Uma força descomunal: a escrita de resistência em Mata Doce

 

Loiany Camile Gomes*

 

Mata Doce é o primeiro romance de Luciany Aparecida. Lançada em 2023, pela editora Alfaguara, a obra percorre a trajetória de Maria Teresa, ou Filinha Mata-Boi, com suas mães adotivas, a professora Mariinha e a travesti Tuninha, em um casarão no vilarejo de Mata Doce, no sertão baiano. A narrativa, perpassada por conflitos de terra, mortes e tragédias, faz prevalecer a resistência das mulheres negras como via de “enfrentamento e valentia” (p. 108).

Luciany Aparecida também escreve contos, poesia, dramaturgia e novela. Com a assinatura estética de Ruth Ducaso, ela publicou o livro de artista Cartas de Bogotá (2013),** Contos ordinários de melancolia (2017), Auto-retrato (2018) – no qual também se vale da assinatura estética do ilustrador Antônio Peixôtro – e a novela Florim (2020). Com seu nome,  Luciany publicou a plaquete Macala (2022) – um poema em 11 partes escrito a partir de uma fotografia de Marc Ferrez (“Mulher negra da Bahia”) –, além do texto dramático Joanna Mina (2021) e Mata Doce.

O fundamento da assinatura estética, embora não tenha sido usado para a composição de Mata Doce, colabora para o entendimento dos caminhos trilhados por Luciany nesse romance. Segundo a própria autora, a assinatura estética não  se trata de um pseudônimo, pois “geralmente o pseudônimo é usado para ocultar autoria e não inventei Ruth Ducaso para ocultar meu nome, mas para que ela exista” (APARECIDA, 2021); também não é um heterônimo, já que os autores, por meio dos quais ela propõe uma assinatura estética, “não existe[m] como uma pessoa. Mas como um projeto estético-político com o qual trabalho com narrativas contemporâneas a partir de um determinado modo” (APARECIDA, 2021). A autora (2021) complementa:

O estilo de Ruth Ducaso é tocar em dores coloniais. E costumeiramente é lido como duro, vulgar, impróprio, violento. Adjetivos que cabem tão bem para descrever o que foi o processo de colonização e mesmo essa saturada herança estrutural que nos comove e mata e violenta ainda hoje.

É com essa perspectiva de tocar dores coloniais que Mata Doce se organiza. Por meio de referências à religiosidade, à textura do cabelo e à cor da pele, fica explícito que todas as personagens são negras, exceto o coronel Gerônimo Amâncio – a personificação da herança estrutural que mata e violenta. Devido a uma disputa de terras, que se arrasta há anos, Amâncio assassina Zezito, único filho homem de Luzia, a juíza dos Sales. Por ironia, Zezito também é filho biológico de Amâncio, que, num episódio de intimidação contra Luzia e seu esposo, João Sena, violenta a juíza dos Sales.

O assassinato de Zezito, noivo de Maria Teresa, transformará a existência da moça, ou antes confirmará aquilo que é esperado para sua vida: o destino de viver sozinha, uma vez que é filha de Yemanjá Sabá, e as “filhas de Yemanjá Sabá carregavam a sorte da reserva e da solidão” (p. 35). A personagem seria a única entre as mulheres de seu convívio a casar formalmente e a usar um vestido de noiva na cerimônia. Porém, a obra repensa a idealização do amor romântico, ressaltando, por exemplo, formas de relacionamento por vezes condenadas pela sociedade, como a relação entre Mariinha e a travesti Tuninha.

Após a morte do noivo em um sábado (um dia antes do casamento), Maria Teresa pede às mães e aos conhecidos que passem a chamá-la de Filinha Mata-Boi, pois a jovem torna-se matadora de bois no curral do coronel. Com essa decisão, ela pretende que Gerônimo sempre se lembre da existência daquele que ele assassinou e dos que ficaram com sua ausência.  

Numa lógica espiralar do tempo, para pegar de empréstimo a terminologia de Leda Maria Martins (2021), Filinha mata bois somente aos sábados. E também foi aos sábados que Maria Teresa estudou datilografia em Santa Stella e se formou como datilógrafa ainda jovem; também é aos sábados que ela começa a frequentar a biblioteca do colégio Sacramentina e Silva para ler o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, a pedido de Manuel Querino, avô de Zezito (uma referência ao intelectual, abolicionista, pintor e escritor baiano Manuel Querino) – o senhor, já falecido, aparece na mente de Maria Teresa –; e é em um sábado que o pai de Zezito é levado por policiais, deixando o garoto e a irmã Carminha, ainda crianças, sozinhos na cidade grande.

O tempo da narrativa funde passado, presente e futuro, porque tudo é uma coisa só. Os personagens vivenciam os acontecimentos acima do tempo, pois, como ensina Mãe Maximiliana, diante da urgência de Venâncio para que ela acudisse a jovem Maria Teresa, “[o] tempo não é assim não” (p. 192). Nessa perspectiva, o leitor não encontrará linearidade nos fatos, mas um vai e vem que o tirará de um lugar de conforto narrativo e o lançará no espaço da reconstrução e da relação entre o tempo colonial e os reflexos dele na atualidade. Segundo Leda Maria Martins (2021, p. 144):

o tempo pode ser ontologicamente experimentado como movimentos de reversibilidade, dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e desconstrução, simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro [...].

Os fatos, a princípio sem relação uns com os outros, se interligam, associando-se por meio de símbolos, como o roseiral branco, referenciado na capa da obra, o vestido de noiva, a cobra branca, o sangue vermelho em uma superfície branca, a careta do boi, o espelho, a fotografia e a arara-azul; por meio das recordações das personagens e seus sonhos, como os sonhos de despedida de Maria Teresa, que antecedem a morte das duas mães; e por meio da existência da cachorra Chula, que atravessa os tempos.

O espaço narrativo, composto pelas terras de Mata Doce, pelas pedras do lajedo, pelo casarão das senhoras Mariinha e Tuninha etc., acolhe as mulheres necessitadas de socorro, como Lai, a ex-prostituta, e Josefa Fontes, a mãe dos gêmeos Thadeu e Angélica, agredida pelo marido.

Um lajedo é um lugar de pedra. Sobre a natureza dura de Mata Doce as mulheres daquelas terras sustentavam suas histórias. [...] Com o tempo e a história, Mata Doce foi sendo um lugar de acolhimento e amparo para mulheres desvalidas. (p. 26).

Eustáquia da Vazante, avó de Mariinha, e outros negros, como Agostiniana dos Santos, fundadora da Casa de Oió, e os Sales, constituíram a comunidade de Mata Doce para vivenciarem uma vida em liberdade. Porém, esse espaço se torna alvo de disputa quando o coronel Gerônimo Amâncio chega a Mata Doce reivindicando a posse das terras de João Sena. Após o ato de violência sexual contra Luzia na frente de Sena e estes deixarem Mata Doce para viverem em Santa Stella, Amâncio ocupa definitivamente as terras de João com a criação de gado, impedido a população de acessar o rio Airá.

Fica evidente a diferença de valor atribuída à terra pelos moradores do local e por Gerônimo. Para os primeiros, Mata Doce representa o sustento, a liberdade e a possibilidade de se viver em comunidade, sendo uns o amparo dos outros, constituindo-se, assim, uma vivência quilombola; para Amâncio, é lugar de exploração.

Nessa perspectiva do aquilombamento, considerando a visão de Beatriz Nascimento (2006 apud SOUTO, 2020)*** de que cada cabeça é um quilombo, Stéfane Souto (2020, p. 141) define o aquilombar como:

o movimento de buscar o quilombo, formar o quilombo, tornar-se quilombo. Ou seja, aquilombar-se é o ato de assumir uma posição de resistência contra-hegemônica a partir de um corpo político.

Nesse sentido, o quilombo formado por Eustáquia da Vazante alicerça-se na Casa de Oió, onde há orientação espiritual, no casarão de Mariinha e Tuninha, onde se encontram comida, pouso e acolhimento, e em espaços não concretos, como na música de Mané da Gaita e na proteção e no acolhimento de Venâncio, o qual, por exemplo, é esteio para Thadeu.

Ainda se pode destacar da obra o trabalho com as vozes narrativas, que traz à tona um jogo polifônico. O texto inicia-se em terceira pessoa; no quinto capítulo da segunda parte (“Máquina de escrever”), o texto passa para a primeira pessoa, revelando a narração de Maria Teresa. A partir daí, a narrativa segue com a alternância de foco narrativo.

Além disso, o livro é permeado de cartas. Maria Teresa, com o esforço de suas mães para que pudesse ter um futuro diferente do que estava definido para as moças da sua comunidade, forma-se datilógrafa. Após ganhar uma máquina de escrever de Zezito, inicia o serviço de escrever cartas. Chama a atenção que as missivas escritas destinam-se a pessoas que, a princípio, não as poderiam receber (a mãe de Venâncio, que ninguém sabe se está viva; o filho de Gerônimo levado pelas águas; e a filha de Lai, que se revelará ser Maria Teresa). As cartas parecem destinar-se mais aos remetentes que aos destinatários, promovendo um contato afetivo com aqueles que, em tese, já não estão mais presentes.

A última carta apresentada é a de Mãe Carminha, irmã de Zezito, que assume a governança da Casa de Oió. Ela escreve, na máquina de datilografar, a sua mensagem para Maria Teresa a fim de ajudá-la a entender que é o momento de sua passagem.

Você não deve temer. Deve se sustentar nessa aparição de beleza e se levantar. E ir embora. Tua história está contada e seguirá sendo repetida. Risca um fósforo nessa tua falsa má impressão de presença e ilumina e respira o cheiro do agora e vê que é tempo de passagem. A gaveta está aberta, deixarei esta carta junto a teus papéis (p. 295).

O recurso da polifonia, nesse contexto, parece apontar para a descentralização do discurso, deixando que as próprias personagens digam sobre si e seus sentimentos. É uma espécie de descolonização da palavra, uma vez que todos têm acesso a ela e podem contar sua história. A passagem do texto de terceira para primeira pessoa destaca a existência de Maria Teresa e de tudo o que ela representa, de modo que possa assumir seu estar no mundo.

As cartas e o fato de que Maria Teresa também escreve à máquina suas memórias evidenciam a importância do recurso da escrita, o qual evita que se apaguem as vivências de suas mães, de Zezito e das demais pessoas de Mata Doce. Por meio dessa escrita, é possível eternizar uma lembrança e um sentimento, assim como ocorre com as memórias de Maria Teresa, como esclarece Mãe Carminha – “Tua história está contada” (p. 295). Esse movimento representa a constituição de um arquivo, um dos meios de os indivíduos negros, expropriados do registro de sua história, afirmarem-se como pessoas negras e demarcarem sua existência.

A leitura, nesse contexto, também é fundamental para Maria Teresa, porque essa ação “a diferençava” (p. 239). A partir do pedido de Manuel Querino para que procure o livro Úrsula, ela encontra outra perspectiva de vida além de matar bois. A leitura da obra causou em Maria Teresa, ou Filhinha Mata-Boi, ao mesmo tempo, incômodo e admiração, sentia que “[q]ueria trazer Mata Doce para mais perto de si. [...] ela queria outro tempo”. (p. 250).

A escolha da obra Úrsula para a composição do contexto narrativo pode ser justificada por diferentes perspectivas. Uma delas diz respeito ao fato de ser o primeiro romance brasileiro publicado por uma mulher, e uma mulher negra, e a primeira obra de caráter abolicionista de autoria feminina. Além disso, pode-se afirmar que o texto de Firmina inaugura, “na ficção, uma forma de conceber a pessoa negra em sua subjetividade e memória, fraturando um território mental, político e social todo organizado em torno da escravidão” (MIRANDA, 2021, p. 287). Nesse sentido, a leitura da obra por Maria Teresa lhe desperta para a subjetividade e para as próprias memórias e as daqueles que compunham seu povoado.

Permeado pela religiosidade das pessoas de santo, o texto ainda traz referências a Yemanjá Sabá, orixá que volta à família Vazante pela chegada de Maria Teresa; a Oxossi, orixá guia de Mariinha, o qual representará a relação da personagem com a natureza e o conhecimento; a Oyá, orixá guia de Tuninha, que demonstrará a força de transformação da personagem e sua capacidade de movimento no corpo e no mundo; e a Xangô, orixá da justiça, que envia um recado a Zezito para que este guarde suas costas. Os santos estão a todo momento em contato com as personagens para lhes enviar mensagens, nortear a existência e dizer daqueles que já se foram.

Nesse sentido, a narrativa de Mata Doce reafirma a intencionalidade da obra de lançar luz sobre a expressividade e a subjetividade de indivíduos marginalizados pela cor da pele, pelas crenças, pela visão de mundo. De modo sensível e arrebatador, Luciany Aparecida desvela uma triste realidade, mas também faz brilhar uma força descomunal.

Belo Horizonte, novembro de 2023.

Referências

APARECIDA, Luciany. Mata doce. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2023.

APARECIDA, Luciany. Ruth Ducaso não existe. 24 jan. 2021. Instagram: luciany Aparecida. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CKclF9JlsuQ/?img_index=1. Acesso em: 24 nov. 2023.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. E-book.

MIRANDA, Fernanda. Uma autora à frente do seu tempo. In: REIS, Maria Firmina dos Reis. Úrsula. Rio de Janeiro: Antofágica, 2021. p. 287-293.

SOUTO, Stéfane. Aquilombar-se: insurgências negras na gestão cultural contemporânea. Metamorfose, v. 4, n. 4, p. 133-144, jun. 2020.  

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[**]O livro é um objeto artístico, e existe um único exemplar da obra.

[***]NASCIMENTO,  Beatriz.  O  conceito  de  quilombo  e  a  resistência  cultural  negra. In: RATTS,  Alex.  Eu  sou  atlântica:  sobre  a  trajetória  de  vida  de  Beatriz  Nascimento.  São Paulo:  Instituto Kuanza, 2006. P, 117-125.

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* Loiany Camile Gomes é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG, mestra em Estudos Literários e graduada em Letras pela UFMG.

 

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