Cartografia de um espaço que resta:

Front, de Edimilson de Almeida Pereira

 

 Giovanna Soalheiro Pinheiro* 

 

Vamos com um pé na frente
e outro atrás,
amando
o lugar que nos exila.
Tensos,
alimentamos
a ideia de um lugar que só existe
porque existimos.
O bairro é uma dor frenética:
uma esperança também.
É vidro estilhaçado,
globo da morte.
O bairro singra, estaciona.
É espelho de mim.
Dos outros? De quem?
De mim,
que tenho os contornos abertos
e deslizo entre as coisas
que me arranham.
Um bairro quase um país:
isso é o que deduz meu pensamento:
se há fronteiras,
há lados diferentes.

Edimilson de Almeida Pereira

(Front, p. 37)

 

Desse modo tem início uma das 16 narrativas, ou melhor, antinarrativas, que compõem Front, o novo romance de Edimilson de Almeida Pereira, publicado no final de 2020, pela Editora NÓS. Trata-se do terceiro livro da trilogia “Náusea”, composta por outros dois romances: O ausente, que saiu pela Relicário (2020) e Um corpo à deriva, pela Macondo Edições, (2020).  Nele, o autor traz à cena uma textualidade complexa, contemporânea, misto de ficção, ensaio e prosa poética, convidando-nos a adentrar o tempo-espaço físico e psicológico pelo qual circula o narrador-personagem: um homem-árvore que recusa o seu nome e confronta o território brutal que habita.

A trama ocorre quando o protagonista está, sob sol intenso, na fila de uma lotérica, aguardando para quitar algumas contas. O tempo corrido ali é de três horas, a fila é longa, atravessada, funda a percepção do sujeito sobre sua experiência deflagrada. É o campo de uma ação intuída, do deslocamento entre a memória do passado e a possibilidade de compreender o presente. A partir dessa fila, o leitor também é convidado a se conectar ao ponto de vista interno, ao olhar veloz e analítico de quem conta: “(...) E continuou a subir, dá para ouvir a fricção das unhas? A princípio é desesperador (...). Depois vem a pluma amainando os ruídos – quando parece desaparecer, sibila. Emenda um silvo no outro, quebra quando bate na quina da mesa. Se emenda de novo. Viu? Ouviu?” (p. 45).

Como espaço geográfico, pode-se entrever uma localidade periférica e a referência a um monturo de resíduos eletrônicos, situado a poucos metros da casa do protagonista. E ele nos diz: “(...) Durante anos, eu e meus amigos escavamos esse monturo. Nada mais indigno do que viver ao redor de um lugar que se transformou no depósito de lixo da cidade”. (p. 15).

Porém, é dessa fila que ele acessa psicologicamente a sua infância nesses arredores, os amigos Silas, Cola, os moradores do bairro, a escola, a brutalidade cotidiana praticada pelas forças de um Estado opressor, a sua vocação à leitura dos livros e do mundo. Na fila, portanto, enquanto espera, o narrador tenta reconstituir o campo hostil do vivido, em meio a cortes temporais abruptos, entre um real impreciso (tempo presente da reflexão) e a tentativa de suplementar a memória por meio da linguagem. Nesse aspecto, importante destacar a aproximação com a memória oral, coletiva e a experiência do sujeito no âmbito da palavra não apenas escrita. Todos os elementos que compõem Front têm a sua base fraturada: o tempo, o espaço-território, a língua, a história, os corpos, em oposição a essa voz-palavra arguciosa e delicada, ao sistema sígnico que a constitui. Talvez seja este o domínio mais intenso e bonito da narrativa: o da palavra. Pela manipulação dos elementos materiais do signo, sentimos pulsar os ruídos, os sons, as imagens carregadas de significância: “Há uma outra ordem quando o homem-árvore fala: é uma urdidura, um desmanche de debrum”. (p. 47). 

Pode-se pensar, por isso mesmo, que não se trata somente de uma obra ficcional que narra um acontecimento, mas sim de um texto-questionador, o qual se aproxima de outras formas, como da prosa ensaística e da poesia. Questiona-se a história, o local, a língua, o país, o status quo. Questiona-se a margem do urbano, as linhas fronteiriças entre o morro e a cidade, a brutalidade das ações impostas aos indivíduos nesses territórios. Há uma vagueza quase impressionista no modo de narrar, nas tentativas de mapear: tudo é indeterminado, sugerido; a linguagem não descreve, mas poetiza e aponta o modo de estar no e do espaço, ou seja, no bairro, no monturo, num país que indefere o futuro.

Em Front, o espaço aberto é a habitação, é a morada estilhaçada de quem narra e, talvez, de quem lê. O único espaço de dentro é o do pensamento-memória, refletido na linguagem sensível do protagonista. Ao concluirmos a leitura, somos sabedores de que não há conforto; há, por outro lado, confronto, “o mundo-caos”, para relembrar Édouard Glissant (2005). E é nesse mesmo lugar que o narrador performa as suas lacunas, na fila, inquirindo, entre delírios e recordações, tudo a seu redor: “Aqui fora, os corpos atirados dos helicópteros enfurecem as águas. Essa imagem fluida e noturna nos habita, alheia à nossa vontade: é sempre escuro e sob o rugido das hélices um corpo se precipita” (p. 9).  

Uma máquina de guerra, “um aríete”: assim podemos apreender a força de Front: é narração anfíbia, conforme Silviano Santiago (2002), é ensaio, linguagem autorreflexiva, poesia, inquirição. É língua que cria, corrói e liberta. Já o bairro, e o seu monturo, é o que resta de um país: resíduo, local arrasado, cartografia do exílio desse corpo outro periférico, estrangeiro, assaltado pelo sistema. O narrador-protagonista, porém, insiste em existir, ou resistir, em se assomar e nos fazer avistar a situação limite na qual ele e tantos outros se encontram. Edimilson de Almeida Pereira, como grande poeta, pesquisador e crítico, cria, nesse romance, uma língua-confronto, uma prosa exigente: feroz no fundo, poesia na forma.

Belo Horizonte, março de 2021.

 

Referência

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Front. São Paulo: Editora NÓS, 2020. 

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* Giovanna Soalheiro Pinheiro é Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. Atua, desde 2005, como pesquisadora do Portal literafro, publicando em antologias organizadas em função do Portal, a exemplo do Literatura Afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao século XXI (2019, 2ª edição). Atua como professora convidada na Faculdade de Letras da UFMG, onde realiza estágio pós-doutoral em poesia e tradução, junto ao Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG. 

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