Brasas acesas, avermelhadas e vibrantes: corpos negros em movimento

Prefácio

Mirian Cristina dos Santos*

Para mim, o convite para prefaciar um livro, ainda mais escrito por uma mulher negra, é um grande presente – acolhido com honra e emoção –, uma vez que estar na porta de entrada de um livro, o ápice do universo das letras, que há muito nos foi negado, constitui-se também ser fio de aço de uma rede de resistência e de insubordinação. Conforme afirmado pela escritora Conceição Evaristo, em uma entrevista à Carta Capital em 2017, escrever e publicar para as mulheres negras é um ato político, é em consonância com a urgência desse agenciamento que saúdo o nascimento da coletânea de contos Filha do Fogo: 12 contos de amor e cura, de Elizandra Souza.

Conheci a jovem escritora articulando projetos que envolvem saraus e militância feminina nas redes sociais. No entanto, foi através de seu potente poema “Em legítima defesa”, fio gerador de sua coletânea poética Águas da Cabaça (2012), que tive contato com o fazer literário de Elizandra Souza. Nesse poema, a escritora e militante denuncia a recorrente violência contra a mulher, autorizada por uma sociedade machista e sexista: E as pilhas de denúncias são atendidas?/ Que a notícia virou novela e impunidade/ É mulher morta nos quatro cantos da cidade.

Dessa forma, tecer reflexões sobre a produção de Elizandra obrigatoriamente indica perpassar o caminho da denúncia de desigualdades latentes: de gênero, de raça e de classe, e principalmente a busca urgente por mudanças. E é no ritmo potente de um fogo que se alastra, alimentando chamas incontroláveis que surge Filha do Fogo, equilibrando denúncia e celebração: me vi refletida nas chamas junto da imagem de vozinha e ali renasci filha do fogo.

Na tessitura dessa flama, há inúmeras mulheres negras. De forma que a presença recorrente de avós e de mães – as mais velhas que nos habitam – traz ecos coloridos de uma ancestralidade negra requerida e celebrada:

Eu ficava ouvindo a minha vozinha contar histórias para minha mãe, uma delas que estava guardando dinheiro para comprar um dente de ouro, falavam das minhas tias, que uma delas estava com os peitos grandes, que na certa, era bucho cheio novamente. Algumas decisões, se deveriam comprar mais bois ou guardar o dinheiro para uma precisão. Também ensinava os banhos de ervas que precisava fazer para acalmar as crianças (SOUZA, 2020, p. 18-19).

É a partir de encontros de mulheres como esses que Elizandra Souza alinha memórias e heranças ancestrais, no entrecruzamento de ritos e de rituais, que nem sempre estão ligados através de laços consanguíneos.

Nesse processo, no lapidar de nossos sentidos, nos contos há muito barulho, cheiros, gostos e sabores para nos lembrar de uma vida a pulsar. São as águas a banhar, o vento a soprar, óleos a perfumar, o caruru a degustar, atabaques e tambores a escutar, no encalço da movência de muitos corpos. Tudo emaranhado em processos de curas e nas urgências do ato inenarrável de viver, semelhante à personagem Zaji, de “Disritmia”: Ali, aos trinta anos, ela lançava sorrisos aos quatro ventos, permitindo ser guiada pela sonoridade dos tambores, pelo levitar das saias floridas, pelo encontro dos pés com o barro, o sopro da vida.

Também ateando luz e cores nessa mesma labareda, corpos negros potencializam o rojão nas imagens recorrentes de negras empoderadas que cintilam nos nossos olhos o amanhecer de um futuro outro: são crianças, jovens e adultos a viver. Assim, sendo lenha potente na fogueira de Filha do Fogo, também há um turbilhão constante de referências seminais a símbolos da negritude: livros, intelectuais, cultura, músicas, comidas, ditos populares, rituais, curandeiras, terreiros, religiões de matrizes africanas e muitos nomes próprios – reclamando o direito intrínseco de viver.  

Dessa forma, sem idealizações, uma galeria de mulheres – Inã, Zahra, Aziza, Ziana, Jasira, Zael, Dara – alinha-se em uma univocidade feminina ao denunciar racismo e machismo, também dentro da comunidade negra, conforme narrado no conto “Com Tradição”. Nesse encontro de forças entrecruzadas, ainda é possível ouvir ecos de silêncios também sustentando vozes múltiplas no estilhaçar de nossas correntes: essa minha educação que me fez permanecer calada por tantos anos. Por agora, alinham-se temporalidades ao interromper pavios opressores, e (re)acende a chama de um futuro outro, navegando nas letras, extraindo das entrelinhas seu próprio gingado.

Sem sentimentalismos, aliando tessitura poética e fruição, um corpo negro feminino se (re)apresenta dignamente humano como pano de fundo de Filha do Fogo, de Elizandra Souza. E nessa aparição, compartilha e acorda em nós rastros sutis do incapturável, desnudando múltiplas possibilidades de sentir: os sons, os gostos, os movimentos, os passos... Resíduos incontroláveis que sustentam forças e nos movem ao encontro do não-vivido. Nesse processo, mulheres negras emanam autoamor, protagonismo, empoderamento, certezas e coragem: Fênix negras a alçar novos voos! 

Filha do Fogo nasce e queima: brasas acesas, avermelhadas e vibrantes! Entre nesta labareda, receba luminescência e calor, é luz a nos guiar!

 

Referência

SOUZA, Elisandra. Filha do fogo: 12 contos de amor e cura. São Paulo: MJIBA Comunicação, Produção e Literatura Negra, 2020.


*Mirian Cristina dos Santos é Doutora em Letras-Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Professora Adjunta da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Autora do livro Intelectuais negras: prosa negro-brasileira contemporânea (2018).

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