Atualidade e importância de Negro Disfarce

de Oswaldo de Camargo

Thiara Vasconcelos de Filippo*

 

 

– O que você procura 
no meio de tanta gente, 
Benedito?
– Eu? O que procuro? 
Sinto-me bem, gosto, eles são bons...
– São bons... 
Conhece Jacob Wassermann?
Disse-lhe que não, 
mas gostaria de conhecer. 
É músico, poeta, 
quem foi esse Jacob Wassermann?
– Romancista. 
Há enorme semelhança entre o destino de 
Gaspar Hauser, 
o personagem do romance dele 
mais conhecido, e o de vocês...
– Vocês... 
Você diz negros. 
Então você não se considera 
um dos nossos, Deodato? 

Oswaldo de Camargo

 

O diálogo entre Benedito e Deodato, personagens centrais de Negro Disfarce (2020), de Oswaldo de Camargo, serve para ilustrar uma temática muito presente na literatura oswaldiana e que se sobressai nessa narrativa: as consequências do racismo e da escravidão – enquanto herança – na constituição do sujeito. 

Ao contar a história desses personagens, o escritor coloca o leitor num turbilhão de emoções inusitadas. O que pensar sobre Benedito, “herdeiro da miséria de um preto apanhador de café nascido doze anos após a abolição” (p. 36)? O que pensar sobre Deodato, rapaz “indevassável” (p. 32), cuja vida “escondia-se sob sombras” (p. 37)?

A história de Negro Disfarce é narrada por Benedito, “passados mais de sessenta anos” (p. 72), a relembrar um período significativo da própria vida, os “dias de entusiasmo e luzes” (p. 13) da juventude, o empenho por obter reconhecimento e ascender socialmente. Benedito, quando jovem, é um rapaz deslumbrado com o movimento negro paulistano, “aberto às palavras dos grandes negros” (p. 13) que conhece Deodato e suas ideias perturbadoras. 

Ao encontrar Deodato, uma mudança se instala em Benedito, ele se sente ferido: “Montadas sobre minha alegria, Deodato e sua amargura” (p. 27). Inquieta-se com a sua “dúbia atitude” (p. 33). Em seguida, parte para Bragança Paulista, buscando, no passado de Deodato, as razões de sua “amargura irremediável” (p. 37) e passa a conhecer a sua história de vida, marcada por algumas tragédias. Nesse momento, quando Benedito está em Bragança, Negro Disfarce recobre-se ainda mais de uma atmosfera de suspense e ambiguidade. A história de Deodato, contada por Nhã Flor, tem muitas lacunas, inconclusões. 

A história comovente de Benedito e Deodato convive com passagens pessoais, das vivências do autor, e, ao mesmo tempo, histórias da realidade brasileira pós-abolição, com referências à Associação Cultural do Negro, à Frente Negra Brasileira, à Imprensa Negra e a outros espaços de sociabilidade e resistência. Há também menções a personalidades relevantes da comunidade negra, como Carlos de Assumpção, por exemplo, que tem transcrito um trecho de seu poema “Protesto”. 

Aliás, a abertura de Negro Disfarce reproduz o manifesto comemorativo do 70° aniversário da abolição da escravatura no Brasil, lançado em 1958. Isso tudo explica por que o livro se situa no limiar entre autoficção e documento, funcionando como uma espécie de retrato da condição social e existencial do negro brasileiro.

Outro aspecto que é necessário destacar de Negro Disfarce é o papel indispensável da memória e do passado em seu caráter inseputável para a construção identitária. O próprio autor considera-se um memorialista, um guardador de lembranças, que tenta, com suas memórias, tirar do esquecimento pessoas que não são faladas, anônimas. Vejamos outro diálogo entre Deodato e Benedito:

O que fez foi levantar-se. Era um moço que estava ali, mas disfarçado de um outro, confundindo-me. 
De pé, então, indagou:
– Conhece “Emparedado”, de Cruz e Sousa?
– Li, não entendi bem.
– Nem ele conseguiria explicar... Há os que são negros por herança, há os que perderam essa herança; eu perdi. (p. 32).

Deodato considera-se um deserdado, e é retratado como um solitário, sem condições de se imiscuir com naturalidade no meio negro. O autor, assim, demonstra o caráter violento da assimilação que estraçalha interiormente o indivíduo. Benedito, por sua vez, representa justamente o enfrentamento ao esfacelamento identitário, ao desenraizamento e à alienação.

Ao publicar Negro Disfarce, o escritor, mais uma vez, nos brinda com um texto de valor inestimável, com o domínio técnico de quem já atravessou um longo caminho literário. As suas publicações vão de poesia (Um homem tenta ser anjo, de 1959; 15 Poemas Negros, de 1961; O estranho, de 1984; Luz & breu, de 2017), conto (O carro do êxito, de 1972), novela (A descoberta do frio, de 1978 e republicada em 2011; Oboé, de 2014), autobiografia (Raiz de um negro brasileiro, de 2015) a estudos críticos sobre literatura negra brasileira e sobre escritores negros (O negro escrito, de 1987; Solano Trindade, poeta do povo, de 2009; Lino Guedes, seu tempo e seu perfil, de 2016; Negro drama: ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade, de 2018). Oswaldo de Camargo organizou, ainda, A razão da chama: antologia de poetas negros brasileiros (1986).

Vale dizer que Negro Disfarce é resultado de uma reformulação (um “retoque”, conforme o autor) do texto “Deodato”, apêndice do livro de contos O carro do êxito (1972). Segundo o autor, nesse “retoque”, ele deu mais densidade ao texto e uma maior profundidade aos personagens. Vale dizer também que esse primeiro texto, “Deodato”, foi objeto de apreciação crítica de David Brookshaw em Raça & cor na literatura brasileira e foi analisado por mim no verbete “Benedito” do Dicionário de personagens afro-brasileiros, organizado por Licia Soares de Souza. 

E, quem sabe se como mais uma das obras do acaso, Negro Disfarce vem a lume exatamente em 2020, atestando a contemporaneidade da narrativa, de sua temática, de suas provocações. O seu lançamento, feito de forma virtual no dia 17 de novembro de 2020, um evento promovido pela Ciclo Contínuo Editorial em parceria com o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) da UnB, contou com as presenças de Eduardo de Assis Duarte, de Ivair Alves dos Santos, de Thiara Vasconcelos de Filippo, como debatedores, e de Marcos Moreira na mediação. Eduardo Duarte pôs em relevo as múltiplas facetas de Oswaldo: além de poeta, é um crítico que também faz história da literatura, como os escritores pertencentes à tradição moderna. Ivair Alves destacou o seu papel de resguardar a memória da Imprensa Negra de S. Paulo, de registrar uma época e de contribuir para “manter vivo o interesse da literatura no seio da comunidade negra”. Thiara Filippo avaliou Negro Disfarce como fundamental para entender a literatura oswaldiana por abordar o desenraizamento, o esfacelamento identitário, e ponderou sobre a dimensão de atualidade da obra. Marcos Moreira mencionou a herança traumática da escravidão na construção de subjetividades como uma temática presente em Negro Disfarce. Oswaldo de Camargo falou sobre racismo e indiferença, sobre Negro Disfarce – um livro-testemunho, e sobre a literatura como esperança e inquietação. O link para o evento: https://youtu.be/4LeD76x1yJU.

Pouco tempo depois, em 2 de dezembro de 2020, no programa “No coração da Tormenta”, com Alencar Ferreira, Bruno Baronetti, Fábio Adorno, Oswaldo de Camargo respondeu questões acerca dessa nova produção e falou sobre momentos marcantes de sua vida, como menino órfão e pobre em Bragança Paulista, como interno de instituições católicas quando aprendeu latim e canto gregoriano, como organista  na Igreja do Rosário dos Homens Pretos, como membro da Associação Cultural do Negro, quando conheceu figuras importantes do movimento negro paulistano, da Frente Negra e muitas outras estórias que valem a pena conhecer. O programa “No coração da Tormenta” entrevistando Oswaldo de Camargo está disponível no endereço: https://youtu.be/uKTV-SaTj_A.

Não se pode deixar de mencionar as belíssimas ilustrações feitas por João Pinheiro em Negro Disfarce e o prefácio minucioso e preciso da obra feito pelo professor Petrônio Domingues. Outro ponto necessário registrar aqui é a vitalidade do escritor e sua disposição para ir “falar a respeito desse último trabalho” onde for convidado.

Salvador, 7 de dezembro de 2020.

Referências

BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

CAMARGO, Oswaldo de. Negro Disfarce. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2020.

Lançamento Nacional “Negro Disfarce” de Oswaldo de Camargo. Disponível em: <https://youtu.be/4LeD76x1yJU>.

Live “Negro Disfarce” – a obra e o pensamento de Oswaldo de Camargo. “No Coração da Tormenta”. Disponível em: <https://youtu.be/uKTV-SaTj_A>.

SOUZA, Licia Soares de (org.). Dicionário de personagens afro-brasileiros. Salvador: Quarteto, 2009.

_____________________________________

 * Thiara Vasconcelos de Filippo é professora, Mestre em Letras pela UFMG e autora de No fundo profundo do mundo, Estela e Betelgeuse se encontram (No-fundo-profundo-do-mundo-Estela-e-Betelgeuse-se-encontram.doc (live.com infantojuvenil) e de Imagens poéticas: o negro, a África e a noite na literatura de Oswaldo de Camargo (Dissertação, UFMG).

Texto para download