As Condições nervosas
ou a resistência contra o colonizador
Natalino da Silva de Oliveira*
Tsitsi (leia-se Sisi) Dangarembga é uma autora ainda recente no Brasil. Sua literatura só chega traduzida no país após trinta e um longos anos. Infelizmente, não há nada de “incomum” nisso; pois, observa-se que isso ocorre com muitos escritores africanos, inclusive com aqueles que escrevem em língua portuguesa.
A autora é romancista, dramaturga e cineasta nascida no Zimbabwe. Nervous conditions (As condições nervosas, 2019) é seu primeiro romance e também é o primeiro a ser lançado em língua inglesa por uma mulher negra do Zimbabwe. O livro mais recente da autora foi publicado em uma tradução para a língua portuguesa no Brasil é o intitulado: Preta e mulher (2023), que é uma obra ensaística. Deste modo, é possível agregar ao seu currículo a verve ensaísta também.
Na introdução de Preta e mulher (2023), Dangarembga apresenta parte de sua história e da seu país. Nascida em Nyadine, na Rodésia do Sul – antiga colônia britânica que está localizada ao Norte do Rio Limpopo e da União Sul-africana, a autora vivenciou, portanto, a luta contra a colonização. Inclusive, ela relata que em 1923, a Rodésia do Sul adquiriu o poder para possuir um governo próprio.
A presença do ouro no local é o que impulsionou as ações dos ingleses que tomaram a ex-colônia de Portugal em 1895. O nome colonial, Rodésia, é fruto de reconhecimento das ações sanguinárias de Cecil Rhodes, que após três anos de guerra, toma o espaço e garante a colônia por cerca de cem anos.
O mapa do país era segregacionista e delimitado pela cor da pele. Além disso, o deslocamento do corpo negro também era controlado; existia um sistema de “passes” (passaportes de deslocamento dentro do país) que fora introduzido desde 1890 (de forma menos explícita), em 1930 (de forma mais declarada e oficial) (Dangaremgba, 2022).
As condições nervosas (2019) é um romance de formação em que conhecemos a história de Tambudzai (ou Tambu). A narrativa é contada em primeira pessoa tendo como personagem e protagonista a própria Tambu, uma jovem shona. O livro apresenta seu processo de formação intelectual, cultural e pessoal em um ambiente marcado pela perspectiva colonial, patriarcal e racista.
O contexto é o de 1960 – em que o Zimbábue era chamado de Rodésia ou Rodésia do Sul. Oficialmente, o país só se torna independente em 1980, quando passa a ser chamar Zimbabwe - Dzimbabwe ou madzimbabwe significa fragmentos de pedra ou casa de pedra em língua Shona (Castelo, 2014). A narrativa apresenta as mazelas que surgem pela colonização, pelo patriarcado, pela violência e pelo racismo.
No romance, o patriarcado acaba por delimitar o espaço ocupado pela mulher na sociedade. É também justificativa para o comportamento violento do homem, das estratégias de submissão impostas às mulheres e do comportamento poligâmico masculino. Isso tudo acaba se agravado com a dificuldade financeira, com o desemprego e com a pobreza.
– Isso de ser mulher é uma carga pesada – ela disse. – E como não seria? Não somos nós que parimos os filhos? Quando é assim você não pode sair decidindo hoje eu quero isso, amanhã quero fazer aquilo, no dia seguinte quero estudar! Quando há sacrifícios a serem feitos, é você que deve fazê-los. E essas coisas não são fáceis; você tem que começar a aprender cedo, desde bem novinha. Quanto mais cedo melhor, para ser mais fácil depois. Fácil! Como se algum dia fosse fácil. E hoje em dia é pior, com a pobreza de ser negra de um lado e o peso de ser mulher do outro. Aiwa! O que vai ajudar, minha filha, é aprender a carregar esses fardos com resiliência (p. 32).
Como fica evidenciado, há uma cruel interação de fatores sociais que advêm do fato de a personagem ser negra, mulher e “pobre”, delineando, portanto, o que se denomina de interseccionalidade, conceito que permite compreender a relação entre os sistemas de opressão vigentes na sociedade.
A condição de submissão acaba por se materializar de forma mais pungente de acordo com a soma de elementos subalternizantes de gênero, de classe social e de pertencimento racial. O corpo feminino é tolhido de sua liberdade, algo que ocorre também com seu conhecimento cultural, sua condição psicológica e possibilidade de formação escolar e/ou acadêmica.
A diferenciação entre os espaços ocupados por homens e por mulheres alcança um viés mais pungente conforme se avança na leitura do livro. Aos homens, são destinadas ocupações de conforto até mesmo dentro da própria casa. A cozinha é determinada ao domínio feminino. Contudo, pode ser um choque para o leitor deparar-se com fatos ainda mais controversos, como o que se encontra no seguinte fragmento textual:
Meus pais dormiam em um dos quartos, o que ficava à esquerda ao entrar na sala. A cama e o colchão pertenciam ao meu pai. Minha mãe devia dormir no tapete de bambu que ficava no chão, junto com as crianças, antes de elas terem idade para se juntar a mim na cozinha, mas ela quase nunca fazia isso (Dangaremgba, 2019, p. 79).
O romance também evidencia de forma bem determinante o que seria esperado de uma mulher considerada padrão para a sociedade colonial. Todas as características do modelo de “decoro feminino” passam pelo comportamento de passividade. A mulher que rompe com as amarras coloniais do machismo acaba sendo marcada e violentada pela força patriarcal:
(...) eu era um modelo de decoro feminino, principalmente porque quase nunca falava a menos que alguém falasse antes, e apenas para responder com o maior respeito a qualquer pergunta que tivesse sido feita. Acima de tudo, não questionava as coisas. Não me importava porque as coisas tinham que ser feitas de um jeito e não de outro. Eu simplesmente aceitava que era assim. Eu não achava que ler fosse mais importante do que lavar a louça e entendia que as calcinhas não deveriam ser penduradas para secar no banheiro, onde todos podiam ver. Não entrava em discussões sobre as condições de trabalho de Anna com Maiguru. Não me importava que as pessoas que lutavam por liberdade fossem chamadas de terroristas, não exigia provas da existência de Deus, nem achava que os missionários, juntamente com todos os outros brancos da Rodésia, deveriam ter ficado em casa (p. 177).
Ademais da questão de gênero, o romance também faz uma denúncia da situação racista vivida no país. Contudo, o que se evidencia mesmo é que todas essas mazelas estão associadas ao viés colonial – são todas ferramentas da estratégia colonial de dominação. Ainda assim, na narrativa são apresentadas formas de resistência contra-colonial, como a que se apresenta neste fragmento:
Eu me sentia culpada e anormal por não conseguir amar os Brancos como deveria. Então era bom ver os missionários jovens e saudáveis e descobrir que alguns Brancos eram tão bonitos quanto nós. Depois disso, não demorou muito para eu aprender que eles eram, na verdade, mais bonitos, e então consegui amá-los (p. 124).
Nervous Conditions (As condições nervosas) é uma narrativa que apresenta uma situação de tensão constante, que se apresenta não apenas no título, faz-se presente na obra ficcional e na realidade vivida na antiga Rodésia. As páginas do livro estão carregadas de reflexões subversivas e de desmascaramento ds formas subalternizantes de controle. O leitor deverá acompanhar o que lê preparado para ser afetado pelas linhas duras da narrativa de Tsitsi.
Muriaé-MG, janeiro de 2025.
Referências
CASTELO, Inês Fontes. Traços da presença portuguesa no Vale do Zambeze entre os sécs. XVI-XIX à luz das pesquisas realizadas pela Brigada de Estudos de Pré-História e Arqueologia (JIU) entre 1971 e 1972. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2014.
DANGAREMBGA, T. Condições nervosas. Trad. Carolina Kuhn Facchin. São Paulo: Kapulana, 2019
DANGAREMBGA, Tsitsi. Preta e mulher. São Paulo, SP: Kapulana, 2023.
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*Natalino Silva de Oliveira é um negro periférico oriundo das quebradas de Belo Horizonte, Minas Gerais. É poeta e capoeirista. Além disso, possui licenciatura em Letras Português e Espanhol pela UFMG, Mestrado em Teoria da Literatura e Doutorado em Literatura Comparada pela mesma instituição. Terminou outro Doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. É membro e pesquisador do GEED – Grupo de Estudos em Estéticas Diaspóricas, vinculado ao projeto “Desdobramentos e proliferações da memória nas culturas/literaturas africanas de língua portuguesa”. O autor é professor e iniciou sua carreira em Escolas Estaduais em Belo Horizonte. Atualmente, é professor do IF Sudeste MG e atua ativamente no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas – NEABI/Campus Muriaé – do qual é fundador e atual presidente. É também membro da Academia Muriaeense de Letras – AMLE – e seu atual Presidente, ocupando a cadeira de número 30, cujo patrono é Machado de Assis. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.