O processo da ficção, segundo Eliane Marques

 

Ronald Augusto*

Romance-rapsódia, definição de bolso para Louças de Família. Carência de unidade formal, no entanto, não pode ser aplicada à obra. A estrutura aberta a variados ritmos e processos de composição que envolvem tanto o capricho intertextual quanto o improviso paródico constituem a determinação de sua ficcionalidade. Na rapsódia a descontinuidade sabe antes a uma conquista do que a um cochilo no jogo narrativo.

As referências factuais e biográficas da autora empírica são mencionadas lateralmente, a “cidade entre nome de santa nome de ana ou de liberdade” é e não é Santana do Livramento. A narradora é uma personagem de ficção também descontínua; se realiza como discurso descontínuo, como justaposição de falas ininterruptas em análise. Outra definição de bolso: Louças de Família se trata de um compósito de memórias alheias e próprias, reimaginadas e expropriadas de acordo com a noção segundo a qual a literatura tem um estatuto próprio cujo caráter não se reporta nem à verdade nem à mentira.

Quando a narradora se dirige à leitora em muitas passagens do livro, despertando-a da evasão romanesca, é possível perceber o especial estatuto ficcional acontecendo: o fruidor se reconhece fruindo um objeto verbal que pode aludir à vida (verdade), mas não é a vida (é fabulação). O piparote na leitora é metonímia do processo típico da prosa que transforma a participação fria do leitor, no sentido em que seu papel às vezes é de mero assistente, em participação quente, situação em que lhe é exigida a colaboração para fazer funcionar a máquina preguiçosa do texto. No momento em que o prosador oferece a mão para o leitor, convidando-o à interlocução, observamos sua metamorfose em personagem implícito.

A engraçada irritação da narradora com o corretor automático de texto ou com o revisor juramentado que, por dever de ofício, buscam aparar rasuras de sentido, bem como erros de digitação, também tem relação com a expectativa de coincidência entre a narração e a coisa narrada ou nomeada. 

Os transes e as gralhas envolvidos tanto no artesanato da escrita quanto na edição da obra precisam ser controlados. Em Louças de Família, revisor e editor de texto representam o leitor médio. O leitor que cobra do escritor a fidelidade aos significados.

É inegável que a invariante temática das vivências negras constitui elemento importante em Louças de Família, porém Eliane Marques não se dobra ao sentimental que predomina nos exemplares romanescos realizados por seus pares. Inclusive, a narradora, apelando ao sarcasmo, se apresenta como a “retinta ressentida”. Uma atenção que é autocrítica e autoirônica e, de resto, metalinguística, torna Louças de Família obra da qual é quase impossível desentranhar a tirada edificante, mobilizadora; passagem a ser emoldurada em vista de mitigar, por um lado, o remorso do leitor branco bem intencionado e, por outro lado, ratificar sem mais o modelo autorreferenciado de discurso negro. A narradora conduz o leitorado ao engano. A leitora não pode confiar inteiramente na ficcionista. O suposto acordo de identificação entre leitor e autor é quebrado. Não são poucos os trechos em que a narradora confessa fictamente, voltando atrás, que faltou com a verdade.

Escrever pressupõe não necessariamente dar cabo ou concluir o prazer da escrita, mas apenas interrompê-lo. A prática psicanalítica se relaciona com uma temporalidade menos rígida no que diz respeito ao acompanhamento do sujeito analisado, admitindo sessões curtas ou ultracurtas. Ruptura, demora e frustração da enunciação. Incisão no fluxo da linguagem fazendo-o decididamente inconcluso. Em Louças de Família, a fragmentação e as interpolações jogam o discurso narrativo para as terras do sem-fim. Cada interrupção no fluxo do texto amplia a aspiração pela demora, pela persecução do passado.

Sob a primazia da vertigem a persona da romancista ultrapassa os limites onde as folhas do livro são talhadas e ganha um espaço discursivo que se põe em movimento com aquilo sobre o que deseja falar áspera e dissimuladamente. Tia Eluma e narradora se dissipam nas frinchas de memórias enquanto sintoma de um jornal íntimo: prodigioso pacto com os negaceios da linguagem. Ao instaurar um discurso por meio da análise, afirma Lacan, o sujeito suspende algo. E esse algo é a função do sujeito. Isto é, o sujeito fica dispensado de sustentar seu discurso com um eu digo. O ego-scriptor é dispensado de sustentar o que aparentemente enuncia. Referência MARQUES, Eliane. Louças de família. Belo Horizonte: Autêntica Contemporânea, 2023.

(In: GZH LIVROS, 19/05/2023).

Referência

MARQUES, Eliane. Louças de família. Belo Horizonte: Autêntica Contemporânea, 2023.

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* Ronald Augusto é Mestre em Letras pela UFRGS e professor de Filosofia, além de poeta e ensaísta consagrado com dezenas de publicações nas últimas décadas. No campo da reflexão sobre o fazer literário ganham destaque seus escritos reunidos em Decupagens assim (2012), O leitor desobediente (2020), além de E Mais Não Digo (2023).

 

 

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