No colinho de Yemonjá

Jean Sousa Brito*

 

Muitas coisas importantes da nossa história estão se perdendo, mas a força e a fé do povo negro não se acaba”, é assim que Mãe Beata de Yemonjá encerra a história de “A lagoa encantada”, ou melhor, encerra a contação, já que a história continua ecoando na cabeça como ondinhas dentro de uma lagoa, como ondinhas dentro de uma roda, como ondinhas dentro da voz, dentro da força vital que se alumia. E se você já se perguntou, qual a origem da expressão “bebeu como um gambá” ou “bebeu como uma raposa”, e se você tem curiosidade em saber da (meta) física dos orvalhos, essas e outras questões podem ser respondidas ouvindo as Histórias que a minha avó contava.

Nascida Beatriz Moreira Costa, em Salvador – BA, no dia 20 de janeiro de 1931, Mãe Beata de Yemonjá teve uma vida brilhante por sua atuação religiosa, política e literária. Foi uma das personalidades do candomblé mais celebradas no Rio de Janeiro, destacando-se por seu trabalho com soropositivos e doentes da AIDS, foi integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, assim como do Instituto Cultural de Apoio e Pesquisa das Religiões Afros (ICAPRA). Em 1997, lançou seu primeiro livro, Caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros; e, em 2004, as Histórias que a minha avó contava, uma reunião de narrativas breves sacralizadas dentro de um livro curto como a ponta de um iceberg capaz de naufragar imensos Titanic’s de ignorância.

Mãe Beata de Yemonjá atualiza a figura do griot, o guardião da sabedoria nas comunidades africanas, e cristaliza no livro, sem perder no horizonte o caráter oral das narrativas, histórias que ora são relatos, ora explicações mitológicas para fenômenos da natureza, com ou sem instigação de moral, porque o sentido dos contos se completa na cabeça de quem escuta, ou seja, nos livros vivos que, como galos, apanham esse grito que um lançou antes e o direciona a outro e outros galos que juntos tecem uma manhã. Se para a Lygia Fagundes Teles o conto é uma árvore, mas há alguém atrás da árvore, as Histórias que a minha avó contava é uma encruzilhada de Angicos, mas há alguém atrás dos Angicos – Exu, a mensagem.

Uma mensagem de solidariedade com a Natureza como em “Saci Pererê e o Lenhador”, ou uma mensagem de esperança nas asas de “O Beija-flor” e, ainda, uma mensagem de justiça em favor do pobre com “O calote”. Mensagens que estão submersas na memória coletiva e que emergem na contação de Mãe Beata com sua voz úmida de maresia. Oferece material para uma proposta revolucionária de apelo para aquilo que os africanos já sabiam há muito tempo: a disposição em roda, a voz que emana força vital e a escuta como processo de conhecimento uns dos outros. Uma proposta que dialoga com Ailton Krenak sobre estimular os sonhos em comunidade, assim como reaver e preservar a contação de mais uma história como uma das Ideias para adiar o fim do mundo (2019). Segundo o Krenak:

Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos (2019, p. 44).

Mãe Beata transmite uma espisteme que diz respeito aos sujeitos ligados aos orixás, comenta Felipe Fanuel Xavier Rodrigues no artigo “Literatura e sabedoria ancestral na obra de Mãe Beata de Yemonjá”, mas com uma moral além dos limites religiosos, universalizando os seus ensinamentos. Em “A arca perdida”, uma mãe que passava dificuldades vai à casa de seu filho para pedir ajuda. O filho avarento esconde tudo que tem dentro de uma arca e diz à mãe que lhe falta até para a família, imagina para dar aos outros. A mãe sabe que é mentira e vai embora magoada. E, quando abre a arca novamente, o filho se depara com uma nuvem de moscas e no fundo só havia carvão...

Os contos de Mãe Beata são icebergs porque, principalmente no livro, só enxergamos a pontinha exposta na superfície, cabendo ao leitor ou ouvinte o maravilhoso trabalho de mergulhar na profundeza das narrativas. Por que o filho despreza a mãe? Em qualquer cultura são considerados hediondos os maus tratos aos pais, assim como se torna cada vez mais sintomático o abandono aos idosos nas sociedades que orbitam em torno ao capital e ao individualismo. Ir às profundezas da filosofia apreendida por Mãe Beata de Yemonjá é necessário para que, quando formos às profundezas de nós mesmos, não encontrarmos apenas moscas e carvão.

Porém, engana-se quem pensa que estas histórias por serem breves, lúdicas ou lendárias não podem ser também tragicômicas e complexas, a exemplo de “O papagaio”: ser falante como qualquer outro dentro de piadas populares e como tantos dentro delas, perde as penas como castigo por saber os segredos dos seus donos ou vizinhos. Na história de Mãe Beata, a mulher adúltera joga o papagaio pelado dentro do tanque de água gelada, mas o marido traído o encontra e ele conta tudo. A mulher acaba por receber uma surra do marido e só então ela percebe que “o papagaio não havia falado nada até aquele momento e só falou porque ficou com raiva da perversidade de que ela havia feito com ele”. Nem mocinhos, nem vilões, são personagens que desafiam as nossas engessadas confabulações de moral e ética, certo que traição não é bem vista em lugar nenhum, mas o marido sempre foi agressivo? Por que o papagaio nunca disse antes, ele não se compadecia da enganação sofrida pelo marido?

São personagens que acabam por cair em dilemas éticos e até mesmo divinos com ou sem solução. São personagens amigos, personagens trágicos, personagens vizinhos, os fofoqueiros do bairro, as crianças que brincam no quintal, os animais que estão em toda parte, aranha, cobra, tatu, vagalumes, as oferendas ao santo, a tradição, o búzio, a guia. Histórias apropriadas para navegadores com ou sem experiência, de modo que a solução norte para essa bússola narrativa é contar que, contar que, contar que...

O livro se encerra com o perdão, trançado nas finas malhas do amor e da paixão, também com lembranças a Exu, uma onda de ternura que se comunica com o inconsciente e o coração. Porque Exu das encruzilhadas faz vigia à decisão dos nossos destinos e sendo o livro o estado intermediário entre o saber e o diálogo, fechar o livro é abrir uma janela para o mundo porque ele se realiza completamente quando contado para outra e outra pessoa, portanto, para que tenhamos sempre mais um causo para contar, devemos ostentar com alegria Histórias que a minha, a sua, a nossa avó contava.

Referências

BEATA DE YEMONJÁ, Mãe. Histórias que a minha avó contava. São Paulo: Terceira Margem: CESA – Sociedade Científica de Estudos da Arte, 2004.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RODRIGUES, Felipe Fanuel Xavier. Literatura e sabedoria ancestral na obra de Mãe Beata de Yemonjá. In: literafro, Portal da literatura afro-brasileira. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-critica-de-autores-feminios/587-literatura-e-sabedoria-ancestral-na-obra-de-mae-beata-de-yemonja-felipe-fanuel-xavier-rodrigues

 

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* Jean Sousa Brito é graduando em Letras pela UFMG e estagiário com o literafro - Portal da literatura afro-brasileira.

 

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