Experiência e linguagem: nota sobre Reflexos, de Ariele Santos

 

Giovanna Soalheiro

 

Reflexos é dividido em três partes: a primeira ‘A dor que atravessa’ é sobre tudo aquilo que dói demais e enquanto não se encara essa dor ela segue maltratando, que nenhuma dor perdure; a segunda ‘Ubuntu’ é sobre família, amizade, amor e esses laços invisíveis que nos unem e sem uns aos outros é difícil saber ao certo o que seríamos; a terceira ‘A energia da vida viva’ é o axé, é o poder que existe em cada coisa, na dor de amor, na libertação e na contemplação da vida. Reflexos é sobre se ver e pensar, refletir em todos os sentidos da palavra (p. 9).

Ariele Santos

 

 

Um olhar se movimenta em direção ao acontecido, às experiências, tendo em vista paisagens, reflexos produzidos no olho de quem lê a vida e a recria na linguagem: cicatrizes, cenas, falas, dores, gestos vividos e outros inventados. E quando quem produz é uma autora, um autor negro? Nesse caso, acessamos arquivos, ou um corpo-arquivo, que carrega memórias individuais e coletivas, permitindo-nos pensar em atos cotidianos marcados por relações de respeito, de afeto, mas também de violência e de racismo.

 

Reflexos (Penalux, 2023), primeiro livro da jovem escritora mineira Ariele Santos, parte dessas premissas, abordando o habitual por meio de uma linguagem reflexiva e sugestiva, como se pode ver no título ao livro. Não há aqui uma voz revoltosa, embora tal sentimento se produza em quem pensa a partir do objeto lido. Os reflexos acionados no modo de narrar da autora produzem-se, portanto, como retorno: são reações, conscientes ou não, a um estímulo, a uma determinada ação. De modo geral, os textos narram a maternagem, o aborto, a relação entre pais e filhos, a vida de meninas e meninos que se deparam com contextos de submissão, opressão e violência. O que se lê é ficção, mas aqui cabe lembrar a concepção de Eduardo de Assis Duarte (2005) em torno da autoria e da literatura negra: quem produz essas histórias é Ariele Santos – mulher negra bastante consciente da sua história, do seu percurso e de sua ancestralidade.

 

Reflexos é composto de 11 contos, divididos em três partes: “A dor que atravessa”, “Ubuntu, ser porque nós somos”, “A energia da viva vida”. Em muitos deles, notam-se procedimentos analógicos, metáforas e alegorias, tendo em vista ainda o pensamento filosófico africano Ubuntu: um vir a ser que se modula na relação com o outro, com a comunidade, com a ancestralidade que move o passado no presente. Nesse sentido, deve-se perceber a violência circunscrita às narrativas – não a todas elas – como reflexos de um passado de opressão colonialista, como é possível vislumbrar em “Reflexos” e em “Ícaro”, que integram a primeira parte.

 

No primeiro conto, realidade e sonho se confundem, tendo, como consequência “real”, o assassinato de uma pessoa à janela do quarto onde a personagem central dormia. Aparentemente, nada se diz sobre a omissão do Estado, mas há a insistência, por parte da protagonista, em ligar para a polícia, sem que houvesse o atendimento e mesmo a prevenção ao crime ocorrido. Para um bom leitor, que entende as formas sociais de opressão e de racismo, não é preciso dizer muito: “Horas depois, quase quando já pegava de novo no sono, ouviu tiros disparados bem perto de si. Abriu os olhos e olhou pela janela como se fosse um reflexo, um corpo negro no chão da rua, às cinco da manhã. A polícia não veio” (p. 14).

 

Já em “Ícaro”, por outro lado, a questão se coloca de modo ainda mais sutil, num processo comparativo com a mitologia grega. Neste mito, Ícaro, filho de Dédalo, fugiu do labirinto de Creta onde se encontrava preso, fugiu e voou com asas, (coladas com cera) construídas por seu pai. Por não obedecer às regras impostas para o voo (não se aproximar muito do sol), o personagem morre ao cair no oceano. Aqui, a lógica é outra: Ícaro, mitológico, não soube acatar os princípios que conhecia previamente, numa ação que subverte a inteligência, a razão humana. Já no conto de Ariele Santos, Ícaro, um garoto pretinho – voador, inteligente, alegre, leitor, obediente, amado pela mãe – tem o seu destino traçado pelo humano, pela omissão do Estado. Para ele, não havia regras, não havia aviso. Havia, no entanto, um sistema que governa e oprime crianças negras nas comunidades, retirando-as do convívio e do amor materno, familiar:

 

E um dia Ícaro, correndo pelo morro num sábado, sem escola, indo encontrar sua mãe no ponto de ônibus, de fato voou. Rasgaram-se todas as roupas do menino. Neste dia, em que estava com roupa bonita de sair: camisa branca, bermuda amarela, sapatinho que era uma mistura de tênis e sapatilha, o cabelo bem cortado. Ícaro conhecia bem certas histórias, de lugares bem perto dali, no porto, onde há muitos anos homens e mulheres como ele eram depositados como entulho, achava que era história antiga, mas que nada. (...) O menino de repente já não fitava mais o céu. Ícaro, o corpo pretinho e magrinho, desaparecera. (...) Do alto do morro do céu – não sabia ao certo, só sabia que via o alto – Ícaro voava. Perto do sol, e ao mesmo tempo, do próprio chão, ele adquiriu sua asas. O menino doce, o doce menino, visitaria a mãe nos sonhos dela” (p. 17).

 

Ariele Santos constrói habilidosamente um enredo tramado não pelo destino, pelo acaso (se é que isso realmente existe), mas pela incivilidade, pela violência praticada por forças policiais – agentes da segurança pública –, ou por um poder paralelo que se instala nos locais onde não há recursos e garantias. Dois Ícaros, dois pesos distintos. Para o morador das comunidades, negro ou pardo, não há escolha: qualquer porta supostamente aberta pode ser um caminho sem retorno. Se no mito a função é outra – moldar posturas e condutas –, em Ícaro, o menino pretinho, a sociedade escolhe quem deseja exterminar. O que mais impressiona na textualidade de Santos é o modo como as cenas se configuram: a violência sistêmica está ali, mas tudo é sugerido pelas metáforas: “E um dia Ícaro, correndo pelo morro num sábado, sem escola, indo encontrar sua mãe no ponto de ônibus, de fato voou” (p. 17). Sobre a dor da mãe que perde o seu filho, pouco é escrito, tudo é sugerido: “O menino doce, o doce menino, visitaria a mãe nos sonhos dela” (p. 17).

 

É bonito e denso o modo como Ariele Santos produz as narrativas, apesar da dor, do sofrimento, da violência. Nesses escritos, imagens, figuras, personagens se encontram no processo de vir a ser, propondo-nos a tarefa de refletir sobre o passado, o presente e o futuro. O tempo dessas narrativas é espiralar, é ancestral, guiado também pela dimensão do axé.

 

Belo Horizonte, novembro de 2023.

 

Referências

 

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política, identidades. Belo Horizonte: FALE- UFMG, 2005.

 

SANTOS, Ariele. Reflexos. Guaratinguetá: Penalux, 2023.

 

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* Giovanna Soalheiro Pinheiro é Mestre em Estudos Literários (UFMG) e Doutora em Estudos Literários (UFMG). Atua como pesquisadora do Portal literafro da Faculdade de Letras da UFMG. É coautora do livro Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI. Realiza, desde 2018, pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG, com enfoque na tradução e na criação de poesia. Publicou recentemente o livro de poemas Olho de boi (Reformatório, 2023).

 

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