DE RUA – Um livro feito de pessoas reais

 Ariele Santos*

Para a professora, modulou: Eu sonho, sou verso,
s
ou terra, sou sol sentimento aberto.
 Plínio Camillo
2018

O livro De rua, de Júlio Dias e Plínio Camilo, publicado pela Editora Kazuá, reúne 27 contos, alguns deles micro contos, que propiciam tanta intensidade e informação quanto as narrativas maiores presentes no volume. Os autores ficcionalizam suas experiências como educadores de rua, ao narrar histórias de jovens em situação de abandono na metrópole, alvo de indiferença e preconceitos, e que têm suas vidas e vivências apagadas.  

Além de escritor, Júlio Dias é sociólogo, detalhe que aparece em seus contos quando lança um olhar que dignifica os personagens, vítimas das desigualdades que impossibilitam uma condição de vida melhor. Já os leitores de Plínio Camillo acompanham suas incursões pelo universo da infância e da adolescência desde a publicação de O namorado de papai ronca (2012), bem como sobre a condição dos remanescentes de escravizados em Outras vozes, de 2015.

A experiência na rua propiciou aos contistas tomarem contato com a realidade do Outro, que encenam em textos distintos, mas confluentes no recado de que é preciso ver, ouvir e reconhecer a humanidade dos marginalizados que se encontram nas ruas.

No prefácio, José Sérgio Fonseca de Carvalho, professor da Universidade de São Paulo, fala sobre como estes personagens são vistos no dia a dia e apenas a miséria deles é notada. Carvalho os chama de “ninguéns”, pois não se vê um rosto, na correria das ruas essas pessoas podem ser qualquer um ou simplesmente ninguém que seja digno de importância mas, ao serem descritos nos livros, se tornam “alguém”, com um nome e uma história.

A começar pela nomeação, o tratamento dado pelos ficcionistas dignifica os personagens, tratando-os como sujeitos vítimas de histórias de vida ordinárias que, infelizmente, se acumulam pelas ruas do Brasil. A existência destas pessoas ganha um significado, alguém as notou. Os autores dão dignidade e assim retiram estes nomes do silêncio indiferente que segrega os miseráveis.

No conto de Júlio Dias “...Eles também tomam conta de mim” a preocupação em descobrir o nome da personagem é demonstrada, como uma maneira de identificação daquele corpo no mundo que parece não possuir raízes familiares fixas. Em “André Luiz, também de Dias, o nome é repetido validando novamente a existência desse garoto de 18 anos e sua importância. Além destes, em diversos outros contos cujo título é um nome fica evidente a missão de dar devida significação a estes indivíduos, mostrando que estes são seres humanos com histórias dignas de serem contadas e ouvidas.

Plínio Camilo fala sobre drogas, vícios, pobreza, abusos, violência, sexualidade e expõe principalmente como estes fenômenos, considerados temas difíceis de serem tratados, são normais para quem os vivencia todos os dias. No conto “Paulo André, este diálogo entre um educador e o personagem Paulinho mostra claramente a relação natural do garoto com o que é considerado tabu pela sociedade:

VI

Na rua, Paulinho:

–  Sabe tio, quando tenho fome, roubo.
–  Sabe tia, quando como, perco a fome.
– Sabe tio, quando cheiro cola, quero dar.
–  Sabe tia, quando apanho, não choro.
–  Sabe tio, quando corro, chego.
–  Sabe tia, quando fujo, rio.
–  Sabe tio, quando dou, fico feliz.
–  Sabe tia, quando pego, aproveito.
–  Sabe tio, quando fumo, viajo.

                     (CAMILLO, 2018, p. 38-39)

A passagem mostra ainda, como os problemas são enfrentados sem pestanejar e denuncia o único modo que o personagem – e muitas pessoas na vida real – têm para sobreviver. No brevíssimo e intenso “Sueli”, as voltas que a personagem dá para conseguir algo melhor da vida são narradas em ritmo acelerado – num micro conto de 14 linhas que constrói para o leitor uma personagem complexa ao revelar detalhes sobre sua sexualidade, maternidade, romances e ainda, no desfecho, o destino que Sueli teve depois de tantas voltas em sua vida.

A leitura dos contos de Plínio Camillo e Júlio Dias nos remete ao cotidiano da miséria urbana. Neles, os finais felizes são poucos. Prevalece a luta e, na mesma proporção, resistência, inteligência, futuros promissores, desejos e sonhos tão bonitos quanto os de qualquer pessoa. Os autores oferecem um livro de conteúdo denso e constroem com maestria suas narrativas, dignas de serem lidas e relidas, pois ficam gravadas em nossa memória e nos fazem refletir sobre a forma como vemos essas pessoas.

Belo Horizonte, março de 2020.

Referência

DIAS, Júlio Gonçalves; CAMILLO, Plínio. DE RUA. São Paulo: Editora Kazuá, 2018.

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* Ariele Santos é graduanda em Letras, Português, pela UFMG e pesquisadora vinculada ao NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – desta Instituição.

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