Da terra ao fogo: a violência em torno da posse da terra e o racismo

em Salvar o fogo, de Itamar Vieira Junior

 

Érica Luciana Souza da Silva* 

 

 

 

 

 

 

 

Dizia:
“Nunca estamos sozinhos dentro da mata, Magrela.
Bicho e árvore o tempo todo tão observando a gente.
E não pense que eles são bobos.
Falam entre si.
Quando um madeireiro derruba uma árvore grande,
uma castanheira, por dizer assim,
ela tem raízes entranhadas terra abaixo,
não morre sozinha.
Leva junto as árvores do entorno,
sua queda puxa as outras.
A terra treme e ruge,
e a árvore maior cai esperneando com as menor.
A natureza solta um berro.
É um alerta, um aviso:
cês levaram essa,
mas cuidado se quiserem levar mais.
Posso tardar em vingar a morte dos meus,
mas um dia vingo.”

(Silveira, 2020, p. 57)

 

 

 

 

 

Por vários séculos, a literatura brasileira se restringiu aos moldes da literatura europeia. Nesse rol de produções literárias, quase não eram consideradas as várias realidades brasileiras, e as vozes da parcela da população reconhecida como minoria social não encontravam espaço para sua representação. O exercício de releitura, reinterpretação e questionamento era restrito aos padrões já estabelecidos, tomados como modelos exclusivos da cultura e arte.

Na contemporaneidade, vivenciamos uma mudança de paradigma social e literário. Neste novo cenário, as manifestações das vozes silenciadas e ignoradas ganham força e repercutem, trazendo o leitor para um universo que, muitas vezes, a ele lhe parece distante e estranho. As reflexões em torno dos estudos decoloniais possibilitaram esta manifestação de profusão de vozes, antes invisibilizadas.

É nesse sentido que compreendo a narrativa de Itamar Vieira Junior, escritor baiano, geógrafo por formação e ganhador dos prêmios Leya (2018), Jabuti e Oceanos, ambos de 2020. Além de geógrafo, Vieira Junior é servidor, hoje afastado, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Tal ocupação permitiu ao autor o vasto conhecimento sobre os conflitos agrários brasileiros, bem como sobre a situação de precariedade, violência e crueldade que permeia a vida do trabalhador rural brasileiro. Ao refletir sobre a escrita de Vieira Junior, ocorreu-me a entrevista do escritor angolano Boaventura Cardoso, publicada no Jornal de Angola, no dia 28 de maio de 2023. Nela, Cardoso afirmou que “a missão do escritor é escrever sobre aquilo que o inquieta e desestabiliza” (CORI, 2023, p, 30-31).

Itamar Vieira Junior desempenha a função de escritor, conforme afirma Cardoso, ao trazer para seus romances a realidade que ele presenciou em sua atuação profissional. Do conhecimento, surgem o incômodo e a desestabilização como cidadão brasileiro perante o cenário de exploração. Seus personagens tornaram-se os porta-vozes desse mundo desconhecido por muitos e ignorado por tantos outros. Em Torto arado (2019), o autor nos emocionou quando nos fez ouvir as vozes das irmãs Bibiana e Belonísia e da entidade Santa Rita Pescadeira. Em seu novo romance, Salvar o fogo (2023), Vieira Junior mais uma vez nos faz refletir sobre a intensa violência que incide sobre o trabalhador rural que vive no interior do país, longe das redes sociais, da imprensa formal e, muitas vezes, abandonado pelo poder público.

O problema da distribuição e ocupação de terras no Brasil é algo recorrente, permanente e grave. De acordo com Centro de Documentação da Comissão Pastoral da Terra (Cedoc-CPT), os assassinatos no campo aumentaram 75% em 2021, com uma média de 34 assassinatos por semana. Os números confirmam a situação trágica que estrutura a relação de trabalho nessas áreas e, provavelmente, contribuíram para alimentar o desassossego do autor.

É com este incômodo registrado em suas páginas que Salvar o fogo chega às livrarias brasileiras. Nele, estão inscritos personagens simples que compõem a história da Tapera, uma pequena comunidade situada fora do limite urbano. Majoritariamente a população que ali reside é formada por negros descendentes de africanos e indígenas. São pessoas que vivem o dilema da exploração da mão de obra agrária, mas garantem sua sobrevivência e de seus familiares a partir daquilo que cultivam em suas pequenas propriedades. A Tapera é banhada pelo rio Paraguaçu que, ao mesmo tempo que se constitui como fonte de alimentos, é também uma das representações culturais do local. As águas do Paraguaçu guardam segredos e confissões que vão sendo desvendados durante o desenvolvimento do enredo.

Um segundo elemento marcante na vida da Tapera e de seus habitantes é o mosteiro, local que abriga, ao mesmo tempo, a residência dos padres e a única escola da região. O monastério situa-se à margem da comunidade, mas controla e influencia as ações das pessoas. Os sacerdotes, com seus discursos religiosos, atribuem ao sobrenatural todas as ocorrências do povoado. Desta forma, eles legitimam os processos de violência e silenciamento contra aqueles que divergem do que fora estabelecido como modo de vida. Enquanto a Tapera definha na miséria e na escassez, os padres regozijam na opulência do mosteiro. Eles sabem que uma das formas de garantir a dominação sobre aquelas pessoas é instaurando na Tapera uma hierarquia. Ou seja, aqueles considerados melhores pelo santuário, fiscalizam os que são tomados como inferiores.

Para tanta representação de violência e humilhação, a constituição de personagens simples é uma opção do autor. São simples, mas não são rasos. Cada narrador constituído dentro do romance é como se fosse um ato de uma peça teatral, um fio aparentemente desconectado. Com o último narrador, distanciado dos fatos contados, típico de um narrador de terceira pessoa, os fios se conectam e trazem a reinterpretação de um mundo construído sobre fortes e ferozes narrativas e construções coloniais. A enganosa fragilidade e simplicidade que estrutura os personagens aponta o impulso que eles detêm ao empreenderem a luta desigual pela sobrevivência e pela posse da terra. No entrelaçar dos fios narrativos, o leitor percebe em Salvar o fogo as afirmações de Cuti (2010) sobre o surgimento de leitores, personagens e autores negros: eles trazem para a literatura brasileira as questões próprias que permeiam a vida do negro no Brasil. Novamente retomamos o incômodo enunciado por Cardoso.

Salvar o fogo vai além de uma escolha de repertório. Ele se torna o espaço de enunciação das vozes até então ignoradas dentro da construção social brasileira. Ler este romance é se colocar à disposição em ouvir o que essas vozes têm a dizer e olhar o mundo falsamente conhecido por outra perspectiva até então silenciada. 

 

Juiz de Fora, junho de 2023.

 

Referências
 

Conflitos no campo: Brasil 2021. Centro de documentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT Nacional, 2022.

CORI, Isaquiel. Entrevista Boaventura Cardoso. Jornal de Angola, 28 de maio de 2023.

CUTI, Luiz Silva. Literatura negro-brasileira: consciência em debate. Selo Negro, 2010.

SILVEIRA, Maria José. Maria Altamira. São Paulo: Editora Instante: 2020.

VIEIRA JUNIOR, Itamar. Salvar o fogo. São Paulo: Todavia, 2023.

 

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* Érica Luciana de Souza Silva é Doutora em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF e professora do Instituto Federal Fluminense - IFF.

 

 

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