SOBRE-VIVENTES!, de Cidinha da Silva: um olhar crítico sobre a contemporaneidade

Marcos Antônio Alexandre*

SOBRE-VIVENTES! é o décimo livro de Cidinha da Silva, autora – prosadora e dramaturga – que, hoje, já apresenta uma trajetória literária consistente, assertiva que pode ser corroborada não apenas simplesmente pelo número expressivo de obras que publicou em um espaço de tempo relativamente curto, mas pela qualidade de seus textos, pelo trabalho com o exercício e a criação da linguagem apresentada em cada novo livro, que é apresentado para seus leitores. Publicada em 2006, pelo Instituto Kuanza, em São Paulo (com uma segunda edição revisada e publicada no ano seguinte pela Mazza Edições), sua primeira obra foi Cada Tridente em seu lugar e outras crônicas e, desde então, a autora tem se dedicado à publicação de outros trabalhos: crônicas, contos, obras infantojuvenis e organizações. Merece destaque o fato de Cidinha também estar se dedicando à escrita de dramaturgia teatral. De seu envolvimento com o campo artístico, escreveu, sob encomenda para o grupo Os Crespos, a peça Engravidei, pari e aprendi a voar sem asas, encenada em 2013, com direção de Lucelia Sergio e Sidney Santiago Kuanza.

SOBRE-VIVENTES! surpreende o leitor desde início ao fim. Nesta nova publicação a autora reúne quarenta e uma crônicas. Dentro do trabalho com a linguagem, o primeiro aspecto que me chama a atenção é a dicotomia do título, justo porque a autora elege para nomear a sua obra um nome – SOBRE-VIVENTES – que, em si, assim como a grande maioria dos textos que integra o seu livro, nos permite leituras múltiplas. Tratar-se-iam das histórias e identidades de sujeitos “sobreviventes” às intempéries sociais das distintas cidades brasileiras? Ou se trataria de uma mera divisão dos vocábulos sem grandes consequências semânticas?

Em se tratando da escrita de Cidinha da Silva, este questionamento, para um leitor “desavisado”, até poderia ser considerado, mas seria uma interpretação “óbvia”, “ingênua” e para ser logo descartada. O hífen que, aqui, “rompe” – quebra, fragmenta – a palavra ao meio, ao mesmo tempo, a complementa e a ratifica; e, por sua vez, valoriza e ressignifica o vetor que mais nos interessa: o termo “VIVENTES”. Neste sentido, os leitores estão diante de textualidades relativas aos “viventes”. E quem são estes “viventes”? No jogo com a linguagem proposto pela autora, eles recebem letras maiúsculas e são acrescidos de um sinal de um sinal exclamação, vetor que ressignifica ainda mais o termo e amplifica o título: SOBRE-VIVENTES!, que são muitos, são múltiplos, são plurais, são polissêmicos, assim como os seus textos-crônicas... Tudo pode ser ratificado por meio da leitura de seus textos-crônicas. Há que se registrar que “Sobre-viventes” (p. 101-102) é apenas uma entre as 41 textualidades que integram a obra, ou seja, são muitos os lugares de fala trazidos para discussão...

Talvez, para os mais “puristas” dos discursos literários, “crônica” não seria a melhor definição para conceituar cada texto que integra o livro. Entrar nesta polêmica é irrelevante, pois os textos de Cidinha da Silva ignoram estas categorias e, neste sentido, assumem sim (deixando de lado os olhares críticos puristas vigentes) a nomenclatura de crônica, assumindo outras tantas como microtextos, depoimentos, tessituras do eu e do outro, paisagens urbanas, microdiscursos... Segundo as palavras da autora, “Eu não escrevo para o mercado, porque não escrevo para vender, escrevo para materializar minha necessidade de criação.” (In: Portal Literafro).

Em seu livro O que é contemporâneo? e outros ensaios, Giorgio Agamben (2009, p. 57), abre o capítulo homônimo à obra fazendo um autoquestionamento que julgo apropriado para lermos e dialogarmos com a escrita de Cidinha da Silva: “A pergunta que gostaria de escrever no limiar deste seminário é: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo”.” Os termos de quem e o do que são imprescindíveis para tratarmos sobre a noção de contemporaneidade.

De igual maneira, são fundamentais para enunciarmos diante da ideia de discursos, visto que é exatamente dentro destas perspectivas discursivas e linguísticas que a autora, muitas vezes, joga com a concepção de contemporâneo, e insere as suas personagens em ambiências atemporais, ou seja, faz com que elas possam transitar através dos tempos, demonstrando que o contemporâneo resvala e transcende qualquer tipo de binarismo como pode ser observado, a título de exemplo, nas personas de “Assata Shakur e Nhá Chica”:

Eu jogo no time de Anastácia, aquela cuja existência a historiografia questiona. Que é vivíssima na memória do povo. Que atravessou gerações desde o século XVIII pela tradição oral. Que é filha de Obá em nosso imaginário infinito e atemporal de luta para sermos livres e plenas.
Eu jogo no time de Luiz Gama para quem todo escravizado que mata o escravizador, o faz em legítima defesa. Se for preciso, a gente descansa a pena de Nkossi e faz o xirê do fogo. E se cair, a gente cai de pé, atirando, como Assata Shakur. (p. 77).

Personas, porque os fatos reais e históricos transcendem os seus momentos de enunciação e ressignificam o contemporâneo, que nos habitam e nos cruzam, rasurando a categoria de “personagem”. Assim, o limiar de representação sobre o contemporâneo em SOBRE-VIVENTES! é resvalado também por meio das personagens/personas/personalidades de forma tênue e escapa ao controle do olhar que está em busca do contemporâneo.

Às vezes, os “viventes” nos escapam como a autora chama para dialogar com seu discurso personalidades/personas como entre outros, Alice Walker, Joaquim Barbosa, Emílio Santiago (cuja voz rememorava outros grandes como Orlando Silva, Silvio Caldas, Roberto Silva) e “Agora, a falta do seu sorriso franco, da sua risada sonora, enche o espaço de tristeza” (p. 54) ou Tim Maia, a partir da leitura da biografia que Nelson Motta escreveu sobre o artista, a autora, sutilmente, brinca com as palavras e com ironia e humor tece uma crítica e acaba trazendo outras personalidades da cena artística negra brasileira: “Para minha surpresa, dois negrões aptos a desfilar no Ilê Ayê, Wilson Simonal e Jorge Benjor tornam-se mulatos na descrição do Motta.” (p. 44)

O humor é um veio muito potente na escritura de Cidinha da Silva e que ela traz para seus “viventes”, explorando-o a partir de enfoques diferentes. Este é o Tema de “Sujeito Oculto”, um tropeço linguístico em ritmo de “deboche” da ginga de um brasileiro, supostamente antenado, perdido no Malecón em Havana:

O brasileiro finge não ver o movimento dos camaradas, como convencionam as regras heteronormativas. Dirige-se ao balcão do bar, põe a mão sobre ele e a retira instantaneamente, repelida pela crosta pegajosa. Pede uma pinga. Bem alto. Todos os homens do bar olham para ele, incrédulos. Os rapazes do fundo entreolham-se, cúmplices.
O brasileiro, como todos os brasileiros, acha que os anos de praia vividos no Brasil emprestaram-lhe sagacidade para se virar em qualquer situação. Percebe o desconforto causado nos camaradas, e para corrigir, pensa em declarar seu amor a Cuba, como num discurso curto de Fidel. Tem a opção de uns versos de Gilhén [sic] em louvor à Revolução e à capacidade laboral do homem cubano. Desiste. Oferece uma rodada de pinga para todos. Eram apenas uns dez homens no bar e ele, afinal, poderia gastar um dólar ou outro com aquela gentileza. (p. 105).

A ironia com a palavra “pinga” é pano de fundo para rirmos do desconhecimento do “malandro” brasileiro que desconhece o significado do termo na Ilha – “Os rapazes seguem o brasileiro pelo Malecon [sic]. Antes que um deles pouse a mão em seu ombro, o outro fala com voz rouca: “Temos pinga, camarada! Oferecemos preço promocional a estrangeiros!”” (p. 106) – mas deixa rastros do regime cubano, de alguns de seus intelectuais (consagrados, reconhecidos, legitimados na nação cubana ou não) como Nicolás Guillén, Pedro Juan Gutiérrez e Reinaldo Arenas e, evidentemente, do circuito sexual que existe na orla do Malecón.

A escrita de Cidinha da Silva instaura conflitos em seu leitor, tirando-o definitivamente de qualquer zona de conforto. Não lhe convém o leitor “ingênuo”, aquele que busca no livro uma possibilidade de leitura “romantizada”, que lhe apresente um mundo idealizado repleto de personagens planas. As personagens que aparecem em suas crônicas personificam sujeitos cujas corporeidades são identificadas em nossos contextos sociopolíticos e em todos os grandes centros urbanos do país, nas comunidades, principalmente as periféricas. Não há espaço para descrição de tipos estereotipados. Os negros e as negras aparecem como temas centrais e suas representatividades são inclusivas.

Neste sentido, chama a atenção como a autora navega entre o eu e o outro, entre a primeira e a terceira pessoa. Por meio deste jogo discursivo, Cidinha da Silva vai, paulatinamente, instaurando e reafirmando a Alteridade em seu livro. Por sua vez, ela restaura e reinstaura as identidades múltiplas do negro e da negra brasileiros. Sua escritura é potente, cada texto apresenta uma carga de potencialidade que deixa o leitor meio perplexo e imbuído por sentimentos múltiplos.

Suas personagens se fazem latentes no Outro, em Nós, em Mim, foi assim com alguns de seus textos que reverberaram em minhas reminiscências de memórias, que mexeram com partes de mim que estavam resguardadas, que dizem de minhas identidades e de muitos outros sujeitos negros. São essas tessituras que ecoam em “O livro de receitas da D. Benta” (p. 31-32), “Para não dizer que não falei de flores” (p. 33-34), “125 anos de Abolição gritam mais uma vez que o poder é branco!” (p. 51-52), “Empresa familiar” (p. 71-74), “Piadinha racista na boca de personagem negro na novela” (p. 79-80), “A roda gigante e o motor da casa-grande” (p. 111-112). São memórias pessoais e coletivas reconfiguradas por meio do olhar crítico da autora.

Mais uma vez, ficam os questionamentos: Qual contemporâneo SOBRE-VIVENTES! indaga? Quais práticas de empoderamento as suas textualidades conclamam? Como tentei pontuar nestes traçados, as crônicas de Cidinha da Silva são polissêmicas como podem ser observadas por meio da apreciação dos excertos abaixo selecionados, que recuperam precisamente vários temas que são trabalhados na sua obra literária: afetividade, alienação, engajamento, identidades, militância, paradoxo social, politicidade, representatividade etc.:

“Higienópolis”

O sinal abriu para nós, finalmente. A mãe do cachorro rearranjou as sacolas de shopping no antebraço, de forma a deixar a mão livre para ajudá-la a colocar o animal no colo. Ainda teve tempo de dar um beijinho nele, antes de dizer para a menina: “Vem, filha. Segue a mamãe.” [...]
O guarda aconselhou à mulher que acelerassem o passo, pois está juntando gente e multidão, sabe como é... (p. 29-30)

“A heteronormatividade pira”

O anúncio público do casamento de Daniela Mercury e Malu Verçosa e, mais do que isso, a declaração de amor daquela a esta, incendiou o mundinho heteronormativo e seus puxadinhos travestidos de lucidez e ponderação. O pessoal do puxadinho é o mais perigoso, bem mais do quem diz “até gostava dessa Fernanda, mas depois dessa...” (referindo-se ao beijo em Camila Amado).” (p. 36)

“É só alegria”

“Só vai ter um porém...” Qual? “eu perguntei curiosa.” Esse cabelinho! Assim não vai. “O que tem o meu cabelo?”, perguntei como se não soubesse. “Ah... querida, tu sabe, doméstica não usa esse negócio enroscado, patroa nenhuma aceita. Não é nada pessoal, não leve a mal, mas não orna na escola de samba. Tu vai ter que morrer uma grana na chapinha. Mas não se preocupe, não há mal que sempre dure. É seu dia de sorte e tu encontrou o cara certo.”
Ele abaixa um pouco os óculos escuros, antes de frear o carro no meu destino, olha por cima das lentes, parece escolher o tipo de artefato que enfrentará meus dreads, pisca e completa: “Fica tranquila, minha esposa tem um salão especializado em chapinha, ela resolve.” (p. 42).

Com seu novo livro, Cidinha da Silva dá prosseguimento a sua sólida carreira literária, demostrando a que veio. Classificar a sua obra não é tarefa fácil e por isso prefiro apropriar-me de suas próprias palavras, proferidas no lançamento de seu livro, na Mostra Benjamin de Oliveira, no dia 7 de junho de 2016, que melhor definem o seu livro e acredito que também podem ser atribuídas a sua produção literária: “Em SOBRE-VIVENTES! eu faço uma observação quilombola do mundo”.

Fica o convite ao leitor para imergir em seu universo de viventes, de sobreviventes...

SOBRE-VIVENTES!

Referências

AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

LITERAFRO. Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Disponível em: <www.letras.ufmg.br/literafro>.

SILVA, Cidinha da. Sobre-viventes. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

* Marcos Antônio Alexandre é Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor da Faculdade de Letras desta Instituição. Pesquisador do CNPq e organizador, entre outros, de Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

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