Gosto de amora, gosto de memória

 Aline Alves Arruda*

 

Aquela fruta preta
como a gente,
doce
como minha vó Dita
e cheia
de bolinha
feito a cara
do meu irmão mais velho
em nossa casa.
Que meu pai
dizia que o nome
era feminino
de amor

Mário Medeiros

 

Após a dedicatória nas primeiras páginas de Gosto de Amora, Mário Medeiros cita como epígrafe um trecho de País sem chapéu, do escritor haitiano-canadense Dany Laferrière. No excerto, a frase “Eles estão aqui, eu sei, estão todos aqui me olhando trabalhar neste livro” (MEDEIROS, 2019, p.2) já nos dão a dimensão da escrita como lugar de memória coletiva que encontraremos.

Os 15 contos do primeiro livro publicado (em 2019) pelo autor e professor da Unicamp, trazem um ponto de vista afro-brasileiro muito marcado. Os protagonistas das histórias são meninos e homens negros moradores de periferia. São trabalhadores que vivem uma vida dura, em que dilemas são cotidianos e o racismo estrutural os acompanha bem de perto.

Mário Medeiros transita entre a escrita acadêmica e literária. Ambas são premiadas e o destacam como um grande intelectual e escritor brasileiro. Seu trabalho gerou em 2013 o Prêmio para Jovens Cientistas Sociais da Língua Portuguesa; sua tese virou o livro A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (2013), o qual foi indicado para o prêmio Jabuti em 2014 na Categoria Ciências Humanas. O Jabuti deste 2020 reencontra o autor, desta vez escritor de literatura, com Gosto de Amora. O livro foi finalista do prêmio literário mais tradicional do Brasil. 

Dividido em duas partes, os contos do livro de Medeiros estão entre “Histórias de Meninos” e “Homem em Janeiro”. Na primeira parte, contos com personagens meninos nos narram a difícil existência nas periferias, favelas ou ruas. Histórias tocantes e reais envolvem o leitor, como a de Rubi, no conto “Fábrica de balas”, que “era preto, e dele só se podia esperar que visse cadáver na porta de casa de manhã, ou que ouvisse tiro no meio da noite” (p.10). A descrição já nos faz indagar o título do conto, que ambiguamente, nos leva para o mundo do trabalho precoce, de meninos negros moradores de favelas que às cinco e quarenta da manhã cortam o asfalto fétido para trabalhar numa fábrica de balas doces que eles não podem comprar.

A escola é ambiente narrado sob o ponto de vista de menino negro em “A estrada da mochila” e “A exposição do Urso Panda”. No primeiro, a “mãe gigante” do narrador o arrasta insistente para a escola. Imagens poéticas da aglomeração de mães na porta do colégio nos são descritas, assim como o entusiasmo e a esperança de que os filhos não repitam a vida difícil que elas levam. No segundo, o cruel bullying, tão comum no cenário escolar, é narrado de forma certeira. No caso do narrador, acrescido do racismo insolente:

Eu sou preto demais, gordo demais, lento demais, delicado demais, feio demais. Eu sou o cara a ser zoado por qualquer um. Mesmo por outro demais como eu, mas com algo a menos. Geralmente a cor. Quando eu reajo, apanho mais. Quando eu bato e machuco, dizem que não sei a minha força, que não entendi bem, quê quié isso. Eu vou para a diretoria (p. 51, grifo meu).

O “urso panda” do título é o apelido que o narrador ganha, epíteto de bicho em extinção porque “não pegava ninguém”. A crueldade dos colegas continua através de uma menina preta novata e uma armação que envolve o narrador, a garota e o racismo contra os dois.

A segunda parte, “Homem em janeiro”, começa com “Menino a caminho”, que traz uma narrativa de memória afetiva masculina muito marcante, a partir da voz de um narrador adulto que volta à infância para contar sua formação, seu caminho de menino pobre e negro que vira doutor: “O primeiro doutor da família. O primeiro doutor negro. O primeiro da família na faculdade” (p.76). Assim como outros textos do livro, neste temos muitos elementos intertextuais da cultura negra como Basquiat, Itamar Assumpção, entre outros. A morte é um tema abordado neste conto e em outros. Aparece sem tabus, como algo inevitável, mas de forma crítica ao mesmo tempo, como a nos lembrar que apesar de banalizada, no contexto racial ela muitas vezes ganha outra conotação e aparece de forma violenta e injusta.

O conto que dá título ao livro de Mário Medeiros é um ótimo resumo do que o livro nos traz: uma linguagem poética, intensa e fluida, preta como a fruta tema, contos envoltos em memória afro, como mostra a epígrafe desta resenha. As personagens femininas como a vó Diva citada no trecho são gigantes e investidas da autoridade que merecem, assim como os personagens masculinos negros,  a quem tantas vezes foi negada essa representação e que na literatura deste autor transbordam afeto e humanidade.

Belo Horizonte, dezembro de 2020.

Referência

MEDEIROS, Mário. Gosto de amora. Rio de Janeiro: Malê, 2019.

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*Aline Alves Arruda é Doutora em Letras, Literatura Brasileira, pela UFMG e Mestre em Teoria da Literatura pela mesma Instituição. É Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – IFMG, Campus Betim. É pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, NEIA, na UFMG. É coautora de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (Pallas, 2019). 

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