O oráculo de Aidil

Rita Santana*

 

Como leitora, deparo-me diante de uma perspectiva muito específica, pois que a abordagem é feita por uma narradora que constrói uma intimidade muito intrínseca com as suas personagens. Adentraremos nos cômodos de alguns lares, mas principalmente nos meandros e enigmas que governam as ações e o pensamento de tantas mulheres. Revelações sobre o cotidiano e os desejos recônditos que assaltam as personagens são feitas de maneira que a nossa empatia é acionada. A possibilidade de conhecer o outro é sempre assustadora para os mais precavidos, receosos, pois o outro nos ameaça; é quase sempre um exótico, perigoso, estranho. Aqui, mergulharemos na alteridade dessas mulheres através das mãos de uma narradora que nos autoriza a participar da subjetividade de sua criação. Haverá cumplicidade, irmandade e deslocamentos necessários para o aprendizado; um abrir de portas para a percepção do outro, para sentirmos o que tantas mulheres desse Brasil sentem e vivem, ou seja, durante a leitura, seremos um pouco as personagens de Aidil.

A sua linguagem traz arranjos, construções e criações pertinentes aos falantes da língua que – distantes do engessamento formal da norma padrão – dispuseram de mecanismos de recriação da linguagem muito mais livres, mais criativos e perenes. Aidil faz uso de neologismos típicos da criatividade linguística do povo, portanto, deparamo-nos com a poesia da oralidade em sua escrita. Traz para o seu livro esse falar descontraído e - como escritora – manipula, tece suas próprias ferramentas de poeticidade, deleite, ludicidade e traquejo poético/literário com o texto que produz. A linguagem se torna profundamente lírica em muitos momentos, como em: “recolher da intenção de ir à reza.” Será recorrente, durante a leitura, determo-nos em algumas frases/versos que nos despertam o prazer estético, a fruição do inusitado das imagens, das construções. Uma poética oriunda da escuta e do uso de uma variedade linguística popular que foi talhada, desde nossos primórdios, no contato do negro com o território brasileiro, e que atravessa o tempo até aqui, onde estamos em permanente transformação do que um dia foi a Língua lusitana em solo brasileiro, onde indígenas e negros deram o tom inusitado ao idioma. Logo, a escritora faz uma apropriação muitíssimo particular da Língua, trazendo-nos uma sonoridade sintática que fora forjada durante esse processo de trânsitos da experiência diaspórica, e se transfigurou também em resistência, em consagração do ritmo, em rebelião da linguagem, revolta e transmutação dos códigos.

Aidil tem a consciência de que é uma escritora em atividade e de que a sua voz carrega muitas vozes, pois representa mulheres que foram secularmente silenciadas e que ainda são preservadas na invisibilidade. A contista traz em suas narrativas expressões pertinentes ao universo das estratégias de resistência, que nos remetem a códigos e subterfúgios da linguagem para serem decifrados apenas pelos iniciados. De alguma forma somos iniciados, através da sua escrita, em mistérios, em milagres, na sacralidade cotidiana das mulheres negras e pobres do Recôncavo, da Bahia, da América Latina e que, decerto, encontrará eco em terras d’África.

Aidil resgatará vidas de mulheres olvidadas, perdidas no imaginário popular do Brasil. Os arquétipos femininos são tramas que se repetem em outras terras, em outros tempos e são eles que desfilarão como personagens, através da recriação de mulheres iniciadas no Candomblé que utilizam uma língua-território, onde a demarcação é feita pela história, por mecanismos constantes de sobrevivência, por rios e ritos subterrâneos, onde somente aqueles que têm pertencimento e autorização se banham. O imaginário coletivo brasileiro é povoado por personagens párias, marginalizadas, com histórias dramáticas. Teremos aqui, a oportunidade de conhecer algumas dessas mulheres em seu cotidiano, vivendo seus conflitos existenciais. São mulheres afortunadas em vivências, de muitos saberes, muitos conhecimentos, ricas em experiências, em rebelião. A escritora, generosamente, nos oferenda alguns ritos da cerimônia e apreciamos o mistério como testemunhas, como partícipes.

Há ainda o resgate da nossa própria história profunda, fundamental. E é de fundamentos a sua narrativa; fundamentos religiosos, fundamentos da Psique humana. Histórias arquivadas, soterradas à espera de vozes que as representem e de olhos que as leiam. Eis Aidil, num resgate profundo de nós mesmas, do Brasil e da nossa Identidade. A escrita de mulheres não é um registro que interesse apenas às pessoas que se identificam como mulheres, mas deve, cada vez mais e urgentemente, interessar aos cidadãos e cidadãs que necessitam compreender o mundo e a sociedade em que vivemos, então, o aprendizado do outro se faz necessário. A literatura nos ensinou tanto sobre o universo masculino, que talvez, por isso mesmo, tenhamos um entendimento do outro muito mais aguçado. Conhecer a história e a sociedade através da perspectiva de escritoras e suas representações oportuniza a exposição de muitas das nossas inquietações, anseios e críticas que fazemos ao universo construído para os homens e pelos homens e que, até aqui, caracterizamos como naturais, numa atitude essencialista que devemos desconstruir, se desejarmos nos aproximar das alteridades, se desejarmos entender a idiossincrasia alheia, se desejarmos uma sociedade mais bonita, mais justa, onde a pluralidade étnica, social e de gêneros tenham espaço para a sua expressão. A invisibilidade e a mudez histórica dessas mulheres encontram em Aidil uma expressão onde o labor literário e esse resgate profundo se irmanam.

Arqueóloga de um imaginário disperso no Tempo, a autora nos traz pedaços de porcelanas, cerâmicas, objetos, dedais, agulhas, tecidos, vestidos, vestígios, fragmentos de pele, vidas que estão soterradas por uma tradição literária, por uma história de cânones masculinos, brancos e de uma elite social brasileira. A autora escava a nossa memória e subverte um padrão perverso de esquecimento, de uma sociedade que aniquila e rechaça as diferenças. Promove escavações no imaginário popular daqueles casos que ficam na lembrança coletiva e encontram voz e vida nessas narrativas. Contar passa a ser promover escavações arqueológicas a fim de preservar a memória. A estética é composta, assim, por elementos de uma tradição oral riquíssima, que se coaduna à tradição literária e, juntas, produzem imagens, sinais, marcas, fósseis de nosso passado ancestral, cujo lirismo evidencia-se durante a leitura. Antropologicamente, somos guiados por um universo de Mulheres Sagradas. E o sagrado revela-se através dos sonhos que tanto nos acometem, criando pontes entre a vida e o inconsciente. Uma espécie de realismo fantástico nos tomará nessas linhas, mas com características muito próprias de uma narrativa feita por uma mulher, negra, das camadas populares e baiana. Uma mulher brasileira. A trama construída pela contista tem como matéria-prima a costura de vidas que se interligam e se misturam, como também se repetem. Há uma aparente simplicidade narrativa, cuja elaboração semântica é muito mais complexa. Tudo está no não dito. A contista nos deixa uma cadeira vazia, agulhas, linhas e uma imensidão de conteúdos preenchendo o nosso universo interior. Uma capacidade de deixar pensamentos e construções para a imaginação do leitor, da leitora. Somos coautores reais do processo de construção da sua narrativa. Estamos imersas em sua criação, somos personagens do seu conto.

Ao publicar suas Mulheres Sagradas, Aidil encerra um ato de resistência, confronto e desafio a uma sociedade brasileira extremamente racista e canônica, que comumente desconsidera a Literatura feita por grupos sociais que foram excluídos dos bens culturais brasileiros, durante e após a nossa história de escravidão. Aidil inscreve-se e escreve o seu nome entre tantas de nós que labutamos com a escrita e resistimos à invisibilidade, ao anonimato. Entra nas trincheiras onde mulheres escrevem, onde mulheres negras escrevem, onde mulheres negras e pobres escrevem – terreno de muitas Carolinas, Conceições. É o front da resistência negra brasileira, onde, apesar da indiferença e da insistência com a padronização cristalizada das convenções, escrevemos.

Encontramo-nos num lugar de rebelião, religiosidade negra, preservação de valores africanos, tradição que se concilia com o mistério das plantas, os valores religiosos. A narradora revela que os destinos estão ligados às tradições, aos olhares das divindades africanas. Naquela comunidade quilombola, homens, mulheres, jovens, começam a deslocar o olhar para a cidade, a outra cidade afastada dessa cultura de cuidados, rituais. A denúncia é precisa: lá, serão meros serviçais, sem a majestade, o respeito e a dignidade que encontram no terreiro, no terreno, no território de resistência. Rainhas, lá, serão mendigas, enlouquecerão. E olhamos, nós leitoras, para a cidade e o tratamento que ela dispensa aos negros e às negras. Há uma fronteira invisível aos olhos de quem não faz parte daquela comunidade. Atravessar a fronteira de forma desavisada, sem que permaneça ali, em suas raízes, é irromper os limites e desafiar o próprio destino. Do lado de lá, ninguém se importava com a violência dos homens sobre as mulheres, antes vestidas de nobreza e que agora estão expostas à indiferença. Assim é o olhar sagrado de Aidil que tem percepções muito finas sobre o universo dos mistérios, sobre os limites do território. Há fronteiras, muros e ela nos sinaliza, nos alerta.

A solidão das mulheres negras é tecida com a sapiência de quem a vivenciou e conviveu com mulheres solitárias. Teremos um mergulho orgânico, profundo e verdadeiro de quem conhece e sentiu de perto sua agonia, suas angústias, seus dilemas mais sutis. Não é a solidão postiça de quem experimenta o artefato literário para explorar a provável solidão alheia, apropriando-se artificialmente de uma dor que não faz parte do seu próprio umbigo. Daí a organicidade e a profundidade dessas narrativas, onde não é um olhar estrangeiro discorrendo sobre terras nunca percorridas e mares nunca dantes navegados. Singrar os sulcos da solidão feminina negra é tarefa assumida pela escritora com a audácia de quem conhece os descaminhos. É desse lugar que Aidil nos fala: do espaço de uma subjetividade mais próxima com as suas personagens. É preciso o olhar das mulheres negras para revelar sutilezas que só a elas são visíveis, perceptíveis. Daí a importância de que tais poéticas sejam publicadas, escritas e lidas. Sim, Senhores, temos muitas escritoras negras que tecem a representação da solidão da mulher negra com muita propriedade e pertencimento e Aidil é uma delas, uma de nós.

A solidão encontra saída na solidariedade entre mulheres. Daí, uma de suas personagens oferece flores para uma mulher morta, cujo destino também fora a clandestinidade amorosa. Ela era digna daquelas flores. A rebelião silenciosa faz-se através da opção em ofertar suas flores à outra mulher, não ao homem que a amou na obscuridade. Sua rebelião faz-se também através da realização do Desejo. O corpo participa da resistência, subvertendo ordens estabelecidas. O erotismo subverte os dogmas, os padrões. O Desejo está presente em muitas narrativas e é associado à emancipação, ao anseio de liberdade. Os corpos estão vivos e atentos ao contato, ao despertar da libido, portanto, a sedução cobre-se de naturalidade, espontaneidade. O erotismo encontra também em Aidil personagens expostas ao chamamento do Desejo. Aqui, é interessante observar-se a ausência da solidão para mulheres negras que se descobrem, que se despem das expectativas de casamento, de relacionamentos nos moldes brancos, cristãos. Percebemos o valor do casamento para as mulheres negras, mas haverá em suas narrativas o percurso da libertação, da desconstrução das expectativas românticas construídas em nosso imaginário; o terreiro e a religiosidade africana como possibilidade de não solidão, de vida, de descobertas. Loucura e solidão sucumbem à força da ligação entre mulheres.

A autora denuncia a rejeição que as religiões de matriz africana ainda enfrentam no seio das famílias, inclusive negras, devido a uma história de demonização dos rituais, das manifestações culturais e de toda religiosidade do povo negro. Percebemos também a quantidade de histórias em que a emancipação de muitas mulheres está ligada à sua descoberta religiosa nos Terreiros, à condução dos caminhos realizada por seus orixás. Geralmente, outras mulheres são miradas como modelo de alegria, de liberdade e seguidas por personagens oprimidas, amarguradas, enclausuradas em grades de uma cultura judaico-cristã e burguesa que aponta caminhos, algumas vezes, nada libertários para quem tem ligações ancestrais com as divindades do Candomblé.

Há, indubitavelmente, um domínio da narrativa que escapa às projeções do cânone e por isso nos inquieta e nos desestabiliza. A repetição é um dos instrumentos da oralidade para a permanência, perenidade do que é contado, preservação da história. Aidil repete situações, soluções, enredos de uma maneira muito peculiar e orgânica. Aprendemos a paciência, o Tempo que escapa ao Deus Cronos ocidental e encontra-se soberano no tempo dos Orixás, dos mistérios insondáveis de um povo cuja cultura precisamos percorrer, e Aidil nos guia durante esse percurso. Aprendemos lições que talvez nunca saibamos ao certo quais são, mas as sentimos numa identificação muito além do físico ou da racionalidade ortodoxa. Aidil nos conduz a profundidades insondáveis, mas que existem em nós, principalmente em nós, mulheres negras. O motivo que se repete em cada conto compõe esta mandala de palavras e arquétipos que se organizam dentro da narradora, dentro de nós, leitoras, e dentro do próprio Universo.

Vê-se a formação repressiva das mães para criarem suas filhas longe do Candomblé, como se fossem protegê-las da sociedade racista e preconceituosa que as cercam. Tentam mantê-las nos padrões de uma sociedade aprisionada que não condiz com nossa história de liberdade, com a nossa ancestralidade. Mulheres que tentam afastar suas filhas de sua herança religiosa, mas os Orixás, as divindades negras encontram formas para que o encontro aconteça. O bordado traz o inconsciente, a religiosidade que há nas personagens. O bordado expressa e revela o conhecimento sobre a religiosidade africana. Costurar as roupas dos Orixás e bordar o Terreiro é caminhar até a liberdade. É o inconsciente manifestando-se para expandir e libertar o Desejo, num processo de cura e descoberta. Mulheres participam do processo emancipatório como exemplos de felicidade, alegria, liberdade. São mulheres que costuram a vida de mulheres e formam uma mandala nova, preenchida a cada dia com cores libertárias. As personagens ouvem os atabaques, atendem ao chamado e encontram suas próprias veredas para a libertação.

A visita da morte é tão frequente nos contos que também os nossos mortos começam a esbarrar em nós. Através dessa intimidade com o além, observa-se a construção de um universo pessoal restaurado, religado, harmonioso. Personagens nos são apresentadas, muitas vezes, sem estabilidade emocional e se transformam, após a experiência, muito natural, com os mortos. A partir daí, há libertação, redenção, reencontro consigo mesmas, a completude de um ciclo. Antes desse encontro, há a falta, há a insatisfação e a perturbação. A partir daí, o universo interior fica harmônico, integral. A chave é encontrada. Encontrar com os seus mortos é entender o seu universo interior, é encontrar as chaves psicanalíticas que faltam e são imprescindíveis para a continuidade da vida, do equilíbrio, da alegria. Os mortos estão lá, fazendo a travessia que nos liga por corredores do inconsciente aos nossos ancestrais e à nossa história africana, à nossa própria história, numa terra sonâmbula, numa terceira margem.

Veremos aqui a denúncia do genocídio negro. Denúncia aqui não é apenas uma estratégia de resistência, uma ferramenta para expor os conflitos vivenciados pela gente negra, por nós negros na sociedade brasileira. O registro do drama vivido por tantas mulheres nos parece interno, intrínseco, íntimo, nosso. A escritora nos dá, no seu tecer, um rumo de proximidade, laivo de verdade experimentada, verossímil, mas verossimilhança é termo incapaz de traduzir esta proximidade íntima que a narradora expressa. O tecer, o costurar vidas, os sonhos remendados pela narradora vão deixando por terra nossas expectativas forjadas em experiências de uma literatura branca, judaico-cristã, masculina. Retalhos inauguram uma fragmentação absoluta das vidas, num lugar onde os sonhos e as esperanças povoam os destinos, mas não se tornam fatos, acontecimentos que terão clímax, solução. Não há conclusões nem costuras preconcebidas por nossa expectativa de leitoras – com vícios e hábitos formados no já citado horizonte de expectativa. O descontínuo plana sobre as narrativas, sem soluções, sem desencadeamentos previstos, pois que a vida da gente negra é feita de interrupções, balas perdidas, fotografias interrompidas, destinos soterrados por um racismo que persevera e mata.

Contar é tradição trazida da África. Conta-se que a Exu coube recolher histórias inúmeras do povo para desvendar os mistérios do mundo, dos destinos, das dores. Hoje, Aidil segue a tradição e torna-se a narradora que inaugura o seu Oráculo, portanto, torna-se uma mulher de poder, uma Mulher Sagrada. Que decifremos outros tantos mistérios aqui ainda guardados! Boa leitura!


* Rita Santana é escritora, atriz e educadora. Graduada em Letras, com pós-graduação em História Social e Cultura Afro-brasileira. Como atriz, integra o elenco de Renascer, telenovela exibida pela Rede Globo e do filme Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, em 1995. É autora de: Tramela (2004, contos); Tratado das Veias (2006, poesia) e de Alforrias (2012, poesia).


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