O teatro total em Trilogia de padjigada,
do escritor guineense Abdulai Sila
Wellington Marçal de Carvalho*
“Este país não pode continuar assim,
não pode, não pode!”
Kidama
Abdulai Sila, da Guiné-Bissau, nasceu em 1958 e lutou intensamente para a libertação de seu país do jugo colonial português. Foi um dos fundadores da revista Tcholona, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), da Associação dos Escritores da Guiné-Bissau (AEGUI) e da primeira editora privada guineense, a Ku Si Mon Editora, que já completou mais de três décadas de existência.
Sila atua em muitas frentes sempre em demanda de que a luz da esperança numa Guiné-Bissau melhor para todos se estabeleça. Não é uma tarefa simples e, nesse sentido, seu projeto literário assume, em diferentes gêneros, feições desse embate. Essa literatura interessada em agenciar a esperança apresenta seus traços desde A última tragédia, obra inaugural de Sila, escrita em 1984 e publicada em 1995, inclusive considerado o primeiro romance publicado na literatura guineense. A romanesca de Sila é formada, ainda, por Eterna paixão (1994), Mistida (1997) e Memórias SOMânticas (2016).
Em 2014, publicou o conto “O reencontro”, na coletânea intitulada Ema vem todos os anos, lançada por ocasião dos 20 anos de funcionamento da Ku Si Mon Editora.
Além dessas obras, Sila publicou, ainda, as peças teatrais As orações de Mansata (2007), Dois tiros e uma gargalhada (2013), Kangalutas (2018), Deih (2022) e Trilogia de padjigada (2023).
Trilogia de padjigada é composta pelas peças “Abota”, “Um dia memorável” e “A quinta coluna” e foi lançada em 25 de maio de 2023, em Bissau, como parte da programação da edição daquele ano da Mostra de Arte e Cultura de Guiné-Bissau. A quarta capa a obra informa:
A partir do quotidiano de cidadãos comuns, mulheres e homens, habitantes de localidades no interior do país, tece-se tramas que põem em relevo as suas aspirações, desafios, antagonismos, amores e dissabores. Entre a tradição e a modernidade, a vida acontece ao ritmo da luta pela superação das dificuldades, dos medos, da preservação de direitos adquiridos e da consolidação da emancipação. Ora tradição, ora comédia, procura-se através de diálogos simples e impactantes revelar, em cada uma das três peças, o significado do amor, o valor da sabedoria, o peso da cumplicidade, a relevância e o sentido da liberdade (SILA, quarta capa, 2023).
Na peça que abre o livro, “Abota”, construída em 21 cenas, “o universo dos homens, marcado pelos desafios decorrentes do questionamento dos valores tradicionais que lhes atribuíam autoridade inquestionável e privilégios especiais, é o pano de fundo da trama” (SILA, 2023, quarta capa). Podem ser considerados eixos centrais, a partir do conflito dos universos masculino e feminino: a disputa pelo poder e como chegar até ele; o que deve ser feito para driblar a morte por ingerir carne de animal sem permissão; as possibilidades de ganhar dinheiro via criação de partido político, instalação de organizações não governamentais, ou, ainda, por abota – termo em crioulo guineense para financiamento coletivo. O contraponto é encampado pelo viés feminino, que luta por reposicionamento das mulheres no tecido social encenado.
Um conjunto de personagens principais, formado por homens, envolvidos na trama apresenta Izak – antigo guerrilheiro e governador da Província; Kudjidu – antigo polícia e político; Kemor – ex-dirigente de organização juvenil partidária; Djomel – ex-chefe de comitê de tabanca e comerciante e, por fim, o ex-emigrante Baifás.
A segunda peça da Trilogia, composta por apenas uma cena, intitulada “Um dia memorável” centra o olhar “no mundo das mulheres, na sua luta diária pela conquista de um lugar ao sol, passando pela consolidação das conquistas sociais e políticas obtidas como resultado do processo de democratização do país” (SILA, quarta capa, 2023). Kidama, Alamuta, Nhamó, Nmah e Tina são as protagonistas da peça e problematizam, no transcurso da mesma: a liberdade da mulher via alfabetização / educação; questionam o fanado – ritual de mutilação genital feminina; a violência doméstica; a poligamia; a corrupção na política e nas demais esferas da vida pública; a importância da leitura e da Literatura; a criação de ONG feminina; as dificuldades da inserção feminina na cena política; a industrialização em solo guineense para processamento de castanha de caju e, também, o incômodo advindo da “cumplicidade masculina” (SILA, 2023, p. 151).
Fica patente, na escrita desse texto teatral, a afiliação do autor aos pressupostos teatrais de Bertold Brecht, aliás, elemento assumido por Sila em diversos momentos de sua trajetória em que é abordado, sobre esse aspecto, por críticos, ou, leitores em geral.
Fecha o volume a peça, com 15 cenas, “A quinta coluna”, na qual o mundo masculino e o universo feminino são fundidos fazendo emergir “a estratégia de uns e a resiliência de outras, na procura de um sentido para a vida no âmbito de um conflito latente e abrangente entre a tradição e a contemporaneidade” (SILA, 2023, quarta capa).
O comandante de polícia Nduba, o alfaiate e ex-locutor de rádio Mambuyandin, a esposa de Nduba e empresária Minka e Behla, a enfermeira são personagens que protagonizam a peça. É apresentado o ardiloso estratagema, tão frequente nos espaços políticos e militares, conhecido como Quinta coluna. Esse expediente se faz pleno de intrigas e sabotagens, sendo dado a conhecer no desenrolar da trama cujos eixos centrais orbitam o mundo e interesses dos homens e os anseios e ações das mulheres para se libertarem do lugar subalterno que a elas é reservado no tecido social do país; os complôs para chegada e permanência nos lugares em que o poder é exercido; as implicações da presença dos brancos na governança da nação; as intercorrências para instalação e funcionamento de ONG para produção de vestuário por mulheres.
Resta considerar o alinhamento assumido por Abdulai Sila quanto à sua produção teatral. Seus textos são erigidos à luz da concepção do “teatro total” e essa informação é importante para esmiuçar a complexa teia imbricada em cada uma das peças da Trilogia de padjigada. A escola alemã Bauhaus “pretendia desenvolver artes aplicadas que pudessem refletir o espírito da época [pós-guerra] e atender à demanda da população por uma melhor qualidade de vida” (RODRIGUES, 2009) e, mais especificamente, o “teatro total” pode ser assim definido:
Walter Gropius, então diretor artístico da Bauhaus em Dessau, projetou para Erwin Piscator, o “Teatro Total”, edifício idealizado como o espaço próprio para os novos espetáculos de agitação e propaganda em desenvolvimento. O projeto de Gropius consistia em um edifício teatral polivalente que permitiria uma série de mobilidades e multifunções espaciais, podendo ser utilizado como arena, anfiteatro ou palco lateral. Apresentava dispositivos cênicos como palco giratório, passarelas laterais e todo tipo de conformação cênica necessária para um espetáculo didático para as massas. (SILVEIRA, 2010).
Pelo que faz todo sentido ler as peças dessa Trilogia na perspectiva apontada por Fonseca (2024), como fruto do projeto de Sila de “criar formas de apresentação cênica” para efetivação de “espetáculo didático para as massas”, conforme assinalado por Silveira.
Belo Horizonte, maio de 2024.
Referências
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Sobre o “teatro total”. [Correspondência eletrônica]. 04 abr. 2024.
RODRIGUES, Cristiano Cezarino. Cogitar a arquitetura teatral. Arquitexto. v. 9, jan. 2009. Disponível em: https://vitruvius.com.br/index.php/revistas/read/arquitextos/09.104/85. Acesso em: 30 abr.
SILA, Abdulai. Trilogia de padjigada. Bissau: Ku Si Mon, 2023. 317 p.
SILVEIRA, Carlos Eduardo Ribeiro. A arquitetura do simbólico: do ‘Teatro Total’ às tecnologias digitais. In.: CONGRESSO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS. [Anais...]. 2010. p. 1-8. Disponível em: https://portalabrace.org/vicongresso/processos/Carlos%20Eduardo%20Ribeiro%20Silveira%20-%20A%20arquitetura%20do%20simb%C3%B3lico%20do%20%E2%80%98Teatro%20Total%E2%80%99%20%C3%A0s%20tecnologias%20digitais.pdf. Acesso em: 30 04 2024.
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* Wellington Marçal de Carvalho é Doutor em Letras / Literaturas de Língua Portuguesa (PUC Minas) com Pós-doutorado em Estudos Literários (FALE/UFMG). Bibliotecário. Coordenador da Biblioteca da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (EE/UFMG). Integra os grupos de pesquisa GEED/CNPq e NERSI/ECI/UFMG. Integra a Comissão editorial do literÁfricas (http://www.letras.ufmg.br/literafro/literafricas). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.