Cartas a um homem negro que amei:

quebrar silêncios para combater a violência

 

Érica Luciana de Souza Silva*

 

 

Meninas e mulheres negras

dificilmente

são incluídas nos espaços,

precisamos chegar arrombando portas,

mas infelizmente

a sociedade presta bem mais atenção

na porta arrombada

do que em nós.

 

Que os raios do inferno caiam

sobre todos que guardam

para legitimar abusos

e neutralizar as vítimas

e ainda nos pedem cumplicidade!

Não me contem mais

os segredos do patriarcado,

do capitalismo

e da supremacia branca

pedindo-me para guarda-los,

porque não estou disposta

a manter a boca fechada.

 

Fabiane Albuquerque

 

 

 

 

 

 

Trazer à tona dores e violências sofridas e estagnadas entre gerações de homens e, especialmente, de mulheres negras brasileiras: esse objetivo representa o livro Cartas a um homem negro que amei, de Fabiane Albuquerque (Malê, 2022). Albuquerque é doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de outros dois livros: A távola com il re (2021) e Il Baule de mia nona (2022). Sua trajetória de mulher negra, pobre, vinda do sertão mineiro para morar na periferia de Belo Horizonte torna-se o elemento inicial do romance. O livro possui uma composição distinta. No lugar de capítulos estão as cartas escritas pela narradora protagonista, que se encontra na cidade de Lyon, na França, a seu interlocutor, um homem negro, antigo amor da adolescência. O nome dele não é revelado e isto não interfere nos fatos contados. Nessas cartas, a autora fala sobre sua trajetória de mulher negra brasileira desde sua infância até a idade adulta.

É interessante o desenvolvimento desta relação entre o eu e o tu, a narradora e seu interlocutor, um suposto ouvinte que em algumas vezes envia respostas. O ponto de partida é a adolescência da autora, quando é desencadeado o sentimento de admiração. Afinal, aquele jovem negro e pobre a sua frente estuda Filosofia. Ele superou os obstáculos de raça e classe, tornou-se um intelectual, fato raro a ser observado entre os moradores de uma favela: “Foi naquele momento que me apaixonei, não por você, mas pela minha projeção na Filosofia, pela minha sede de conhecimento e pela imagem que fiz de você naquele exato momento” (p. 20).

No desenrolar do romance, é perceptível o amadurecimento da narradora. Sua admiração inicial pelo rapaz negro, pobre e inteligente, que frequenta a escola e possui apoio familiar vai cedendo, paulatinamente, lugar à conscientização que lhe permite compreender o posicionamento de seu interlocutor que, embora intelectual, não consegue se desvincular do ser homem na sociedade brasileira profundamente patriarcal e racista. Afinal, isso são aprendizados dados desde sempre: “Dificilmente homens brancos amam mulheres negras; homens negros também não” (p. 76). A mulher negra que aprende com suas vivências a questionar e a não aceitar o lugar imposto a ela diariamente, incomoda seu interlocutor. Tal percepção sobre este homem é gradual no decorrer do romance e, aos poucos, ela vai se modificando.

Ao ler as cartas que compõem o romance, o leitor pode se perder entre as concepções de textos memorialistas, biográficos, ficcionais ou tudo ao mesmo tempo, já que nelas estão registradas as dores, as angústias, as violências e os silenciamentos impostos por séculos de racismo e de patriarcalismo. O que é impossível ignorar é que Fabiane Albuquerque representa em seu texto a árdua trajetória que grande parte das mulheres negras brasileiras necessitam enfrentar diariamente para manterem um dos mais primários direitos do ser humano: a vida.

A obra já atrai a atenção desde o prefácio que é escrito por Diane Valdez, professora de Fabiane Albuquerque no magistério, em uma escola pública de Goiânia. A autora não era uma personalidade conhecida no meio acadêmico ou literário. Pelo prefácio, o leitor compreende o que Albuquerque pretende em seu romance: fazer serem ouvidas as vozes daquelas que nem sempre conseguem expor o que sentem e o que pensam.

Ainda no Prefácio ao livro, a professora Valdez alerta: “A instituição escolar, Sofia, é um dos primeiros espaços onde crianças negras aprendem a se defender fora de casa. Outro lugar que era para ser protetivo, mas que é onde os ecos da discriminação permanecem reproduzindo violências” (p. 10).

E: “[...] tem infâncias e infâncias! Algumas brincam e estudam, outras trabalham e são molestadas” (p. 8); ainda, com propriedade, acrescenta: “as tais adoções ilegais, que se justificam pelo ‘virar gente’ e servem ao trabalho sem direito a qualquer dignidade, mascaram a relação de exploração sob a égide de ser ‘quase da família’” (p. 8). A professora Valdez sabe o que diz, e a autora Fabiane Albuquerque sabe o que quer ao trazer este prefácio para sua obra.

O percurso da narrativa vai se construindo como um quebra-cabeças que é montado a partir das cartas. A narradora faz um mergulho na trajetória da mulher negra brasileira a partir das experiências da negra mulher Fabiane Albuquerque que parte do sertão mineiro, passa pela periferia de Belo Horizonte, por Goiânia, Itália, Jundiaí e fixa-se na França. Esta trajetória permite à narradora desenvolver várias reflexões sobre o quanto os espaços físicos podem ser agentes de silenciamento e exclusão. Ela conclui que o sertão, assim como a periferia da capital mineira, uma cidadezinha bucólica no interior da França ou um condomínio de luxo em Jundiaí, é a representação daquilo que impede as mudanças sociais e o acesso aos bens culturais, além disso, mantém as pessoas afastadas das oportunidades.

Em comum a todos eles estão às mesmas configurações que fomentam a desigualdade social, cultural e econômica. Como já alertado pelo poeta João Cabral de Melo Neto (1998), muda-se o invólucro, mas a chama que arde é a mesma. Em alguns lugares o que se tem é um espaço em que a vida da mulher possui uma estrutura pré-estabelecida e que, aparentemente, não há como escapar da sina de que homens são tratados com afeto e com orgulho e mulheres como servas:

Minha avó, mulher negra, foi dada por seu pai aos nove anos de idade a uma família de fazendeiros no sertão de Minas depois que sua mãe faleceu. [...] Como o afeto e o cuidado posicionam os indivíduos de forma diferente na vida! Partir como gente, como pessoa, com direitos, e partir como serva são dois lugares diferentes e os resultados eu pude ver na vida da minha avó e na do seu irmão. Por isso, desde cedo rejeito a ideia de meritocracia. O lugar de largada nunca é o mesmo, imagine aquele de chegada (p. 28-29).

Por este mosaico social, vemos as críticas que a autora desfere contra as igrejas que, sob o pretexto da onipotência divina, apropriam-se do mérito das conquistas da população pobre e ainda se constituem como instituição que se nega a discutir desigualdades e exclusões sociais (p. 54); contra a polícia que chega às comunidades para descarregar a violência e o ódio que a sociedade esconde, especialmente contra os homens pobres e pretos (p. 50); contra a masculinidade tóxica que é ensinada aos homens desde cedo (p. 68); contra a configuração de Brasil enquanto sociedade de compartimentos bem delimitados, os quais impõem perspectivas de futuro, cuidando para manter cada segmento em seu devido lugar, sem chances de mudança e/ou alteração de status (p. 68); contra a burguesia que quer definir tudo e todos, sem aceitar que ninguém a defina (p. 69); contra a classe média e a elite brasileira que usam o sadismo como marca de quem subiu na vida (p. 73); contra o pacto social das cidades, o qual utiliza o silêncio para manter as formas de opressão e o devido funcionamento das instituições (p. 77); contra as instituições que não protegem nem cuidam dos que estão à margem (p. 98); contra a sociedade patriarcal que se projeta e se encarna na imagem da família (p. 149); contra a paranoia atribuída aos negros quando esses gritam contra os vários crimes racistas (p. 152) e, por fim, contra a universidade como o anti-lugar que nunca foi pensado para os negros, “um mundo extremamente elitizado, branco, machista e eurocêntrico” (p. 161).

Todas essas denúncias são permeadas e entrecortadas pelo silêncio que está presente e mantém todas as estruturas racistas, patriarcais e capitalistas:

[...] colocar-me de volta no lugar do silêncio para manter as coisas como elas são, porque é essa a função do silenciamento. Ouvir de verdade e não agir torna o outro cúmplice, então impedir que se fale é a estratégia para se livrar da obrigação de agir contra qualquer injustiça [...] Além das pessoas insistirem no silenciamento, todas as instituições sobrevivem dele e quando nos deixam falar o repertório já está dado, temos que cumprir com os rituais (p. 151).

Entre suas memórias/relatos, a narradora de Fabiane Albuquerque apresenta argumentos consistentes em defesa de suas ideias. Para isso traz uma série de pensadores, os quais impedem que os mais desavisados tomem suas falas como irreais e as arremessem ao plano de conversa sem sentido e sem respaldo acadêmico. Entre os teóricos citados, estão Audre Lorde, Neusa Santos Souza, Grada Kilomba, Du Bois, Frantz Fanon, bell hooks, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Pasolini, Toni Morrison, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e outros.

Por eles e por ela, reconhecemos as rodas de samba como representação cultural que permite acesso à cultura e que atua como processo de formação identitária. Tomamos consciência de que a mulher negra ocupa o último lugar na pirâmide social, sem nenhum grupo abaixo dela e que elas devem gritar o que não podem falar.

Por fim, o texto de Fabiane Albuquerque aponta a importância do movimento feminista negro no processo de desconstrução da imagem da mulher negra como objeto e a reconstrução de mulheres engajadas que conseguem romper o silêncio aniquilador. A autora sabe que esta mobilização leva à conscientização daquelas que sempre se viram no lugar da subordinação, da violência e do abuso.

Não preciso me calar para sobreviver e quem me restituiu a mim mesma foram mulheres feministas, negras, sobretudo, que antes de mim romperam o silêncio, as algemas e ousaram mostrar como nossas vidas não são somente histórias individuais, mas sociais (p. 258).

Reconhecer sua condição de mulher negra no mundo contribuiu para ressignificar o caminho de todas que possuem sua mesma vivência. A autora narradora das cartas, no decorrer de seu caminho, conseguiu elaborar novas construções para as relações apresentadas e recusou-se a aceitar a imagem pré-elaborada para ela. Sua trajetória abre caminho para tantas outras. Albuquerque se ancora nas palavras de bell hooks:

Políticas genuinamente feministas sempre nos transportam da servidão à liberdade, da falta de amor ao amor. A mutualidade é a base para o amor. E a prática feminista é o único movimento por justiça social em nossa sociedade que cria condições para que a mutualidade seja nutrida (2019, p. 150).

Cartas a um homem negro que amei é um livro que traz questões atuais, as quais necessitam ser conhecidas, reconhecidas e refletidas para que a mulher, especialmente a mulher negra, consiga viver plenamente, em paz, sem medo do que lhe aguarda no futuro, bem como em suas relações familiares, profissionais e amorosas. Uma obra necessária para os dias atuais.

 

Juiz de Fora, maio de 2024.

Referências

ALBUQUERQUE, Fabiane. Cartas a um homem negro que amei. Rio de Janeiro: Malê, 2022.

HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza Libânio. 4ª ed – Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina: e outros poemas para vozes. Porto: Campo das Letras, 1998.

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* Érica Luciana de Souza Silva é Doutora em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Docente no Instituto Federal Fluminense (IFF), em Campos dos Goytacazes-RJ. Revisão textual feita por Fernanda Cândido da Silva Santos Magalhães: mestranda em Cognição e Linguagem na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Secretária executiva na Universidade Federal Fluminense (UFF) – Campos dos Goytacazes.

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