A “afrovivência” na obra de Fábio Mandingo

Rafaela Pereira*

Quem está acostumado com a encantadora capital baiana construída pela propaganda turística e carnavalesca corre o risco de estranhar a Salvador periférica apresentada nas obras de Fábio Mandingo. Salvador negro rancor (2011) e Morte e vida virgulina (2013) apresentam enredos que apontam para uma cidade rude e cruel, em que certas ruas – e seus habitantes – constituem cenários incômodos, ligados a uma realidade crua, que o autor faz questão de inserir em tom de contra narrativa. Utilizando uma dicção intensa e realista, Mandingo traça histórias em ritmo ágil, assim como os movimentos da capoeira, que aparece em vários de seus contos, a fim de encenar a “afrovivência” dos personagens. Na maioria das vezes, os textos já começam com descrições um tanto insólitas, com evidente propósito de estranhamento.

Em Salvador negro rancor e Morte e vida virgulina, a linguagem permite a identificação do estrato social ao qual pertence a maioria dos personagens. É através dessa fala mesclada com a gíria e a linguagem popular que vão surgindo os temas ausentes do discurso ufanista que edifica a imagem da “boa terra”. A Bahia, como qualquer outro paraíso tropical da indústria turística, atrai estrangeiros de todas as espécies. Mandingo volta seu olhar em especial para “hippies” e contraventores como Kaska, um “gringo carente” e simpático, que sobrevive e até acumula bens de forma duvidosa, como elo de uma imensa corrente subterrânea conectada ao crime organizado e ao próprio aparato policial-repressivo:

Kaska fazia intermédio entre os recém-chegados e os nativos, entre os novatos e as quebradas do Pelô. Ensinava-lhes as gírias, os trejeitos, levava pra festas fechadas, para as rodas de capoeira, apresentava os gringos carentes aos nativos, os nativos aos gringos mais-ou-menos, os gringos mais-ou-menos pros gringos ricos e os gringos ricos para os nativos. Na verdade, era justamente como intermediário da fuleiragem, que Kaska, engenheiro náutico, vinha se especializando e tirando daí o seu bom sustento, vivendo como bom vivant pelas ruas da Bahia, sendo cafetão, traficante, aliciador, ladrão, alcoviteiro e caguete, sendo tudo isso, e não sendo nada disso, sem dar um prego. (MANDINGO: 2011, p. 20-21)

Kaska até consegue ser bem sucedido em algumas situações, mas o desfecho do conto aponta para outra direção. A ele se juntam personagens de histórias vividas no mesmo espaço de precariedade e abandono que caracteriza áreas degradadas das metrópoles brasileiras. Em “Cisco” as ações são pautadas pela “fissura” provocada pelo crack. A narrativa acompanha o vai-e-vem do “sacizeiro” com seu cachimbo em busca da pedra. Os movimentos do garoto abandonado ao vício buscam a sobrevivência precária ditada pelos minutos de prazer a que se seguem novas perambulações e atribulações pelas ruas da cidade.

Já no conto “Paulista”, o personagem narrador – um jovem sem eira nem beira que vive nas ruas de Belo Horizonte enquanto não consegue uma passagem para São Paulo – apresenta ao leitor a figura de Paulista, homem a quem se refere como seu “pai de rua”. E, novamente, mergulhamos nas vias centrais, parques e praças onde trabalham, comem e dormem os indigentes. Sob a liderança do “pai de rua”, a pequena “família” reúne crianças e adolescentes que sobrevivem fazendo barcos artesanais vendidos nos cruzamentos, além, é claro, do tráfico, praticado muito mais para sustendo do consumo do que como fonte de renda. Daí ao assalto, ao sangue e à prisão, a distância é mínima.

“Pipoca” faz o leitor mergulhar no caos que margeia o carnaval da Bahia. O narrador, um trabalhador negro que quer apenas chegar em casa após um dia extenuante, vê-se obrigado a entrar na multidão que envolve os blocos do desfile, cercados de cordas e seguranças. Para chegar até o Garcia, antigo bairro onde mora, terá que atravessar toda a Avenida Sete, um dos palcos da festa. Seu objetivo contém muito de desafio: passar por toda a multidão ileso, sem ser parado pela polícia, nem atacado por nenhum “folião” mal intencionado. Pela forma como o personagem relata o que pode acontecer, o leitor vai se afligindo e a tensão cresce a cada metro de calçada percorrido. A “pipoca” prevê passos, pulos, esbarrões e encontros inesperados, marcados todos pelo medo de uma voz narrativa em primeira pessoa, que efetivamente não sabe se conseguirá escapar de tantos obstáculos. Com o dinheiro do dia escondido no tênis, o homem atravessa o conto ciente de sua condição de vítima preferencial da violência, seja das gangues, dos espertos sempre atentos aos descuidos de quem tem pressa, ou da própria polícia. Chegará ao seu destino?

Em “Por acaso” o narrador – um jovem pobre e trabalhador que se dirige à periferia para “bater uma laje” num mutirão de família na manhã que se aproxima – revela sua apreensão diante da mulher branca e bem vestida que senta a seu lado no ônibus com a bolsa fortemente protegida entre os braços. A voz narrativa interpreta o gesto da outra como desconfiança, e declara que uma “das coisas que mais odiava era ser tirado de ladrão”. Vai então dividindo com o leitor suas apreensões sobre o que estaria fazendo ali aquela mulher naquela hora tardia. Ao final da viagem, ambos descem no mesmo ponto e a história ganha um desfecho surpreendente.

No conto que dá nome ao livro, o personagem trata de sua rotina nas ruas do Pelourinho e mergulha no universo da capoeira e de sua ginga. Intrigado com atuação de um espanhol nas rodas, o narrador vai pensando em estratégias para derrubar o “intruso”, que lhe causa certo incômodo ao querer se impor e ocupar um espaço que não era seu de direito. Somos então apresentados à logica de uma luta dissimulada em algo lúdico e inofensivo:

Um pequeno número de ataques e defesas, que se combinam e se multiplicam infinitamente, criando variadas formas de responder ou desviar das perguntas lançadas pelos parceiros, de apresentar perguntas cujas respostas eles não possam solucionar, ou mesmo, trancá-los em seu próprio jogo, até o momento certo de empunhar o golpe certeiro, infalível: o xeque mate. (MANDINGO, p. 66).

Neste conto, a capoeira surge emaranhada com a vida e fornece ao protagonista meios para o enfrentamento de suas dificuldades cotidianas. A arte da luta, com seus princípios e táticas, amplia sua autoconfiança, ao apontar formas de proteção e táticas para encarar os desafios. Diante da disputa com o estrangeiro, que não se restringe ao espaço da luta, mas se estende a uma disputa pelo território cultural que permeia as ruas do Pelourinho, ele tem que traçar sua estratégia. Para tanto, põe-se a rever tudo o que aprendeu com o Mestre e prepara a tática a ser utilizada. O conto faz referência a Mestre Pastinha, importante conhecedor dos fundamentos e segredos da capoeiragem e também manifesta a crítica autoral aos métodos e atitudes do aparato policial-militar, não apenas em relação aos capoeiristas, mas aos afrodescendentes e pobres em geral.

No seu segundo livro, Morte e vida virgulina, publicado em 2013, Mandingo mantém muitos elementos presentes no primeiro, como por exemplo, a linguagem despojada das narrativas. Constituído de cinco contos, que também têm como cenário espaços populares de Salvador, o livro encena seus enredos em ritmo de capoeira, em que é preciso ter ginga e estar atento ao antagonista e saber qual golpe utilizar para a defesa: se algo traumatizante, como “rabo de arraia”, ou apenas para desequilibrar, como a rasteira. Nos dois primeiros contos, “Infanto Juvenil I” e “Infanto Juvenil II”, a narrativa tem como centro a infância nada pacífica de dois garotos do Bairro Liberdade1, com suas brincadeiras e disputas, o futebol do asfalto e as constantes brigas com os times das outras ruas ou outros bairros. A violência surge embutida nas disputas, cada grupo querendo ficar na posição de privilégio e se afirmar, por ter vencido um jogo ou ganho uma briga.

No terceiro conto, “Mara”, o enredo apresenta o drama vivido pela personagem que dá nome ao conto, que tem a vida transformada em decorrência do julgamento cruel dos conhecidos, que a consideram como uma ameaça porque adotou um “estilo diferente”. Tais julgamentos fazem com que a moça passe por situações impiedosas, com graves consequências em sua vida. E novamente temos a figura do gringo como uma espécie de intruso e as ações dos antropólogos vistas com desconfiança.

O quarto conto, que dá nome ao livro, se inicia com a cena de um assalto na casa de um deputado. Os personagens, caracterizados apenas como Brasileiro e Angolano, discutem a formação cultural dos dois países, a começar pela visão que cada um tem da morte:

– O PM matou meu pai na minha frente, Angola, na frente de todo mundo, de tarde, a rua lotada de gente, todo mundo viu, mas me diga se alguém testemunhou? Nada!, ficou o velho no chão da padaria com a cabeça estourada. (...)

– Vocês aqui no Brasil são muito românticos.

– Qual o problema, Angolano?

– Matar, morrer, isso é tudo parte da vida, não tem nada de anormal nisso.
(MANDINGO: 2013, p. 62-63)

É interessante observar a forma como é construído o diálogo entre os dois, o que permite ao leitor perceber que, apesar da distância geográfica e cultural e das diferenças que separam Angola e Brasil, ambos têm em comum a violência que marca para sempre as vidas dos personagens:

– Minha aldeia estava em cerimônia de passagem. Um avô tinha morrido. Os homens estavam mascarados, rezando, entoando cânticos, dançando. À noite, os cubanos chegaram com suas Khalashnikov, mandaram os Kota tirarem as máscaras, disseram que a gente era UNITA. Os velhos estavam incorporados, os ancestrais estavam entre nós abençoando a passagem do Avô. Não tiraram as máscaras. Os Cubanos e os MPLA fuzilaram meu pai, meu avô, meu tio, meus irmãos mais velhos e as crianças, Brasil... Eu também tinha doze anos, e desde então virei soldado UNITA. (MANDINGO: 2013, p. 64).

Ambos os personagens tinham a mesma idade quando os pais foram assassinados, lá numa guerra civil, aqui numa “guerra” não declarada. Mas esta peculiaridade não faz com que os dois tenham sempre a mesma opinião. Angolano questiona o fato de Zumbi ser celebrado no Brasil ao invés de Kota Irene, símbolo matriarcal e governante de Palmares. Mais uma vez a perspectiva autoral se faz crítica da forma como é construído o discurso da história.

O último conto, “Ojuoyin”, retoma a tradição ocidental para construir um triângulo amoroso em pleno universo da capoeira: impertinente e atrevido, Obainã se apaixona por Ojuoyin, filha de Ypiranga, mestre do grupo rival e é correspondido. Logo busca proteção nos rituais do Candomblé para conseguir realizar seu desejo, sem que isto comprometa o futuro do casal. É então que a ginga da luta afro-brasileira tem que ser exercida dentro e fora do jogo propriamente dito. Ao final, os dois capoeiristas acabam se enfrentando num “duelo” em que não faltam golpes baixos.

Cumprindo o seu intento de mostrar o lado rancoroso da tão louvada Salvador, Mandingo ressalta o contraste ente o belo e o criativo frente a frente com a miséria e a violência. O Pelourinho acaba se tornando um espaço-sujeito, persona oculta a perpassar as histórias como forma de questionamento de uma baianidade alegre, festiva, cordial e acolhedora. Muitos dos soteropolitanos presentes em seus contos figuram como intrusos na terra em que nasceram. E o sentimento de estar ao mesmo tempo dentro e fora ganha densidade e verossimilhança na força da voz narrativa em primeira pessoa, habilmente exercida pelo contista. Fábio Mandingo vai fundo nos dramas que habitam sua ficção ao trazer para o centro dos enredos a fala e o ponto de vista do Outro. É com esse olhar interno e atento sobre a realidade contraditória que o cerca que o autor constrói sua percepção da afrovivência tão presente na vida da população baiana.

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1. Bairro de grande concentração populacional que se tornou famoso por ter sido considerado o bairro com maior número de negros do Brasil. Porém, em 2012, o IBGE alegou que o posto cabe ao bairro de Pernambués, também na cidade de Salvador.

* Rafaela Pereira é graduada em Letras pela UFMG e professora de Português e Literatura no Ensino Fundamental e Médio.

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