O avesso que busca refletir sobre a condição feminina*

 Tom Farias**

 

Se a poeta é uma grande fingidora, para usurpar a ideia do verso primoroso de Fernando Pessoa, imagina a escritora Elisa Lucinda, ou melhor, a romancista Elisa Lucinda. Amante da poesia do bardo português, em homenagem a quem escreveu, em 2014, um belíssimo romance, a capixaba radicada carioca volta à carga agora com uma nova ficção – o recém-lançado e já badalado Livro do avesso, o pensamento de Edite. Trata-se, em grande façanha, de uma história contada em pequenas doses narrativas, algumas de até duas linhas, onde não só o pensamento de Edite vem à tona, mas o da própria autora, na forma sempre direta e irônica, muitas vezes debochada, de dizer tudo.

Em determinadas passagens do texto chegamos a formular a tese de que o pensamento de Edite é exatamente o que Lucinda vem pensando desde os tempos do excelente A lua que menstrua (1992): Edite funcionaria como alter ego da própria Elisa Lucinda – o que é recorrente lembrar, de passagem, os múltiplos heterônimos do próprio poeta português que ela tão bem ficcionalizou em “Fernando Pessoa – o cavalheiro do nada”, onde mistura, mais uma vez com maestria, a história real do extraordinário poeta com a inventada, a imaginada por ela.

Não que o Livro do avesso... seja exatamente uma mistura de ficção com fatos reais, embora algumas passagens bem mercantes da vida da personagem se confundam com a própria trajetória da escritora, mas sem a pretensão da verossimilhança. Em dado momento, Edite, ou também Dite e Ditinha, que tem uma língua afiada para palavrões e queixas sexuais (não é mesmo Elisa Lucinda? – olha eu aqui fazendo o papel da Voz), trata de coisas muito sérias, algumas até republicanas, ao falar de violência, de racismo, de gênero, de educação, de politica. Em uma dessas passagens ela aborda a morte de Nelson Mandela, o Mandiba e, aí, vemos que há o pensamento de Elisa Lucinda para reavivar a memória do país e do mundo, numa transmissão de mensagem onde ela atua bem, e não só através de suas poesias, as escritas ou faladas nos cursos da Casa-Poema. E de Mandela, o tão “imprescindível homem”, a autora se transporta para a cabeça de Edite – ou de “Afro Dite” – grafada aqui nesse trocadilho tão substancialmente necessário para marcar a referência racial da personagem e de sua criadora.

Elisa Lucinda é voz com grande potência na poesia brasileira, com forte lirismo que evoca para a si e atualiza as questões de gênero e os discursos de combate à desigualdade de raça e classe. Na prosa, ela não descura de dar a esses temas/assuntos o peso narrativo que merecem. Antes disso, provoca seus leitores, os faz rir e pensar, chorar e refletir, como marca da sua teatralidade falada. Ou seja, seu papel enquanto ficcionista, em especial neste segundo romance – total dos 17 livros até agora publicados – é o de guardiã de uma memória que está escrita/inscrita no dia a dia das pessoas, nos gestos e rostos das gentes do povo. Visceral nas emoções, ela é um temperamento que corrobora diametralmente com o seu tempo ido e vivido. Pela sutileza e pelo coloquialismo verbal que interpõe, o Livro do avesso, o pensamento de Edite traz muito da sua autora/narradora e marca com chave de ouro a volta de Elisa Lucinda ao universo da ficção.

Mérito de alguém que trabalha com dureza, labuta com suor e lágrimas pelo ideal da poesia e da escrita que tenha missão e compromisso o realismo dos tempos contemporâneos. Especialmente por estes motivos a sua leitura é urgente e altamente necessária.

Referência

LUCINDA, Elisa. Livro do avesso, o pensamento de Edite. Rio de Janeiro: Malê, 2019.


* Originalmente publicado em O Globo, edição de 1.6.2019, p. 5.

** Tom Farias é jornalista, escritor, pesquisador e crítico literário. Autor, entre outros, de Cruz e Sousa, Dante negro do Brasil (2008), Carolina, uma biografia (2017) e José do Patrocínio, a pena da abolição  (2019).

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