Tempo de criar novos mundos
Sílvia Barros*
Que mundos são possíveis para nós, pessoas negras? Quais tecnologias – científicas, artísticas, espirituais – permitirão que continuemos vivos e vivas? São perguntas assim que movem a escrita futurista elaborada por e para pessoas negras. A narrativa que habita este volume nasce desse estímulo de fabulação que é, ao mesmo tempo ato de resistência.
A escrita de autoria negra é uma ponte entre mundos da memória e do futuro, a ficção recria um passado não-registrado e proporciona novos horizontes que talvez ainda não possam ser vistos, mas que podem ser imaginados.
É a partir disso que Sandra Menezes escreve O céu entre mundos, na perspectiva afro-futurista que, por princípio, está diretamente entrelaçada com a memória. Se nós, pessoas negras da diáspora, procuramos entender nossa história e conhecer nossa origem, somos nós também que vivemos em busca de futuros possíveis para vencer o aniquilamento.
Por isso, na obra de Sandra Menezes, profissões como a de memorialista – profissão de Zaila, mãe da protagonista Karima – se aliam à de cientistas para construir uma sociedade avançada em outro planeta. A tecnologia não pode existir sem as camadas de história e espiritualidade que nos compõem.
Nesse movimento, O céu entre mundos é um romance para exercitar imaginação, formular uma realidade de comunicação por telepatia e naves voando para outros sistemas planetários, mas também para ter notícias de quem veio antes de nós, pessoas cujas existências já eram futuristas no passado, pois pavimentaram estradas para que nós caminhássemos. Pensar por essa perspectiva é escapar da lógica ocidental e encaminhar nossa intelectualidade – espiritualidade, intuição, ori – para África. É na África que está a salvação da protagonista Karima, porque é lá que vive o ancestral com quem ela mantém conexão e diálogo.
Conhecemos o planeta Wangari, planeta semelhante à Terra, espaço alternativo para se viver após a ação nociva do ser humano tornar o antigo planeta azul inabitável. Seus moradores são negros, caracterizados a partir da nossa diversidade, o que é uma imaginação subversiva dentro de uma sociedade que repete “preto é tudo igual”. Mulheres e homens exercem o poder que lhes cabe e o ato de falar da história escrita por nossos antepassados na Terra aparece tanto como exercício memorialístico, quanto como necessidade política.
É importante notar que não se trata de criar a imagem da perfeição. Em Wangari, existem conflitos, existe poder, mágoa e medo, porém a busca por solução para esses problemas é empreendida e protagonizada por pessoas negras que mantêm sua conexão com o continente africano. Uma visão futurista que deve inspirar o momento presente.
Se tanto nos pergunto com quantas romancistas negras se faz a literatura contemporânea brasileira, é com prazer que apresento este romance que entrará para nosso corpus, mantendo a esperança de que a ele se somarão muitos outros, porque contar histórias e criar novos mundos é nossa vocação ancestral.
Referência
MENEZES, Sandra. O céu entre mundos. Rio de Janeiro: Malê, 2021.
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* Sílvia Barros é doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ, professora do Colégio Pedro II e escritora. Publicou obras individuais e participou de antologias como Cadernos Negros volumes 41 e 42.