Deixe que eu sinta teu corpo: contos

 

Miguel Sanches Neto

 

Os contos de Deixe que eu sinta teu corpo se organizam em torno de relacionamentos homoafetivos, sem se restringir a eles, com foco em trajetórias de pessoas negras. O primeiro destaque que faço do livro como um todo é do tratamento literário que o autor dá a sofrimentos e alegrias dos personagens. Não cresce nenhuma militância identitária, pois o seu foco é na condição humana e não em teses. Os contos, assim, transcendem o vocabulário que domina as intervenções sociológicas que se apresentam como literatura. Seus personagens são seres tocados por dúvidas, por sofrimentos, por tormentas.

Em “Feliz aniversário”, a discriminação racial sofrida pela mãe solitária no dia de festejar seu nascimento tem um tratamento contido, em que não há raiva contra os vizinhos, mas um desencanto com eles. Esperamos uma explosão de desespero, mas ela mantém a força de uma contenção que cria no leitor o sentimento de revolta. Ou seja, Amaro desloca a revolta para o receptor da narrativa. Exige que ele sinta o peso do preconceito. Há nisso uma grande estratégia ficcional.

Já o desespero cresce na personagem do casal homoafetivo de “Água turva”, quando Nádia se descobre motivo de piada por ser negra e pobre até nos relacionamentos da amada, o que se materializa no tratamento que recebe do garçom durante um jantar de comemoração da casa própria que representaria a definitiva ascensão social. Não há como se realizar em um mundo que nega o outro a todo momento. Aqui também nos envergonhamos por aquilo que acontece com ela.

No caso inverso, Caio, de “Cupim”, leva ao extremo da justiça pela pena de Talião a discriminação sofrida por ser negro, quando estava junto com a amada que ele queria impressionar. Este conto traz um raro momento de brutalismo em contos que, no máximo, manifestam-se uma ou outra revolta verbal. Neste conto, há um diálogo com Rubem Fonseca, com a sua leitura impiedosa da condição humana.

No geral, os personagens não detêm esta determinação vingadora, são seres frágeis, lutando com os sentimentos, seja de amor não correspondido (a maioria deles), seja de não reconhecimento em sua família ou grupo, seja de isolamento como resposta para a crueza do mundo.

Entram alguns componentes profissionais que apontam para o autor. O ambiente salvífico da biblioteca, a condição de editor (em dois contos), o retorno ancestral a Machado de Assis, reinstalado no morro em que nasceu e viveu a infância, agora em uma era de grandes tragédias sociais, a construção de uma imagem sem estereótipos dos moradores da favela, a crença na literatura, a revelação de espaços interioranos.

Esta crença faz com que seus personagens não sejam forçadamente marginalizados enquanto portadores de uma linguagem violenta galvanizada. A literatura suaviza as percepções, humaniza estes seres que vivem os dramas de todos os sensíveis em uma sociedade brutalizada. Amaro deixa no final dos contos uma abertura que inquieta o leitor, pois não reafirma ideias sobre o que se passou, antes até a turva um pouco, com algum mistério. Esta nebulosidade reforça o literário. Com isso, delimita uma área narrativa que destoa da produção mais naturalista da literatura de expressão negra/homoafetiva/carioca, corrige excessos, cria espaços de realismo interior, em que os personagens não são heróis inquestionáveis por pertencerem a uma ou mais minorias. A todo momento eles se revelam humanos, demasiadamente humanos, nas suas dores, alegrias, dramas sentimentais e relacionamentos interpessoais.

Se o desejo é o centro dos contos, a capacidade de matizar personalidades oscilantes, sem verdades incontestes, é sua principal função dentro da importante produção identitária contemporânea, que faz da literatura não uma arma, mas uma lupa para se aproximar do coração cheio de tarântulas de cada um e de cada uma.

 

Ponta Grossa, fevereiro de 2025

Referência

AMARO, Vagner. Deixe que eu sinta seu corpo. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2024.

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* Miguel Sanches Neto é Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor-associado de literatura brasileira na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Escritor, ensaísta e crítico literário, Neto percorre a literatura com as publicações de A segunda pátria, A Bíblia do Che, O último endereço de Eça de Queiroz, entre outros.

 

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