Escrita quase em palimpsesto?
Um (des)concerto a quatro mãos?

 

Adélcio de Sousa Cruz*

 

 

A loucura é

a derrota do homem

desnudada,

exposta crua

e sem rodeios,

em sua patética variedade.

Para arrancar dela a arte,

é preciso transformá-la;

por isso, depois de tudo observar,

farei destas anotações uma outra coisa, algo muito diferente

como o artista que,

esculpindo a bruta pedra,

dela arranca as belas formas.

Mas não haverá,

nessa transformação,

algum tipo de falseamento?

Para fazer a Literatura

a partir da loucura,

será preciso falsificá-la?

 

Henrique Marques Samyn

 

 

O título do romance de Herinque Marques Samyn, Uma temporada no inferno (2022), remete à intertextualidade com Sobrevivendo no inferno (1997), álbum antológico dos Racionais MCs. Entretanto, seu primeiro intertexto aproxima-se de duas produções do escritor, intelectual e jornalista Afonso Henriques de Lima Barreto: O diário do hospício e, ainda, o romance inacabado que recebeu o título de O cemitério dos vivos.

Samyn é professor da UERJ, leciona no Programa de Pós-graduação e na graduação, realiza pesquisas no campo da literatura brasileira contemporânea, coordenando o projeto LetrasPretas. Autor de três livros de poesia – Poemário do desterro (2005), Estudos sobre temas antigos (2013) e Levante (2020). Organizou e traduziu Por uma revolução antirracista: uma antologia de textos dos Panteras Negras (2018); Os Panteras Negras: uma introdução (2023); Feminismos dissidentes: perspectivas interseccionais (2021), organizado em parceria com Lina Arao e, ainda, coorganizou com Amanda Lourenço (Sobre)vivências de mulheres negras (2021).

O pesquisador, professor e escritor lançou-se em profunda empreitada, ao mergulhar em seu primeiro romance num dos mais agudos infernos nossos de cada dia: o hospício. Seu texto se propõe a dialogar diretamente com a dupla experiência – pessoal e literária – de Lima Barreto, ocorrida pouco mais de cem anos antes, no início do século XX. Enquanto o Brasil, àquela época, seguia ignorando, solenemente, a maioria de seus talentos que descendiam da população africana escravizada, hoje, finalmente, temos a oportunidade de receber essa narrativa que performatiza uma espécie de espelhamento tanto do narrador quanto do autor em experiência manicomial.

Por uma performance infernal?

O narrador personagem confeccionado para o romance de Samyn parece resvalar pela prática de uma escrita de tipo performático” (RAVETTI, 2003, p. 42) que ao invocar os registros do arquivo manicomial presente no barretiano Diário do hospício (2004), “pode contribuir para efetivação de diálogos culturais considerados impossíveis” (RAVETTI, idem). A escrita em Uma temporada no inferno (2022) atua como palimpsesto ao se registrar sobre a grafia do inconsciente de outro escritor que viveu até as duas primeiras décadas do século XX e, pouco mais de cem anos após, se vê presente sob um personagem criado por um autor negro contemporâneo das duas primeiras dezenas de anos do século XXI. Enquanto o inferno do segundo autor é ficcional, performando um diálogo “(in)direto” com o primeiro, cuja escrita foi/está classificada como memória de suas passagens pelo hospício... uma escrita infernal e “de tipo performático”, ecoando no presente um diálogo com um passado que parece permanecer sempre reatualizado ou, numa expressão do mundo digital: as noções e demais significados de loucura foram atualizadas com sucesso...

Qual o preço desse mergulho no universo do hospício? Os relatos de sobreviventes podem nos dar pistas de percursos em meio à crueza da trajetória ao se perder dentro de si mesmo. O intertexto, a citação direta e, às vezes, fundindo o narrador em primeira pessoa do Diário do hospício (2004) com a voz que lançou, também de modo fragmentado e localizada temporalmente “duas décadas depois” (SAMYN, 2022, p. 20), as experiências naquele inferno nada particular são apresentadas ao leitor. E paradoxalmente, a internação psiquiátrica “falseada” pelo narrador criado por Samyn, com o propósito de “superar” a experiência de Lima Barreto – cujo nome é substituído pelas letras L.B. quando o narrador se refere ao escritor “negro ou mulato, como queiram”, parece tomar rumo indesejado:

O médico, depois de ouvir-me, ficou em silêncio por algum tempo; finalmente, rabiscou alguma coisa em seu relatório. Perguntei para ele o que eu tinha e, para meu espanto, declarou que não lhe cabia dizer-me, aliás, para ser mais veraz: disse que não tinha que dar satisfação nenhuma a um alienado. Objetei que eu tinha, sim, o direito de conhecer minha própria enfermidade, se alguma havia; para minha maior estupefação, respondeu, rudemente, que minha doença seria aquela que ele determinasse. Fiquei sabendo, assim, que a moderna Psiquiatria autoriza o médico não apenas a diagnosticar os males, mas também a colocá-los nos doentes por conta própria, o que é verdadeiramente espantoso. De fato, lidar com um sujeito desses deve enlouquecer qualquer um (SAMYN, 2022, p. 25-26).

 

A Literatura é uma forma particular de inferno (idem, p.37).

Os escritos do diário de Lima Barreto, a partir da vivência como interno no hospício que era localizado na praia de Botafogo, são registros de um “experimento” pelo qual nenhuma pessoa deveria passar. As observações sobre o cotidiano das pessoas lançadas ali, ora devido ao alcoolismo, ora devido a algum surto e, paradoxalmente, como “fuga” à cadeia comum, no caso de assassinos confessos, quase todos eles militares, salvo raras exceções, e cujas vítimas de tais crimes eram, invariavelmente, mulheres.

O narrador de Uma temporada no inferno (2022) irá se distanciar ficcionalmente da temporalidade das duas primeiras décadas do século XXI fazendo que, por sua vez, lance sobre o atual público leitor todas as mazelas registradas por Lima Barreto, seja nos jornais, seja nas páginas dos diários – o do hospício e o da intimidade – e, ainda, em sua inacabada tentativa de ficcionalizar as crônicas de suas passagens pelo manicômio.

A escrita a quatro mãos da narrativa de Henrique Samyn, mesmo que ficcional talvez tenha realçado algumas nuances que podem, por vezes, passar despercebidas ao percorrermos o texto registrado por Lima Barreto. O personagem que tenta superar a travessia feita por Barreto no início do século passado, parece mergulhar mais fundo nas sombras do psiquismo que trafega ora sob delírios de grandeza, ora sucumbindo às derrotas por ele sofridas, rompendo a tênue linha entre a sanidade e a loucura humana. Se a literatura é realmente uma forma particular de inferno, arriscamos apontar justamente para a solidão dessas experiências, seja enquanto escrita, seja enquanto leitura... Então, o mergulho desses “dois” corpos nas memórias de um inferno nada particular te aguarda, público leitor, sem mais parcimônias e (des)introduções...

  

Referências

 

BARRETO, Lima. O diário do hospício. In: O cemitério dos vivos: memórias. Organização e notas: Diogo de Hollanda. Prefácio: Fábio Lucas. São Paulo: Editora Planeta do Brasil; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 17-114. – (Biblioteca invisível ; 1)

RAVETTI, Graciella. O diáfano e o opaco da experiência. In: O corpo em performance. HILDEBRANDO, Antonio; NASCIMENTO, Lisley; ROJO, Sara (Org.). Belo Horizonte: NELAP/FALE/UFMG, 2003. p. 31-61.

SAMYN, Henrique Marques. Uma temporada no inferno. Ilustração Keila Gondim. 1 ed. Rio de Janeiro: Malê Edições, 2022.

 

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* Adélcio de Sousa Cruz é doutor em Literatura comparada/UFMG, professor efetivo do PPGLetras/UFV e do curso de graduação do Departamento de Letras/UFV. Integra a Comissão Editorial Executiva do Portal literafro (UFMG), o grupo de pesquisa Literatura e Mídia/UFV e do grupo Mulheres e Ficção/UFV. É autor, entre outros, de Narrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo LIns, Ferrez (2012).

 

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