Na trilha de Miriam Alves

Moema Parente Augel*

Desde 2009 que Bará na trilha do vento, romance da autoria da escritora negro-paulista Miriam Alves, está pronto, com promessas de publicação que caem sempre por terra.

Miriam Alves apresenta uma história em que, como ela anuncia, “Qualquer semelhança com fatos e pessoas da vida real, não é mera coincidência”.

Trata-se da saga de uma família negra, contada por uma narradora onisciente, onde a protagonista Bárbara, conhecida pelo diminutivo Bará, filha de pequenos comerciantes, cresce num bairro pobre da periferia de uma grande cidade brasileira. Uma história que, sem esquecer os problemas nem as dificuldades do entorno social, palco dos acontecimentos narrados, enfatiza a dignidade das personagens e o grande compartilhamento entre os membros de diferentes gerações que vivem naquela comunidade. É a história da realidade negra brasileira da pequena classe média, com certa independência econômica e na qual continuam vivos tanto os valores éticos de honradez, dignidade e solidariedade como as tradições africanas e religiosas. Uma história semelhante às das vidas de uma grande parte da população brasileira apresentada de forma natural e não folclórica nem panfletária. São três gerações girando em torno da herança ancestral, da religião dos longínquos e onipresentes antepassados, o que não impediu a autora de retratar também uma ascensão social que é mais inferida do que contada, sem dramaticidade e em toda obviedade: Bará criança, Bará mulher profissional independente e moderna, mas sem deixar de seguir a trilha mística que tanto contribuiu para a continuidade da cultura negra que é nossa, de todos nós brasileiros, e a voz plural da narradora nos faz ouvir a menina, a mãe, a avó – a linhagem da mulher forte.

Michael Pollak, sociólogo austríaco radicado na França, criou a expressão “memórias subterrâneas” para definir as memórias que são abafadas pela memória oficial nacional, entendendo como “subterrâneas” as lembranças dos excluídos, dos marginalizados e das minorias. A partir da observação das memórias oficiais e do reconhecimento da violência que advém dessa escolha unilateral, em detrimento de outras recordações que são excluídas, embora permanecendo “subterrâneas”, Pollak analisa, em seu artigo Memória, esquecimento e silêncio (1989), como se processa a busca de espaços para a emergência das memórias individuais, concluindo, em seu artigo que é justamente em um “trabalho de reconstrução de si mesmo” que “o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros”.

O romance de Miriam Alves, Bará na trilha do vento ou, da mesma autora, a coletânea de contos Mulher mat(r)iz (2011), ou ainda o recém lançado Obá Nijô, o rei que dança pela liberdade, livro infantil de Narcimária do Patrocínio Luz, com belas ilustrações de Ronaldo Martins (2014), ou ainda, mais distante no tempo, A mulher de Aleduma, de Aline França (1981) são alguns exemplos de textos que têm a capacidade de fazer emergir, a partir de lembranças individuais, a memória coletiva de um grande quinhão da sociedade brasileira em geral silenciado, possibilitando e privilegiando um trabalho interior de autorredefinição.

Essas autoras posicionam-se a contrapelo da memória oficial e corrente que insiste em apresentar o negro brasileiro como carente, inferior, miserável, “coitadinho”, digno de pena ou de rejeição, sem procurarem muitas vezes nem mesmo registrar o questionamento acerca da injustiça e da atrocidade do passado escravista. Elas dão voz a personagens positivas, espelhos nada raros nem nada exóticos da população negra brasileira, personagens negras exemplos de histórias de vida edificantes com os quais tantos se podem identificar.

Esses livros (e não só esses) atestam a conquista de um espaço em geral negado pela sociedade envolvente – e praticamente ausente ou abafado, negligenciado inclusive pela literatura brasileira, brancocentrada.

Geralmente a personagem negra, na ficção brasileira, quando apresentada pela autoridade hegemônica, está direta ou indiretamente ligada à memória da escravidão e à posição subalterna do negro – o que faz parte do contexto em que a memória oficial do país foi plasmada pelo colonizador e prossegue sendo repetida pelos seus continuadores, dentro da ótica do “olhar do império”, expressão cunhada por Michael Hardt em seu livro Império (2000).

Essa representação do negro é uma forma de manutenção de uma visão de mundo que perpetua o racismo, focalizada “a partir de fora”, etnocentrada. Essa percepção tem que ser apagada, ultrapassada, mas ela não pode ser eliminada por decreto nem pelo silêncio. Exige uma confrontação multifacetada com experiências a partir do cerne das vivências negras, requer espaços para testemunhos “a partir de dentro”.

São milhões de pessoas negras há séculos não tendo voz. São milhões de pessoas negras há séculos sendo silenciadas, invisibilizadas. São anos e anos em que a representatividade “a partir de dentro” não tem vez. Essa representatividade, num país onde mais de 50% da população é negra ou “negrodescendente”, não deveria nunca nem ser posta em discussão nem debatida. Sem esquecer que a arte e a política, como categorias indissociáveis, são constantemente profanadas pelo mundo e pelas circunstâncias.

Miriam Alves se empenha em desmantelar estigmatizações e arquitetar espaços de interlocução para facilitar, possibilitar maior visibilidade dessas memórias subterrâneas. Por tudo isso, uma tal singularização é necessária, até mesmo como uma forma de colocar-se em oposição à perspectiva generalizadora da democracia racial brasileira, autoafirmando-se “coesa”, na defesa de que, em nosso país multicultural, muitos são vistos como “iguais”, homogeneizados pelo elo emocional da brasilidade. Ao garantir o espaço do indivíduo, elegendo a menina Bará como protagonista, a autora permite a possibilidade da emergência de memórias que revelem, evidenciem e substituam as omissões praticadas pela história oficial hegemônica.

Miriam Alves tem consciência da importância de seu papel como escritora na textualização literária da representação da vasta parcela populacional negra brasileira, consciente de que a literatura pode constituir um espaço privilegiado para a inscrição da memória negra no processo da formação identitária nacional. Assim, procura, com seu romance, dar visibilidade a esse espaço concretizado a partir de uma individualização, na figura de Bará e seu entorno familiar e social. Recurso que se faz estratégico e necessário, com um enredo atraente desenvolvido numa linguagem cativante, opondo-se sem polêmica à atitude que alardeia a igualdade cordial e benevolente.

Vislumbro neste novo livro de Miriam Alves uma nova ótica no seio da prosa negra brasileira, abordagem que difere dos muitos (e indiscutivelmente necessários) textos em que é ressaltada a tecla da revolta, do ressentimento, do conflito ou da insistência nas origens difíceis, no passado vergonhoso e na cegueira ou no preconceito da sociedade envolvente. Miriam Alves apresenta em Bará na trilha do vento o que deveria ser óbvio, personagens negras encarnando a classe média brasileira, sem tônica no fenótipo, nem tão pouco na insistência da inferioridade social.

Creio poder afirmar que é justamente dentro das reflexões de Michael Pollak, no artigo supracitado, a respeito das “memórias subterrâneas” que a trama romanesca em pauta se desenrola. Essa memória “proibida”, e, portanto “clandestina”, do registro positivo da presença negra no país, em geral distorcida, negada ou silenciada, ocupa a trama ficcional em análise, desvelando a distância que separa a realidade da sociedade civil e a ideologia oficial de um Estado que pretende exercer a dominação hegemônica. No romance, a questão identitária está implícita em muitos episódios aparentemente marginais, na própria tônica dada à ancestralidade, tanto na figura da avó como na presença das personagens míticas percebidas apenas por Bará.

O presente e o passado são aqui relidos a partir da perspectiva feminina e negro-brasileira, envolvendo tanto a memória afetiva da autora quanto a de sua comunidade de pertencimento. O livro está fincado na afirmação afro-identitária e étnica, o que redobra a importância do enfoque de Miriam Alves, intelectual militante, sempre empenhada em romper silêncios (Enfim nós/ Finally us, 1995, título de uma antologia poética bilíngue por ela organizada) e abrir espaços de interlocução para a atuação de pulsantes memórias subterrâneas da população negra brasileira. Miriam empenha-se com sua literatura em dar corpo, lugar e forma as suas e às coletivas lembranças contra o silenciamento, consciente de que seus textos constituem instrumento de afirmação, espaço da reivindicação, oportunidade da construção do novo, sabedora da urgência da reformulação de reinscrição da sociedade, fazendo Bará na trilha do vento convocar outros ecos da memória, dialogando com outras vozes da realidade social atual.

O silêncio permite que o discurso etnocêntrico, homogeneizante e monolítico, que se quer único e verdadeiro, grite mais alto. Há um inter-relacionamento significativo entre o silenciado, a memória e o esquecimento. Através do instrumento do silenciamento, emudece-se a memória do subalterno; a ênfase recai sobre a narração do passado ligado à subserviência, ao acapachamento, na recorrente retórica da inferioridade dos povos escravizados e superioridade do colonizador. Adormecendo uma memória, acorda-se outra.

O silêncio boicota movimentos que tentam recuperar memórias sufocadas, por exemplo, a história da resistência ao jugo colonial, em suas múltiplas facetas. O mesmo se dá em relação à ascensão social dos afro-brasileiros, à falta de registro das muitas vitórias alcançadas pelas reivindicações negras. Muitas formas de dizer o dito mascaram o não dito, afirma Eni Puccinelli Orlandi, em seu livro Análise de discurso (2003), motivam distorções, estereótipos, camuflam os conflitos entre os senhores do poder e os que lutam pela sua visibilidade social.

Edward Said, em Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1990), mostrando uma importante ligação entre o imperialismo e a cultura, ressalta a grande força estratégica que significa “o poder de narrar, ou de impedir que se formem ou surjam outras narrativas”, e considera a literatura, em especial o romance, a expressão cultural que muito influenciou a “formação de atitudes, referências e experiências imperiais”, enfatizando que “as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo”. O estudioso palestino-americano referia-se ao Oriente, mas tal afirmação pode ser aplicada ao nosso questionamento, pois não é possível tratar-se da questão negra sem o pano de fundo do colonialismo e o cortejo de suas atrocidades: tráfico escravo, exploração da mão de obra, não aceitação das diferenças.

Em Bará, a tônica não está na rejeição de valores ou no desmascaramento das conhecidas e sempre comentadas injustiças sociais; no romance há afirmação, há naturalidade, certezas tranquilas e altivas, orgulho que prescinde de confrontação. Há uma exploração positiva, afirmativa de identidade e de subjetividade.

O livro de Miriam Alves, Bará na trilha do vento, me agrada sobremodo justamente porque está numa linha que me parece urgente e necessária para a literatura brasileira: aborda outros temas, saindo da pauta do negro "coitadinho", infeliz, injustiçado, sofredor; dispensa o discurso da denúncia, da reivindicação, ultrapassa o dedo em riste, assim como a autocomiseração. Dá voz e forma ao negro “resolvido”, empreendedor, pertencente à classe média, como tantos outros ignorados em sua ascensão social. O negro senhor de si que não desconhece e nem negligencia suas histórias, sua ancestralidade. Bará dispensa o apelo ao negro super herói, ao negro auratizado.

Não se trata, de forma alguma, de querer com isso negar a necessidade e mesmo a obrigação de manter viva a memória dos horrores da escravidão nem de minimizar a continuidade do injusto tratamento desigual e discriminatório face à população negra, vigente na sociedade brasileira, nem tampouco querer silenciar a realidade política de desrespeito, da discriminação e da inferiorização que caracterizam a postura da classe dirigente brancocentrada. A ênfase é dada nos meios encontrados pelo esforço cotidiano de ultrapassar as adversidades, em persistentes vivências silenciosas, em nada espetaculares, de construção e de autoconstrução.

Minha argumentação, ao defender a publicação de Bará na trilha do vento, centra-se na convicção da urgência de livros de autoria negra (e não só) que invistam de forma mais assertiva na construção simbólica de uma imagem mais positiva da população negra brasileira.

Considero importante, mesmo essencial, que a população negra, e também a não negra, não seja confrontada apenas com o negativo. Esse tipo de apresentação e de representação agrava a pouca confiança na autoimagem da parte dos leitores não brancos e contribui para reforçar o sentimento de superioridade dos não negros. A pena, a comiseração, a compaixão, o sentir-se tocado com uma imagem ou um texto que apele para tais sentimentos negativos e inferiorizantes podem ativar um comportamento altamente pernicioso e que não contribui para o sentimento de igualdade nem respeito à alteridade.

A maioria da prosa de temática negra conhecida está nessa linha que, a meu ver, enfatiza aspectos reais e necessários, mas muitas vezes em abordagens pelo menos discutíveis. Não critico a escolha feita por certos autores, e não deixo de reconhecer e aplaudir o valor de muitos textos, alguns admiráveis, escritos com maestria e certamente com o objetivo também político de chamar a atenção para a assimetria socioeconômica que continua caracterizando a sociedade brasileira. Tudo isso é importante, indispensável. Mas defendo a opinião que é necessário também ir-se mais longe e acrescentar a essa postura de aberta denúncia e de reiterada reivindicação que foi necessária no passado, o espaço para outras abordagens: as vitórias e as realizações da classe média negra, a autoafirmação, as conquistas profissionais e sociais.

No século XXI, é urgente tratar o “Outro”, tratar a diferença com menos estranheza. A alteridade pode e deve ser constatada de modo positivo, como riqueza e com naturalidade. Não me satisfaz o não distanciamento levado pela piedade nem mesmo levado só pela indignação. Patenteando seu compromisso com a herança africana e suas raízes, Miriam Alves, com sua ficção, ressignifica a cultura nacional, retirando dos subterrâneos da história nacional necessárias memórias e reais realidades identitárias.

O romance de Miriam Alves, Bará na trilha do vento, vem ao encontro dessa postura que já se delineia de forma mais clara e decisiva na poesia e que busca outros temas, como o do amor, do erotismo, do intimismo ou pulando mesmo para ousados voos experimentais (como, por exemplo, o fazem autores seminais como Edimilson Pereira, Ronald Augusto), e também na literatura infantojuvenil, da qual são exemplos animadores novos livros dos últimos anos, que editoras como a Mazza, a Nandyala, a Pallas vêm publicando com muito sucesso. Dou especial destaque ao enfoque pedagógico multimidiático de Renato Noguera, com as aventuras das personagens Nana e Nilo, ou Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino.

No Brasil, com sua multiplicidade étnica e a imposição de um padrão estético branco-ocidental, a mídia, seja ela falada ou escrita, em seu papel mobilizador de opinião; as artes, aí incluindo a literatura e a música, assim como a escola podem contribuir para a construção da identidade ou sua destruição, podem fortalecer a autoestima ou intensificar o sentimento de inferioridade. Por isso mesmo, é especialmente necessário haver obras em que protagonistas negros, e índios também, sejam realçados positivamente; que personagens negras sejam apresentadas de forma altiva; que sejam exibidas a existência e a atuação de figuras negras reais, passadas e atuais, bem como ficcionais.

Bará na trilha do vento não se direciona apenas a um público leitor afrodescendente, mas a todo brasileiro, independente de sua etnia ou origem. O reconhecimento da origem comum e o pertencimento a um determinado grupo são fatores que influenciam fundamentalmente a identidade do indivíduo. Sendo esse reconhecimento marcado por estímulos construtivos, a autoestima e, com ela, a autoafirmação, são reforçadas. Cimentar esse processo através da literatura – e da leitura – é um dos recursos mais proveitosos e habilidosos para tal fim.

* Moema Parente Augel é professora da Universidade de Bielefeld, na Alemanha e uma das decanas dos estudos literários afro-brasileiros e africanos, com vários artigos e demais publicações a respeito. Dentre elas, destaca-se O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura de Guiné-Bissau (2007).

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