Aqueles que ninguém gosta de ver:

Invisíveis, de Adriano Moura

 

Érica Luciana de Souza Silva*

 

Trago-lhe noções
com as quais tu deves
estar familiarizado
(apartheid social, luta de classes),
e as contesto,
sob certas circunstâncias,
para não te deixar dúvidas
a respeito dos meus pontos de vista.
São formas de tratar
certas questões
nas quais tenho
a impressão que fico
subsumida, subentendida;
ou seja, nelas eu e os meus
nos tornamos invisíveis.

Sueli Carneiro
2005

“Ainda jogo água fervendo nela”! Essa é a fala de dona Noêmia. Católica fervorosa e que reverenciava o Sacramento da Igreja que consiste em comer o santo Corpo de Cristo nas missas dominicais. Contudo, Patativa, aquela negra bêbada e escandalosa, a tirava do sério, e de sua santidade. Até que, um dia, ela cumpriu a sua promessa e banhou Patativa com água fervente.  

Adriano Moura é professor do Instituto Federal Fluminense e pesquisador nas áreas de Literaturas Africanas e Literatura Afrodescendente Brasileira. É também autor de Liquidificador: poesia para vita mina (Imprimatur/7Letras, 2007), O julgamento de Lúcifer“ (Novo Século, 2013), Todo verso merece um dedo de prosa (Chiado, 2016) e das peças de teatro Relatos de professoresMeu querido diário e A matrioska ou o jogo da verdade, e por elas foi premiado com troféu João Siqueira da Federação de Teatro Associativo do Rio de Janeiro – Fetaerj.

O trecho citado que abre esta resenha faz parte do instigante livro Invisíveis. Obra em que, por meio de uma série de breves contos, Moura traz a representação de vários sujeitos que são invisíveis aos olhos da sociedade: prostitutas, homossexuais, empregadas domésticas sem a devida remuneração, moradores de rua, órfãos, miseráveis. Todos negros! A cada conto, uma janela aberta para a dura e cruel realidade que se impõe sobre os invisíveis inseridos no cotidiano das cidades brasileiras, os quais, ou são ignorados pela gente de bem, ou são julgados a todo momento por aqueles que acreditam que afastar os invisíveis sociais do seu raio de visão limitado faria bem a todos. Escalpelar a negra andarilha; abandonar a senhora que trabalhara a vida inteira para uma mesma família sem a devida remuneração; devolver crianças adotadas, especialmente as negras, devido a chegada de um filho legítimo.

Essas e outras cenas, muitas delas ambientadas em sua cidade natal, Campos dos Goytacazes, apontam que Adriano Moura escreve o que viu, ao mesmo tempo, em que ele lembra o leitor, a todo instante, que a realidade descrita em seus contos faz parte do contexto social brasileiro. Os diálogos, que se confundem com os pensamentos dos personagens, demonstram que ali, no espaço do texto, a narrativa traz à tona preconceitos e estigmas enraizados na concepção do que é ser “pessoa de bem” em uma sociedade que flerta com o fascismo disfarçado de conservadorismo. Esses apontamentos estão escancarados em trechos como o de “Invisível”, conto em que o rapaz negro é totalmente invisibilizado e descaracterizado pelo olhar daqueles que temem a negritude e insistem em ignorá-la: “Era assim... tipo você: jambo” (p. 64); ou em “Um par para Antônio” quando é apresentada a mãe de uma menina ruiva que não aceita o negro menino Antônio como par de sua filha na festa junina escolar: “Para ela, menino ‘de cor’ não combina com ruivas. Com loiras até dava pra passar, mas com ruiva ficava muito destoante.” (p. 68).

 Nos textos, perversidade e crueldade caminham lado a lado, revelando as consequências de uma desigualdade socioeconômica, as quais colocam em risco a vida de milhares de pessoas, especialmente as que são negras e pobres. Cada narrativa exerce um impacto semelhante a um soco na consciência do leitor e que o leva a se questionar: “Penso eu como o Heitorzinho Teixeira de Castro?”; “Ajo eu como dona Noêmia?”; “Tenho eu a mesma indiferença de Júlio, o bancário?”. Os contos não nos deixam esquecer que o Brasil só será bom para alguns quando for bom para todos e que, para tanto, uma mudança nos paradigmas sociais se faz necessária.

Por tudo isso e muito mais, Invisíveis, de Adriano Moura, é um livro urgente e indispensável, o qual retira das sombras todos aqueles sujeitos invisíveis e dá-lhes o espaço e o poder da fala através das narrativas.

Referências

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como não fundamento do ser. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

LOURES, Marisa.  Adriano Moura: O  Brasil não gosta de se ver no espelho.  Juiz de Fora: Tribuna de Minas, 2020. Disponível em: https://tribunademinas.com.br/especiais/colunas/sala-de-leitura/16-06-2020/adriano-moura-quando-eu-me-salvar-talvez-deixe-de-escrever.html

MOURA, Adriano. Invisíveis. São Paulo: Editora Patuá, 2020.

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* Érica Luciana de Souza Silva é Doutora em Letras: Estudos Literários, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professora do Instituto Federal Fluminense (IFF).

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