A fortuna de Conceição - Prefácio a Histórias de leves enganos e parecenças

Assunção Sousa*

Conceição Evaristo, mineira, radicada nas terras fluminenses, poetisa, romancista e contista nos oferece um livro inovador com doze contos e uma novela, nesses tempos de conturbação política, à beira de um inesperado retrocesso das conquistas sociais no Brasil. Dizemos inovador porque, mesmo que se comprove a existência de elementos discursivos recorrentes nos livros anteriores, em Histórias de leves enganos e parecenças, Conceição toma a decisão de percorrer a seara do insólito, do estranho, do imprevisível. Isto posto, não faltam exemplos de passagens das narrativas que nos remetem a tal expediente.

O conto Rosa Maria Rosa, cuja personagem engradada vive uma espécie de “trancamento do corpo”, ilustra isso. Certo dia, por descuido, Rosa levanta os braços e de seus suores pingam “gotas de pétalas de flores”. O mesmo dispositivo de inserção do estranho acontece com Inguitinha, a frágil moça que cansada de tanta zombaria por causa de seu nome, um dia decide revidar e enfrenta com toda sua força aqueles que a afrontam. No conto, “A menina de vestido amarelo”, o inusitado se instala no ritual da primeira comunhão, quando “ruídos de água desenhavam rios caudalosos e mansos a correr pelo corredor central do templo”. Outros manifestados do imprevisível tomam corpo na novela “Sabela”. Nela, o corpo da personagem homônima sinaliza o estado da indomável natureza a prenunciar o dilúvio. As previsões e visões de Sabela confirmam a tormenta que abate a população e o lugar e a personagem atua como detentora de uma sapiência incomum sobre os mistérios da “natureza – natureza, os da natureza humana e os da natureza divina”.

Essas incursões que irrompem a lei natural das coisas e que tendem a provocar no/a leitor/a “hesitação” podem levá-lo/a a uma possível leitura do livro pela via crítica ocidentalizada, enquadrando-o como literatura fantástica, pela ocorrência do insólito. Todavia, a nosso ver, a construção de tal expediente se alicerça sob outros pilares, se levarmos em conta os discursos de Conceição Evaristo como teórica da literatura.

Ao se referir ao procedimento de criação do conto “O sagrado pão dos filhos”, ainda naquele momento em processo de construção, a autora mencionou que antes mesmo dos Estudos Culturais teorizarem as questões de gênero,

as mulheres das classes subalternas já tinham atitudes e estratégias de enfrentamento diante da dureza do cotidiano. Histórias, ficções criadas por elas funcionavam como discursos de resistência e mais do que isso, como suporte, amparo emocional diante do sofrimento. Formas ficcionais que buscam resistência, podem ficcionalizar o cotidiano, sobrepujando a dor. Para além das impossibilidades de alimentar os filhos, cria-se uma ficção que os filhos eram alimentados com as águas das mãos da mulher que guardavam restos de farinhas do pão que ela preparava na casa-grande” (A questão dos gêneros nas artes, palestra proferida em 26 de setembro de 2015/ Sesc Palladium/ Belo Horizonte).

Podemos construir, apoiados/as nesse ponto de vista, uma possível via de reflexão sobre a estratégia de inclusão do imprevisível nas novas narrativas de Conceição Evaristo. A incursão da imprevisibilidade, isto é, do estranho nos contos e na novela parece mais se aproximar do que se concebe como realismo animista (termo cunhado pelo escritor angolano Pepetela), perspectivado em diversas narrativas africanas. Isto porque a existência da atuação de forças da natureza, da alteração dos fenômenos que modificam a ordem natural das coisas, a crença em entidades capazes de intervir na rotina dos personagens, etc. são estratégias concebidas por um modus operandi revelador da maneira de pensar, de ser e de existir de uma dada comunidade cujas origens advêm da diáspora africana.

As estratégias apontadas nos contos e na novela em discussão redimensionam o fazer literário de teor inclusivo quanto ao que não está na “ordem natural das coisas” que conduz a um pensamento animista, caracterizado não meramente por uma “representação”, mas como forma de “apreensão do mundo” (Soyinka, 1976). Esse modo de apreensão dos mitos, rituais e valores ancestrais tende a recusar uma nova colonização e validar um modo de ser e existir revigorado no ato da “escrevivência” evaristiana.

Desse modo, a antologia Histórias de leves enganos e parecenças encaminha o leitor a múltiplas vias de leitura e ainda proporciona investigações por diversos enfoques teóricos, entre eles, o de identificar as linhas mestras do projeto literário de Conceição Evaristo. Do primeiro ao último conto e novela “Sabela”, cimeira do livro, vamos encontrar, no âmbito dos enunciados, diálogos intratextuais com a obra da autora e intertextuais com mitos e outros textos da cultura brasileira.

Sob o primeiro viés, pode ser instigante para o leitor estabelecer relações formais e temáticas com Ponciá Vicencio, (2003), Becos da memória (2006), Poemas da recordação e outros movimentos (2011), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) e Olhos d’água (2015). No segundo, o intertexto é tecido com outras vozes da música popular brasileira, ou com histórias dos ancestrais divinizados africanos. Tal percurso há de ser produtivo na averiguação dos aspectos da linguagem, da construção das personagens e da concepção das narradoras notadamente imbuídas de postura ético-estética.

Assim, esferas narrativas são densamente desenvolvidas com vistas a visibilizar mais as personagens do que propriamente as histórias que são contadas. Podemos inferir que os contos de Conceição são contos-personagens, que se realizam pelas falas das personagens no ato de rememorar a prática do cotidiano que, por sua vez, remetem à condição étnica e de gênero.

Quanto às vigas temáticas que vigoram, além doutras, enfatizam-se as que vêm sendo basilares da prosa e da poesia de Conceição Evaristo, a saber, a evocação à história dos afro-brasileiros e brasileiras, ressaltando como fonte a oralidade; a concepção de uma cosmogonia híbrida, plural, em que os contatos culturais são mediados pelo sincretismo que, em meio ao conflito, a ordem hierárquica é subvertida; o subalterno como sujeito consciente de sua condição e realidades, sempre em busca de resistir às pressões do status quo que engendram as relações de poder demarcadas pela herança escravocrata; a força feminina como “fêmea-matriz” e “força-motriz” da comunidade/ sociedade em que está inserida; a força ancestral como guia para o enfrentamento contra preconceito e a discriminação do povo negro. Enfim, temas perpassados por uma ética aportada no pacto da oitiva, que não cabe “a instalação de qualquer suspeita”.

A relação de poder que subjuga as classes subalternas e sustenta o fosso social aparece nas narrativas como fator determinante das deficiências das estruturas históricas e sociais. Conceição Evaristo nos põe em um lugar inquietante e desafiador, como se clamasse para uma leitura não passiva, nem pacífica. O que se conta, através do figurativo, do alegórico e do simbólico, engendra-se a partir dos fatos e de suas consequências históricas, que incidem na vida cotidiana, onde pobres – negros e não negros, despertos em suas masculinidades e feminilidades –, rompem com o preestabelecido, revelando nos “líquidos” corpos a veia da resistência.

Por isso, faz-se pertinente o destaque a personagens comuns tais quais Rosa Maria Rosa, Inquitinha, Fémina Jasmine, Alípio de Sá, Andina Magnolia, Davenir, Dolores Feliciana e seus guris, Halima tataravó e Halima bisneta, contrapostas às da família Correa Pedragal ou da Sra. Cálida Palmital Viamontes. Uma gama de sujeitos intensamente humanizados, frágeis ou prepotentes, inocentes ou ambiciosos, arrogantes ou fortemente humildes, atuando conforme suas circunstâncias, com vontades ou contra vontades, revigorados nos sonhos ou aceitando as desilusões sob o embate das leis da sobrevivência e da proteção.

Os elementos água e fogo modalizam as ambiências narrativas como empreendimentos vivificadores. Nos contos e, mais precisamente, na novela “Sabela”, a água constitui o corpo físico e o corpo social. Por vezes, passa a ser símile ou metonímia do universo urdido. Neste aspecto, as narrativas de Conceição comungam com procedimentos da tradição e da contemporaneidade da arte. O elemento água se instala referido como fonte da vida ou como provocador da destruição.

Na perspectiva das narrativas tradicionais, a metáfora da água remete ao “princípio de todas as coisas”, “elemento primordial” (Aristóteles), ou “espelhamento do mundo” (Narciso) e quando ligado ao corpo feminino traz o sentido da fertilidade, flexibilidade e instabilidade. Como fonte de desequilíbrio e destruição aparece preponderante como elemento de mudança na iconografia do dilúvio. Na atualidade, por seu turno, o elemento água, especialmente nas produções de artistas femininas (Marina Abramovic, Teresa Margoles), remete à continuidade da vida, extensão do corpo humano, dentre outras perspectivas, quando se faz urgente evidenciar e amenizar as dores femininas no mundo.

“Assim tudo se deu”. A simbologia das águas em Histórias de leves enganos e parecenças decorre de vários parâmetros em que os enredos vão se firmando, quer no intuito de aplacar a maldição e afrontar a fúria do abuso do poder, quer para revitalizar a crença ancestral, o poder feminino e a instalação de uma nova ordem. Desse modo, Conceição Evaristo emprega tanto os sentidos da tradição quanto da contemporaneidade.

Por outro lado, ao pensarmos sobre a insistente presença do elemento água no discurso poético de Poemas da recordação e outros movimentos (2011) e de como pulula nas lágrimas das contadoras dos contos de Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) parece crível inferirmos que ele se realiza como metáfora da memória que se instala muitas vezes esfacelada e fraturada, persistindo na rearticulação de novas subjetividades e potencializando identidades negras dos sujeitos que transitam nas zonas de conflito. Do mesmo modo acontece, especialmente, no conto “Mansões e puxadinhos” e em “Sabela”.

Enfim, vale o/a leitor/a atentar para as narradoras de Histórias de leves enganos e parecenças. Elas estão imbuídas de duas funções diferentes que se justapõem. A função de ouvinte e ao mesmo tempo de contadora da história alheia, que não deixa de ser também de si mesma. Conceição Evaristo retoma o processo anterior de semelhante efeito no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, mas emprega outros procedimentos para sensibilizar a audiência-leitora. Os relatos apontam para um ambíguo distanciamento que revela no fundo uma elevada cumplicidade. Em Insubmissas lágrimas de mulheres, a narradora enuncia:

Gosto de ouvir, mas não sei se sou a hábil conselheira. Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E, no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta. E, quando de mim uma lágrima se faz mais rápida do que o gesto de minha mão a correr sobre o meu próprio rosto, deixo o choro viver. [...] Portanto essas histórias não são totalmente minhas, mas quase que me pertencem, na medida em que, às vezes, se (con)fundem com as minhas. Invento? Sim, invento, sem pudor [...]. (EVARISTO, 2011, p. 10).

A narradora, que molda as histórias contadas por Aramides Florença, Natalina Soledad e outras mulheres, assim o faz absorvendo as fragilidades com o intuito de mostrar o momento posterior de superação e resistências das mulheres no mundo de violência. Se em Insubmissas lágrimas... a voz que fala diz que também “inventa”, em Histórias de leves enganos e parecenças, a narradora-ouvinte adverte o/a leitor/a sobre o pacto de ouvir e não suspeitar, realçando o caráter primordial do narrado. A escrita é memória trazendo à tona “as histórias das entranhas do povo”. Então a narradora escreve na abertura:

Sei que a vida não pode ser vista só com o olho nu. De muitas histórias já sei, pois vieram das entranhas do meu povo. O que está guardado na minha gente, em mim dorme um leve sonho. [...] Ouço pelo prazer da confirmação. Ouço pela partição da experiência de quem conta comigo e comigo conta. [...] Escrevo o que a vida me fala, o que capto de muitas vivências. Escrevivências. [...] Cada qual crê em seus próprios mistérios. Cuidado tenho. Sei que a vida está para além do que pode ser visto, dito e escrito. A razão pode profanar o enigma e não conseguir esgotar o profundo sentido da parábola.  (EVARISTO, 2016).

Isso dito parece revigorar o acerto poético da autora encontrado no poema “Recordar é preciso” que versa:

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus farejados olhos transborda-me a vida
salgando-me o rosto e gosto
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.
(EVARISTO, 2008, p. 17).

Ou em “A roda dos não ausentes”, quando o eu poético de Conceição Evaristo reconhece:

Cada pedaço que guardo em mim
tem na memória o anelar
de outros pedaços.
(EVARISTO, 2008, p. 81).

Nessa comunhão de vozes-mulheres que percorrem a obra de Conceição, numa dimensão que agora tende para o “realismo animista”, as figuras femininas dão o tom da feitura do universo criado. Elas estão despertas e, ao contarem suas histórias de leves enganos, fazem ressoar parecenças. Nesse ato, em que não há espaço para emudecimento, contrapondo-se à violência de todos os modos, multiplicam forças e revigoram a existência na tessitura da solidariedade e da resistência.

Referências

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Florianópolis: Editora Mulheres, 2006.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.

EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. Rio de Janeiro: Malê, 2016.

VARGAS. Débora Jael R.; SILVEIRA, Regina da Costa da; O insólito na literatura e a cosmovisão africana. Revista Letras & Letras, v. 30, n. 1, p. 207-218, jan./jul. 2014. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras>. Acesso em 15 maio 2016.

SOYINKA, Wole. Myth, literature and the African world. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.


* Assunção de Maria Sousa e Silva é Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e professora da Universidade Estadual do Piauí.

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