Transplante

Jean Sousa Brito

 

A crônica é o umbigo da Literatura, um buraquinho quente em prosa na encruzilhada dos gêneros, afiada como uma reportagem, delicada como uma poesia de suspiros; dentro de uma encruzilhada ainda maior, um buraquinho que sustenta a realidade e a ficção açucarada. Uma boa crônica derrete em nossas bocas enquanto a lemos, muitas vezes recebe menos destaque nas rodas de divulgação e apreciação literária do que merece. No entanto, há escritores célebres que fizeram nome escrevendo crônicas como Rubem Braga e Luis Fernando Veríssimo. Agora que a antiga observação da vida e do tempo quer voltar à moda, Michel Yakini-Iman é um daqueles que com muita graça encontra o seu lugar no buraquinho da moda.

O narrador das crônicas de Yakini-Iman, assim como o tempo, é jovem, adulto e idoso. Ele circula no asfalto das ruas, gosta de jogar bafo na esquina e de ouvir lorotas dos verdadeiros enquanto que ele escamba algumas mentiras. É um visionário e na laje, contemplando todo caos lá de cima, quando os olhos ardem, fecha-os em sonhos para desabrochar palavras entre as flores do quintal. Porque é o quintal um ativador de memórias, é no quintal onde o narrador de Yakini-Iman brinca e se deixa seduzir com a língua, com as proposições das filhas, é no quintal onde a flor recebe sol, o beija-flor e seus amigos.

Escritor, editor e produtor cultural, com atuação significativa nos movimentos de literatura periférica da cidade e do estado de São Paulo, Michel Yakini-Iman como cronista, assinou coluna no jornal Brasil de fato em sua edição online. Em 2014 entrou em campo com as Crônicas de um peladeiro, jogo (livro) que, segundo Eduardo de Assis Duarte, é um gol atrás do outro. Porém, Na medula do verbo (2021) assistimos ao homem que “entende o triunfo da poesia sobre o futebol, mas que joga sua pelada todo domingo debaixo do sol” (Thaís Gulin, Cinema Americano).

O livro é dividido em três partes, pai, filho e espírito santo, o Verbo logo na primeira página surge tomando sol na laje, mítico como um personagem na tela de um cinema. E essa câmera corta pelo quintal e dá na rua, com um desfile de homens e mulheres e o Verbo já no meio deles, gosta de jogar uma pelada e ouvir RAP, “parte de uma roda infinita... que dá carinho, gargalhada, choro e afeto sem dó”. Uma “roda que se olha e se cuida, seja de perto, de longe, sempre torce a favor, no erro e no acerto, na melhor e na pior” (p. 35).

De forma não linear, acompanhamos o desenvolvimento do Verbo, passamos por lugares onde ele já trabalhou, pelos amigos que adquiriu nas ruas, na escola, nos saraus, seguindo o curso da própria vida enfim. Inclusive com destaque para os saraus porque “falar poesia em saraus é um caso sério de saúde pública” (p. 37). Ele já havia descoberto as delícias da Literatura quando lá pela página 57 lança ao leitor a machadiana dúvida, será que ele finalmente leu o Pepetela emprestado pelo amigo Vagnão?

Então o leitor desconfia que ele é um tipo muito comum de Bentinhos que pegam livros emprestados e não devolvem. Não obstante, entre as crônicas de futebol, as crônicas de viagem peregrinam entre os estádios porque “quando a mala tá pronta, muita coisa aguarda, mas o que é vivo pulsa onde quer que a gente esteja, onde quer que esse giro nos leve”.

Nos “Diários de Havana”, título dado ao “Caderno 1”, Michel Yakini-Iman já nos arremessa ao gol, evocando os Cadernos Negros, placar incontornável da literatura afro-brasileira. Na certeza de que se ele vai, “é porque várias pessoas abriram os caminhos e ensinaram a ginga” (p. 36). E as vezes o Verbo atordoa também na busca pela identidade, entre crises e criatividades, na hora da resistência, sente a falta do membro decepado. “Sei bem que, se não sei ao certo de onde vim, é por que muitos dos meus foram jogados ao mar na travessia” (p. 72); ou encontrados por balas nas avenidas porque basta “apenas atravessar a rua pra encontrar a morte sendo entregue que nem pizza na frente do portão, quentinha, sem importar o nome de quem fez, a cara do indivíduo, o porquê” (p. 58). E para que livros num mundo de tanta violência se fogo queima papel? É uma Preta Velha quem esclarece para o Verbo que os escritos “não eram apenas frutos das minhas ideias, mas sopros de proteção” (p. 81). Ele que dá laje lamentou não conseguir desligar a esteira de solidão da rua (p. 19).

Já no Caderno 2, encontramos um Verbo mais maduro, redimensionando passado e futuro, joga “uma pedra hoje, pra acertar o alvo ontem, uma coisa de cada vez, tudo ao mesmo tempo agora” (p. 47). “A Semente de Aruanda” é jogada Na Medula do Verbo, local onde mora o princípio e as intenções. Nessa parte do filme passamos “7 dias na periferia”, caminhamos pelos corredores da “Penita” que, apesar de toda delicadeza do Verbo, não floreia os finais, embora senhor do tempo, não é senhor da vida. Os floreios “deixa pro roteirista da novela das nove. O que vale aqui é o caminho e não a chegada” (p. 103). E nesse caminho encontramos muita coisa, a amizade, o amor, o amorzade, a androginia como reconexão ao todo, nesse caminho estão os orixás e fofocas apostólicas também.

E através das especulações sobre língua, Michel Yakin-Iman chama a atenção para o aprisionamento de conceitos incompletos ou incoerentes, de modo que é necessário “dessenzalar a linguagem” e finalmente contemplar “A nudez do afeto: — uma vez que o — amor é um ato de linguagem”. E ele tem tanto para falar de amor, refletia quando chegou aos quarenta, não dava mais para segurar tantos eu te amos dentro do peito, explode coração:

porque quando elas se amam, teimam em ficar com os olhos brilhantes. Quando elas se amam, aprendem a decifrar os mapas do horizonte, o caminho das nascentes. Quando elas se amam exalam pelas ruas um perfume de mel (p. 131).

E é “vivendo de amor”, como bell hooks, que o leitor chega na última parte completamente entregue ao Verbo, com vontade de se expandir para o crescimento do próximo (p. 213). No Caderno 3, o leitor não está mais com um livro nas mãos, diante da Terra e os olhos de sentir, a leitura é um flerte que lança sementes dentro da medula, como uma roda de sarau na periferia que se desdobra em mais vida. O campo e a página, a rua e a laje são para Michel Yakini-Iman uma encruzilhada, sinal de “poder e multiplicação, consciência criadora que habita em mim e isso é digno de respeito” porque nessa encruzilhada passa “Cristo e Exu (mensageiro, sacrifício, criação, Verbo)” (p. 211).

Como bem observou, o escritor é um agente pedagógico também e atua na formação do próprio público. Michel Yakini-Iman leva para os saraus na periferia temas relacionados aos moradores da periferia e principalmente ao povo negro, porque é a periferia quilombos urbanos, povoados de Zumbis (p.168). Os temas afro são recorrentes e indispensável para a compreensão do Verbo, está no cânone negro citado, está nos provérbios africanos que assobiam nas páginas, está no rap, no funk; de modo que todos os elementos da sólida literatura afro-brasileira estão presentes, uma vez que “‘Exu nasceu antes que a própria mãe e não há nada que possa controlar, eliminar ou enganar as aberturas, os fundamentos e os dribles desse caminho” (p. 107).

Depois de ver o menino correr com o vento, depois do tempo flanando na tela do cinema, apenas com as portas do coração escancarado, alguém no DA de alguma faculdade de Letras, irá ler trechos dessas crônicas porque lhe será insuportável não compartilhar essas sementes com alguém. Porque ele quererá comprovar como que “o giro do sol, da lua, da terra e da gente só dá pra enxergar com os olhos de sentir” (p. 244). Porque apenas ouvindo o coração conseguirá penetrar mais fundo Na Medula do Verbo criativo, porque “é lá que mora a minha face desencontrada de ser humano (p. 254).

Belo Horizonte, junho de 2022

Referências

IMAN, Michel Yakini. Na Medula do Verbo. São Paulo: Elo da Corrente Edições, 2021.
DUARTE, Eduardo de Assis. Futebol, memória e paixão nos escritos de Michel Yakini. In: literafro, 2020. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ ficcao/85-michel-yakini-cronicas-de-um-peladeiro . Acesso em: 13/06/2022.
Portal literafro. Michel Yakini. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/ autores/331-michel-yakini. Acesso em: 13/06/2022. 
THAÍS GULIN. Cinema Americano. Rio de Janeiro: Rob Digital, 2006. 3:05 minutos.

 

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