A pupila é preta

Luiz Henrique Oliveira*

 

Luiz Silva, conhecido no universo literário por Cuti, nasceu em Ourinhos, estado de São Paulo. Graduou-se em Letras (português-francês) pela USP. Concluiu mestrado em Teoria da Literatura e doutorado em Literatura Brasileira pela Unicamp. Histórico militante pelos direitos da população negra brasileira, foi um dos fundadores do coletivo Quilombhoje Literatura, com o qual manteve vasta colaboração. Cuti também ajudou a criar a série Cadernos Negros, a qual teve início em 1978 e segue em plena atividade.

O ano de 1978 marca o início da vida literária de Cuti, ao menos se considerarmos as produções individuais em livros de literatura. Ao longo de mais de 4 décadas de produção, o autor publicou as seguintes obras: Poemas da carapinha (1978); Batuque de tocaia (1982); Suspensão (1983); Flash crioulo sobre o sangue e o sonho (1987); A pelada peluda no largo da bola (1988); Dois nós na noite e outras peças de teatro (1991); Negros em contos (1996); Sanga (2002); Negroesia (2007); Contos crespos (2008); Poemaryprosa (2009); Kizomba de vento e nuvem (2013); Contos escolhidos (2016); Tenho medo de monólogo e Uma farsa de dois gumes: peças de teatro negro-brasileiro (2017); Negrhúmus líricos (2017); Axéconchego (2020) e A pupila é preta (2020).

Além da ficção e da poesia, o escritor perpassa o universo da crítica literária, com obras pautadas por refinadas análises. Destaco: Um desafio submerso: “Evocações”, de Cruz e Sousa, e seus aspectos de construção poética (1999); Consciência do impacto nas obras de Cruz e Souza e Lima Barreto (2009); Literatura negro-brasileira (2010); Lima Barreto (2011); e Quem tem medo da palavra negro (2012).

A pupila é preta, obra mais recente do autor, é composta por 22 contos de extensão variada. Alguns curtos, outros maiores, cada qual sustenta com rigor característico o ritmo da narrativa. A edição, diga-se de passagem, é bem feita pela editora Malê, num papel de boa qualidade, capa bem desenhada e mancha gráfica confortável aos olhos.

O título já anuncia amplas possibilidades de compreensão da realidade por um olhar identitariamente negro. Os mecanismos de funcionamento da visão humana dão o tom dos temas abordados pelos textos do livro aqui em questão. Estes, por sua vez, transitam entre os domínios do insólito, do trágico e do cômico.

Ao observarmos qualquer objeto, a imagem dele passa pela córnea e chega até a íris, estrutura responsável por regular a quantidade de luz que será recebida pela pupila. A pupila é uma pequena abertura arredondada, bem no meio do olho humano. Quanto maior a pupila, maior quantidade de luz entra no olho. Em seguida, é focada na retina. Quanto mais dilatada, mais sensível a pupila se torna ao ambiente externo. Após a pupila, a imagem chega até o cristalino.

O olho humano funciona como uma lente convexa. Sendo assim, a imagem que se forma nele é invertida em relação à realidade. Cabe ao cérebro converter a imagem para a posição correta.

A pupila, no livro de Cuti, opera como dispositivo de entrada e saída de luz, dilatação ou contração do olhar do autor para realidade de que se nutre sua escrita literária. A cor da visão, aqui, é indubitavelmente afroidentificada. A pupila ainda sugere o filtro por meio do qual o autor percebe a realidade, inverte-a, e a reconfigura por meio de personagens e situações em que se nota o protagonismo da pele escura. O contraste de visão proposto pelo autor tem como alvo as imagens de negros na tradição literária brasileira. Seria repetitivo apontar estereótipos já conhecidos por nós. De maneira inversa, portanto, Cuti trabalha o “gostar-se negro”, tão defendido em seus textos, por meio de situações em que o negro é o paradigma da trama.

Como gênero, o conto possui duas histórias – a aparente e a profunda. Cuti enxerga e explora situações verossimilhantes envolvendo seus irmãos de cor. A representatividade positiva é, ao meu ver, a luz lançada a partir da pupila autoral, cuja imagem inverte a forma como vemos a nossa literatura.

O leitor incauto poderia imaginar em A pupila é preta um conjunto de textos militantes. Contudo, seria mais uma imagem a ser invertida pelo pretume da pupila de Cuti. As personagens aqui são tomadas em suas dimensões humanas, embora a pele escura seja um detalhe decisivo.

O conto “Abraço no espelho”, por exemplo, traz elementos insólitos que garantem leveza na leitura, sem perder a contundência da história de fundo: o dilema do alisamento (ou não) do cabelo crespo. Esse dilema é vivenciado por Delinda, jovem integrante da Ala das Guerreiras, da Escola de Samba Unidos da Africanidade. A referida ala é marcada por posicionamentos militantes e desfiles contando com irretocáveis blacks naturais. Contudo, Delinda precisa trabalhar para ajudar no sustento da casa. Ela aguarda uma entrevista de emprego e, advertida pela mãe, alisa o cabelo. Ao fim da narrativa, Delinda é surpreendida por um entrevistador muito diferente da imagem que ela criara na cabeça: “traços de jovialidade presentes em sua fisionomia, tinha a pele escura, nariz largo e cabelos trançados que exibiam vários caminhos brilhantes” (p. 19). Assim, a verdadeira imagem de Delinda se vê refletida na pupila do entrevistador/empresário. A protagonista volta para casa, desfaz-se do alisamento e toma de empréstimo a cabelereira de Leandro, seu namorado, para seguir na avenida “voando igual a um beija-flor” (p. 20).

O conto “Suicídio” discute um trágico tema, infelizmente cotidiano na realidade brasileira:  a violência. E, mais especificamente, o ódio gratuito ao outro e a si mesmo. Galeno, homossexual não assumido, após lutar contra sua natureza e, adiante na narrativa, “trajando terno e gravata, cabelo bem cortado bem baixo” (p. 99) esfaqueia Luciano, companheiro de Lauro. O fato chama a atenção porque Lauro é irmão de Galeno. Galeno derrubou seu ódio em lâminas ao encontrar Luciano saindo da Parada LGBT. A narrativa se encerra com Galeno preso e aparentemente sem remorso, “algemado junto a outros dois agressores, todos com cabeças raspadas e vestidos de verde e amarelo” (p. 100).

O conto “Incompatibilidade” focaliza Gilberto, encarregado em uma empresa de engenharia. Ele está iniciando o período de férias, quando recebe a notícia de que Marcos Santana será o novo gerente responsável pela equipe de que Gilberto faz parte. Este se surpreende ao reconhecer em Marcos a “amizade” de infância, não sem algum despeito pela condição superior do amigo. Surpreso com o reencontro, Marcos promete visita a Gilberto. E cumpre a promessa. Por sua vez, incomodado com a visita de uma pessoa por quem Gilberto não nutria simpatia, Gilberto avisa seu filho de que não estaria em casa para ninguém. Marcos, ao chegar ao portão de Gilberto, recebe do pequeno filho do colega de trabalho a seguinte mensagem: “o meu pai mandou dizer que não tá, que saiu e só volta à noite” (p. 37). A comicidade do ato encerra a curta narrativa.

Amparado pelo filtro da retina preta que enxerga e constrói as narrativas, Cuti oferece ao leitor farto passeio pelo universo literário em que o negro é sujeito em suas mais diversas formas de representação. Longe dos estereótipos tão recorrentes na tradição ficcional de nosso país, A pupila é preta convida o leitor a um deslocamento de percepção. Afinal, luz demais, passando pela pupila, pode dificultar a visão. Luz de menos, passando pela pupila, impede a imagem do que há por fora de quem vê.

Belo Horizonte, março de 2021.

Referência

CUTI. A pupila é preta. Rio de Janeiro: Malê, 2020. 108p.


* Luiz Henrique Oliveira é Doutor em Letras (Literatura Comparada e Teoria da Literatura), pela UFMG e professor do CEFET-MG, campus Belo Horizonte. É autor, entre outros, de Poéticas negras – representações do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e de Negrismo – percursos e configurações em romances brasileiros do século XX,1928-1984 (2014). É também coautor, entre outros, de Literatura Afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed. 2019). E coorganizador de Edição e crítica (2018). Coordena o projeto História editorial da literatura afro-brasileira: romance, conto, poesia e não-ficção, vinculado ao GIECE – CEFET-MG.

Texto para download