção localizada historicamente no tempo e no espaço de origem do samba e o nascimento do ritmo estar intrinsecamente ligado a história dos afro-brasileiros ocupantes dos guetos sociais, questões referentes à marginalização imposta aos habitantes dos subúrbios são levantadas a todo tempo no decorrer do romance. A exclusão do ser é um dos grandes dramas vividos na modernidade brasileira, o indivíduo que não vive no centro da cidade é excluído da polis. Em decorrência de um sistema que oprime e exclui, as periferias simbolizam o processo de segregação espacial sofrido por determinados grupos que foram expulsos dos centros devido a projetos de urbanização e crescimento urbano desordenado. A história de vida de Juvenal é marcada por esse deslocamento espacial e representa a decadência moderna do ideal integrador da cidade como corpo político único. É interessante notarmos a maneira como Nei Lopes incorpora esse tema à trajetória do narrador-personagem.

Ademais, esse trabalho do autor com articulações de dramas sociais é uma importante característica da literatura afro-brasileira contemporânea, que, dentre a diversidade temática, possui uma vertente que busca trazer ao leitor determinadas problemáticas da vida moderna nacional, ”com suas ilhas de prosperidade cercadas de miséria e exclusão”. (DUARTE, 2008. p.13). Junto a isso, Lopes dá voz a uma parcela da população que ocupa na sociedade um lugar relegado, e promove a exaltação da cultura negra na música popular brasileira ao utilizar o universo do samba como mote para o romance.

Referências

A história do samba carioca. Disponível em: <http://radiomec.com.br/novidades/?p=49370>. Acesso em: 27 de janeiro de 2013.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea: Relações Racias. Brasília, n.31, p. 11-23, janeiro/ junho, 2008.

ELIAS, Rodrigo. LIMA, Viviane Fernandes de. Revista de História. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/nei-lopes>. Acesso em: 27 de janeiro de 2013.

HORTA, Marina Luiza. “Ficção e comprometimento em Marcas, sonhos e raízes”. In: DUARTE, Constância Lima; DUARTE, Eduardo de Assis; ALEXANDRE, Marcos Antônio (Orgs.). Falas do Outro: literatura, gênero, etnicidade. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.

LOPES, Nei. A lua triste descamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

_____. Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1996.

1 Graduanda da Faculdade de Letras da UFMG.

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